Edição 20

Lendo e aprendendo

ZILDA ARNS

Médica sanitarista, pediatra, mãe de cinco filhos, avó de oito netos, Zilda Arns seguiu à risca o milagre da multiplicação dos pães, descrito no Evangelho de São João, e conseguiu, nos vinte anos da Pastoral da Criança, multiplicar a solidariedade e os seus conhecimentos para mais de 1,2 milhão de famílias em todo o Brasil.

Por Camila Garcia

Camila Garcia: Como foi sua infância?
Zilda Arns: Para mim, é algo muito gostoso rememorar a minha infância; tenho recordações desde os três anos, porque mamei até essa idade no peito da minha mãe. Nossa casa era um sobrado grande à beira do Rio Mãe Luzia, em Forquilhinha, no sul de Santa Catarina, perto de Criciúma, uma área de carvão. Era uma comunidade alemã onde todos falavam alemão. A missa era em alemão; na escola, falávamos alemão e aprendíamos português também. Lembro quando meu pai chegou de viagem e eu estava mamando no peito. Ele comentou: “Tão grande e ainda mamando no peito!”. Essa é a minha primeira memória.

C.G.: E como era a sua casa, a convivência com treze irmãos?
Z.A.: Meus pais trabalhavam muito, nós tínhamos uma fábrica de queijos e laticínios. Além das roças, tínhamos uma leiteira, que fornecia o leite para fazermos o queijo. Minha mãe se dedicava muito ao trabalho, mas nunca deixava de cuidar da família. Ela sempre dizia que, em casa que entra boa comida e sol, não precisa entrar médico. Naquela época, usávamos colchões de paina, de pena, e colocávamos tudo no sol para arejar. Tomávamos banho todos os dias no Rio Mãe Luzia.

C.G.: Todas as lembranças da sua infância são felizes?
Z.A.: Muito felizes e muito ligadas à cultura de Forquilhinha, que era assim: a família, a escola e a paróquia, como se fosse uma alma só. Meu pai e meu tio Jacó Arns, que era professor, eram os líderes da comunidade.

C.G.: É verdade que eles fundaram lá uma comunidade auto-sustentável?
Z.A.: Meu pai e mais dois amigos fundaram Forquilhinha. Eles procuravam terras e acharam Forquilhinha, que era mais plana, melhor para trabalhar com arados, porque onde moravam tinha muito morro, e eles não conseguiam desenvolver a agricultura como queriam. Meu pai já namorava minha mãe nessa época. Logo depois, eles casaram e foram morar em Forquilhinha. Com isso, muitos parentes se mudaram para lá. No começo, a vida foi muito difícil, mas, como eu sou a penúltima filha, não peguei essa fase. Quando nasci, já estava tudo melhor. Nós tínhamos tudo dentro de casa; comida nunca faltou para ninguém, nem no começo.

C.G.: Como era a vida lá em Forquilhinha?
Z.A.: Hoje se fala muito em educação integral, com música, artes e esportes, e nós tínhamos isso lá há mais de cinqüenta anos. Quando veio a 2ª Guerra Mundial, a gente sofreu muito. Por sermos descendentes de alemães, havia ordem de prender meu pai e os líderes da comunidade. Não podíamos mais falar alemão nem cantar. Lembro-me de ajudar a minha mãe a jogar fora livros sobre medicina caseira que ela recebia, ela era como se fosse a médica da comunidade. Ela foi a minha inspiração para criar a Pastoral da Criança. Eu estava sempre com ela e a via atender as pessoas na varanda de casa, dar conselhos, fazer curativo.

C.G.: É verdade que na comunidade existia uma moeda particular?
Z.A.: Sim, papai fez uma cooperativa com gestão própria e uma moeda, que era dourada; todos compravam com ela. A minha atribuição era fazer compras, e eu sempre ia de bicicleta, com minhas moedinhas, ganhava o troco… Era uma cooperativa que funcionava muito bem, um modelo ideal para todos.

C.G.: A religiosidade sempre esteve presente em sua vida?
Z.A.: Sim, a religião não se separava da vida, fazia parte da rotina diária. Quando levantávamos, rezávamos; antes da refeição e após, também rezávamos; e, à noite, nos reuníamos no quarto dos meus pais, que tinha um altar e um prego com bastantes terços, e todos rezavam ajoelhados. Cada noite um puxava o terço. Quando era a minha vez, pegava um bem pequeno para ir mais rápido. [risos]

C.G.: A relação com o seu pai era próxima?
Z.A.: Muito próxima. Quando eu era pequena, quem trocava minhas fraldas eram as minhas irmãs mais velhas. Principalmente a Irmã Ilda, que é freira. Ela cuidou da minha primeira infância. Mas meu pai sempre estava junto no café da manhã, no almoço e no jantar. As regras da família sempre foram combinadas, tinha um certo ritual. Papai nunca brigou, puxou orelha ou levantou a voz. Lembro uma vez que eu comi mimosa verde (tangerina) e estava proibida de comer, pois poderia fazer mal à saúde; ele me chamou e disse que eu não poderia comer e deu todos os motivos. Minha mãe era mais expansiva; meu pai, mais reservado; mas todos acreditavam no que ele falava, porque ele era muito ponderado, respeitado, e sua visão era de futuro.

