Edição 90

Ambiente-se

Valorizar as diferenças: reflexões destinadas a professores de Educação Infantil

Mary Rangel
Jéssica do Nascimento Rodrigues
Márcio Caetano
Maximiano Coutinho

Este artigo baseia-se no livro de Range, A escola diante da diversidade, e é destinado a professores, especialmente aqueles que atuam na Educação Infantil. Nesse nível de ensino, que inicia a escolarização básica fundamental, os docentes têm uma expressiva oportunidade de formar para a convivência com as diferenças.

A fase de desenvolvimento das crianças nessa etapa da vida é especialmente favorável a aprendizagens, inclusive de novos códigos, como os de língua estrangeira e os de cânticos e instrumentos musicais. Da mesma forma, são assimilados, com possibilidades de preservação, consolidação e permanência ao longo da vida, hábitos, atitudes e valores que auxiliam a convivência e a inclusão social.

Além dessa condição, favorável à compreensão das diferenças, as crianças têm expressões espontâneas de afeto e de vivências em grupo, nas atividades de classe, nas brincadeiras, nos jogos, nas atividades de recreação e danças.

Reafirma-se e sublinha-se, então, que os professores que atuam em todos os níveis, da Educação Infantil à Superior, são formadores de pessoas que atuarão na sociedade, desejando-se que estabeleçam relações positivas, acolhedoras: relações que favorecem a paz e a união entre pessoas e povos. As reflexões que se apresentam neste artigo são destinadas a esses professores.

Conviver é estar junto, é fazer laços, ter afeto pelas pessoas com as quais se convive. As crianças têm uma disposição natural para conviver, estabelecer afetos, brincar, conversar, divertir-se junto às outras.

Assim, fazem parte do desenvolvimento infantil e, consequentemente, da docência nesse nível, os valores de solidariedade, de colaboração mútua, de acolhimento e de sorrisos que aproximam, refletindo num ambiente bom, construtivo.

Desse modo, as pessoas “diferentes” — seja pela cor da pele, seja por suas condições de locomoção ou movimento, seja por serem surdas, cegas ou cadeirantes — poderão ser acolhidas pelas crianças e, de modo geral, pelo ambiente da escola.

Se assim não for, os “diferentes” poderão se sentir desiguais, por não corresponder a modelos ou padrões tradicionalmente aceitos como “normais”. E, por isso, sua proximidade pode causar resistências, colocando-os à margem dos espaços (ambientes, contextos, relações) reservados aos demais que não causam estranhamento.

Decorrem, então, de modelagens preconcebidas, as categorias e classificações atribuídas aos “estranhos”, porque essas classificações reduzem a “ameaça” daquilo e de quem se conhece pouco ou não se deseja conhecer.

Nessa mesma perspectiva, formam-se as “representações do outro”, que também, num movimento reflexo, reforçam nesse “outro” as suas autorrepresentações, ou seja, as representações sociais também poderão ter uma influência expressiva sobre as representações que cada pessoa forma sobre si mesma, isto é, sobre as autorrepresentações.

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As autorrepresentações de quem se sente desigual

Num movimento interno e externo, de mútua interferência, projetam-se, nas pessoas que se sentem e são tratadas como “diferentes”, num sentido depreciativo, as imagens e os conceitos que se traduzem em sentimentos; e, nesses sentimentos, pode-se incluir o de sentir-se desigual em relação aos demais, atribuindo-lhes uma condição superior, porque “normal”. “Sentir-se desigual”, portanto, pode ser um modo de ver-se menor, comparativamente aos demais, e aceitar, nessa comparação, modelos e referências de superioridade e normalidade que justificam um autoconceito inferior e que afeta a autoconfiança e a autoestima, com consequências na segurança, na tranquilidade, desdobrando-se, perversamente, em tensões que contaminam a saúde física, psicológica e emocional.

Nesse encaminhamento de análises, é oportuno também refletir sobre o efeito da contaminação da saúde do corpo orgânico sobre a saúde do corpo social, porque, com poucas dúvidas (e muitas certezas), pode-se confirmar o princípio de que sujeitos tranquilos contribuem à sociedade saudável; e sujeitos tensos, oprimidos, subalternos, são evidências de uma sociedade doente que apela por reflexões e ressignificações em favor da promoção humana e da saúde social.

O desconforto de “sentir-se desigual” (e por isso receber um tratamento discricionário) pode ter efeitos como o estresse e a depressão, que tensionam e debilitam a saúde e o equilíbrio emocional em dimensões especialmente significativas e profundas, pois estão introjetadas nos sentimentos e nas avaliações dos sujeitos sobre si próprios.

Nesse contexto depressor, pode ocorrer a subalternidade, que, entre tantas consequências sociais e políticas possíveis, pode gerar a aceitação passiva de um valor, um lugar, uma posição “menores” nos ambientes e nas relações sociais. Até mesmo o silêncio, o medo e a invisibilidade podem se tornar opção de quem se “sente desigual” e não quer ser notado, porque, ao ser notado, sua forma de ser também será evidenciada e, com ela, o seu valor social menor e a sua exclusão, em seus vários tipos e processos violentos.

É nesse ponto dessas reflexões que se percebe o quanto a exclusão atinge o ser humano e o quanto pode se transformar numa autorrejeição, ou seja, na rejeição de si próprio e na aceitação passiva da desconsideração a seus direitos. E chega-se, portanto, ao nível, especialmente opressor e destrutivo, da autoexclusão.

