Edição 58

Profissionalismo

Viver com crianças em tempos de crise

Filomena Santos Silva

Quando um dos pais ou, em alguns casos, os dois perdem o emprego, é tempo de reorganizar prioridades, de analisar o orçamento familiar, cortando imediatamente todas as despesas que não satisfaçam as necessidades básicas de alimentação, saúde e habitação.

E as crianças? Nesta sociedade de consumo, são habituadas a ter logo o que pedem, a ter antes de pedir, desde o bolo no café ao sempre último modelo de jogos. Temos educado as nossas crianças para uma vida fácil.

A nossa geração viveu, até aqui, melhor do que a dos seus pais e dos seus avós; as crianças não estão habituadas a ouvir “não” nem a terem de esperar e merecer determinados brinquedos ou objetos. Em resultado, quando contrariadas, reagem frequentemente mal, não tendo, na sua grande maioria, resistência à frustração.

Como passar a dizer sistematicamente “não” ao brinquedo quando se vai ao hipermercado, à festa de aniversário em que não pode convidar amigos, ao filme que estreou, ao hambúrguer do centro comercial que dá uma prenda, ao brinquedo pedido na carta ao Papai Noel que não é possível comprar?

Os pais sentem-se tentados, fazem e refazem as contas para ver se “esticam” — “Talvez se cortar aqui e ali seja possível fazer-lhe a vontade” —, mas será mesmo necessário?
Até que ponto é justo — e correto — afastar as crianças das preocupações da família? Como aproveitar as situações menos favoráveis e transformá-las em momentos de aprendizagem?

Falar com a criança

As crianças são pequenas, mas têm uma grande capacidade de compreensão do que se passa à sua volta. Supor que está tudo igual não é correto nem aconselhável. As crianças apercebem-se das tensões familiares, como diz o velho e sábio ditado popular: “Em casa onde não há pão, todos ralham, e ninguém tem razão!”. Nessa situação, não explicar nada às crianças vai contribuir para agravar a tensão; a criança que não entende o que se passa dificilmente vai aceitar o “não”, podendo inclusive sentir-se culpabilizada.

Quando a situação econômica de uma família sofre uma alteração brusca, o ideal é falar em conjunto com os filhos, explicar o que aconteceu e pedir compreensão.

Explicar que, durante uns tempos, o dinheiro só vai dar para as coisas mais importantes
e que não vai ser possível comprar brinquedos.

Essa conversa tem de, obrigatoriamente, ser tranquila, mesmo que a situação seja dramática, pois de nada serve perturbar a criança com problemas que ela não controla. As crianças, a partir dos 3 anos de idade, já têm capacidade para entender esses problemas e revelam grande capacidade empática: são capazes de ir buscar o seu mealheiro e dar todas as moedas para ajudar. Aceitar a ajuda da criança é fundamental, pois ela sente que faz parte da solução e torna-se menos exigente.
Esse pode ser o lado positivo da crise: ao compreender que a sua família está passando por dificuldades, ao sentir que está a contribuir para a sua resolução, desenvolve valores morais, como a solidariedade e o altruísmo.

E quando a criança pergunta o que é crise?

João dos Santos, grande pedagogo português, escreveu um livro: Se Não Sabe Porque É Que Pergunta? O que essa questão significa é que, quando uma criança questiona sobre algum assunto, é porque já pensou sobre ele, porque já tem as suas próprias ideias.

Assim, quando uma criança, independentemente da sua idade, nos coloca esse tipo de questão, o ideal é devolver-lhe a questão: “O que você sabe sobre isso? Já ouviu falar? O que acha que é a crise?”.

A partir da resposta da criança, o adulto deve adequar o seu discurso, explicando com verdade e simplicidade e numa linguagem que ela entenda. Com o bombardear de informações diárias dos meios de comunicação sobre a crise, a grande maioria das crianças já ouviu falar do assunto.

Quando as dificuldades econômicas das famílias são graves e duradouras, podem gerar tristeza e ressentimento nas crianças (“Os meus amigos têm, e eu não”; “Os meus amigos vão, e eu não”; etc.) e mesmo problemas na relação do casal; a tensão acumulada gera mal-estar, e, frequentemente, pai e mãe estão pouco disponíveis emocionalmente, quer entre si, quer na relação com os filhos.

O equilíbrio psicológico da família é um fator que não pode ser menosprezado, sob o risco de rupturas graves. É fundamental encontrar tempos de qualidade, em que cada elemento esteja emocionalmente disponível, momentos de união e de construção de relação, em que passeiam, brincam, cantam ou riem em conjunto.

Serão esses momentos que irão alimentar a união familiar, que irão fazer com que cada um dos elementos consiga estar equilibrado, apesar das imensas dificuldades, porque o amor que sentem uns pelos outros faz a diferença.

Filomena Santos Silva é psicóloga educacional e formadora.

Fonte: O Guia para Pais e Educadores. n. 36.

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