O medo de ser notado, de ser reconhecido nos ambientes sociais, é uma ocorrência frequente naqueles que temem rejeições e violências movidas por preconceitos. E esse tipo de temor é especialmente acentuado no caso dos que vivenciam privação de direitos por ações e discriminações excludentes nos contextos de vida, convivência e estudo, a exemplo da escola.

A escola constitui-se num ambiente suscetível a perspectivas catalisadoras de julgamentos sociais, que absorvem conceitos, preconceitos e fatores de tensão social. Esses fatores se encontram no entorno e se refletem no interior do ambiente escolar, estendendo-se, consequentemente, às relações dentro e fora da sala de aula.

O convívio diário no ambiente escolar e as vivências desse convívio por um tempo significativo, ao longo do desenvolvimento dos estudos e da sistematização do conhecimento no fluxo dos anos de escolarização, propiciam amadurecimento, construção de laços afetivos, consolidação de amizades. Entretanto, se no convívio, por tanto tempo e tantas oportunidades de estabelecer relações com professores, colegas e funcionários, houver atitudes de exclusão, quem as sofre também poderá consolidar o sentimento de frustração e levá-lo consigo para o resto da vida. Assim, a tristeza cresce, ao mesmo tempo que a pessoa se sente “menor”.

O que se reafirma, sobretudo, a cada reflexão dessa natureza, são os efeitos dos processos e das atitudes excludentes, notando-se que a duração e a intensidade desses efeitos podem se constituir em fatores de desconstrução pessoal da autoestima, da confiança em si próprio, da esperança, e até mesmo da consciência de direitos a serem respeitados.

Nos preconceitos, sintetizam-se impressões equivocadas, imaginárias, do real e se disseminam modelos preconcebidos e idealizados de comportamentos que podem influir, inclusive, na forma como cada pessoa se apresenta (e se representa) diante dos demais.

E, no real, o que se encontra é, sobretudo, o valor da pluralidade que caracteriza os ambientes e as relações sociais. O que destoa, o que agride essas relações são atitudes que humilham, que desmerecem o outro e prejudicam sua autoestima. É esse movimento externo de exclusão e rejeição que desencadeia o movimento interno correspondente, pelo qual a pessoa excluída também se exclui e atribui a si própria a sua menor valia social.

Assim, por influência de rejeições externas, manifestadas em diferentes graus, de forma explícita ou não, a pessoa pode “sentir-se desigual” e submeter-se a tratamentos excludentes em diversos aspectos: socioeconômicos, etnorraciais, religiosos, culturais, de gênero, de longevidade, além de aspectos físicos e cognitivos que os caracterizam.

Os fatores que se traduzem em desigualdades socioeconômicas geram efeitos concretos no alcance de condições de qualidade de vida. E a pobreza pode ser representada como situação geradora de desvalorização social, dominação e subalternidade. Também pode ocorrer nesse processo a baixa autoestima, lembrando-se a possibilidade de mútua recorrência entre as representações formadas no contexto das interações e comunicações sociais e as representações de si próprio.

As características etnorraciais podem ser alvo das impressões de estranhamento, pois o preconceito, oculto nas atitudes e intenções, também se oculta nas ações excludentes que, embora não se revelem de forma explícita, aparecem nas relações sociais a ponto de serem percebidas nas formas como se “evitam” os sujeitos em diversas circunstâncias que ocorrem nos ambientes sociais, profissionais ou de família.

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As crenças religiosas podem gerar desconforto e estresse em quem sofre discriminações por não se adequar a padrões dominantes, privilegiados na sociedade. Práticas fundamentalistas, radicais, dominadoras, excludentes ao extremo, geram silêncio, medo e, até mesmo, extermínio.

Quanto à longevidade, tem, para aqueles a quem se atribui o qualificativo de idoso, significativas implicações na convivência, na sociedade, na família e, até mesmo, consequências perversas na dificuldade de se manter nos ambientes profissionais. Essas implicações compõem um conjunto de circunstâncias cuja introjeção nos sujeitos constitui fator de sua maneira de “sentir-se desigual” e “menor”, embora com energia e vitalidade, vontade e condição de produzir e ser incluído. Contudo, o obtuso preconceito excludente projeta o seu adjetivo na longevidade, desconsiderando o valor humano, existencial, cultural, epistemológico, do tempo de vida.

Essas considerações sobre o acolhimento e o valor sociocultural e político das diferenças que caracterizam o mundo plural reafirmam o entendimento de que o processo de inclusão/exclusão é de amplo alcance, considerando o amplo conjunto de diferenças que traçam o contorno do mundo, da humanidade.

Confirma-se, então, a premissa de que as diferenças que caracterizam a pluralidade sociocultural não justificam ou admitem desigualdades. As diferenças são características e direitos dos seres humanos e da pluralidade social. É indispensável, portanto, compreendê-las com perspectivas mais reais, menos preconceituosas, logo, mais fraternas e solidárias de construir a vida e a convivência. Essas perspectivas auxiliam a redesenhar, com tons mais sensíveis, os ambientes e as relações sociais, tornando-se especialmente relevantes e necessárias à formação que os professores oferecem aos alunos em todos os níveis de sua escolarização, desde a Educação Infantil, que é terreno fértil para aprendizagens necessárias à paz e à inclusão social.

Mary Rangel é organizadora do livro A escola diante da diversidade, publicado pela Wak Editora. Doutora em Educação, com estágio pós-doutoral na área de Psicologia Social.
Jéssica Rodrigues é Doutora em Educação.
Márcio Caetano é Doutor em Educação.
Maximiano Coutinho é docente da rede pública do Estado do Rio de Janeiro.

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