C.G.: Por que a senhora foi morar com seus irmãos em Curitiba com onze anos?
Z.A.: Em Forquilhinha só tinha até a 5ª série, por isso meu pai construiu uma casa em Curitiba para que pudéssemos continuar os estudos e morar todos os irmãos juntos. Morávamos sozinhos, formando uma comunidade de estudantes, todos irmãos. Minha irmã Adele e eu cozinhávamos todos os dias para todos.

C.G.: E como era a sua relação com Dom Paulo?
Z.A.: Quando Dom Paulo saiu de casa, eu nem tinha nascido. Vim conhecê-lo mais tarde. Naquela época, os franciscanos não vinham para casa todos os anos, vinham de cinco em cinco anos. Conheci Dom Paulo quando eu fiz vestibular de medicina. Ele ficava em Petrópolis e se dedicava totalmente à sua missão, à sua vocação; sua família era a Igreja.

C.G.: A senhora sempre soube que queria ser médica?
Z.A.: Desde pequena, gostei muito de inventar. No Natal, eu ganhava bonecas e adorava fazer curativos, batizá-las. E sempre senti muita pena das crianças que vinham se consultar com a mamãe e estavam machucadas, doentes, desidratadas. Quando teve a campanha contra a varíola, no Brasil inteiro, eu perdi a mãe de uma amiga, que deixou oito filhos. Isso me marcou muito na infância. Depois, com quinze anos, assisti a um vídeo sobre as favelas do Rio e a um sobre a Amazônia, sempre aparecendo pessoas doentes, muita pobreza. E aí decidi ser médica para cuidar desse povo. Meu pai achou que eu deveria ser professora: eu tinha o dom de ensinar, e essa era uma tradição da minha família. Quando Dom Paulo voltou de seu doutorado na França, vi meu pai e ele conversando no jardim da casa. Quando entraram, disseram que eu deveria escolher a profissão que quisesse.

C.G.: A senhora sempre foi uma médica voltada para a infância. Por quê?
Z.A.: Eu adorava crianças, sempre que podia corria para a casa dos empregados para poder pegar as crianças no colo. Na paróquia, as crianças pequenas não entravam na igreja, então havia meninas que ajudavam as freiras a cuidar delas durante a missa, e eu sempre gostei de ficar ajudando. Sempre tive atração por elas. São os seres mais perfeitos que Deus criou; brincam sujas e limpas, ricas e pobres, de todas as religiões, e se sentem felizes umas com as outras. Sempre sofri muito com as doenças das crianças, com a falta de prevenção. E pensava: por que não podemos ensinar as mães a cuidarem de seus filhos, a prevenirem doenças como diarréia, sarampo, difteria, tétano? Quando atendia, gastava mais tempo ensinando as mães do que propriamente fazendo a consulta.

C.G.: Qual foi a inspiração para a criação da Pastoral da Criança?
Z.A.: A experiência que tive trabalhando em hospitais me mostrou que as mães tinham sede de aprender a cuidar de seus filhos, o que elas mais precisavam era de informação e apoio. Então essa foi a grande inspiração para a criação da Pastoral.

C.G.: A Pastoral fez vinte anos em dezembro do ano passado (2003). Ela é ligada à CNBB? Atende pessoas de todas as religiões?
Z.A.: A Pastoral da Criança foi criada em setembro de 1983 e é diretamente ligada à CNBB. Com o passar dos anos, a CNBB sentiu muita confiança no nosso trabalho, e, para dar mais autonomia à Pastoral, criamos organismos de ação social da CNBB, com estatutos, assembléias, regimento interno, conselho fiscal, conselho econômico, conselho diretor todo separado e muito organizado até nas comunidades. Trabalhamos de forma ecumênica e suprapartidária, desde o primeiro projeto. Cuidamos desde a gestação do bebê até os seis anos, período da primeira infância. Trabalhamos muito com aleitamento materno, saúde da gestante, nutrição, vacinação e educação infantil. Damos muita ênfase na educação da família para cuidar da criança. Estamos aprofundando três instrumentos para multiplicar o saber e a solidariedade: as lideranças comunitárias aprendem e assumem o compromisso da democratização do saber e da solidariedade com famílias vizinhas. Cada líder capacitada multiplica o saber e a solidariedade para doze famílias. A metodologia foi baseada no Evangelho de São João, em que ele narra o milagre da multiplicação dos pães. A Pastoral organiza comunidades, abençoa as líderes, as promove bastante, e elas tomam a missão de multiplicar. E, depois, como diz no evangelho: “Vede se todos estão satisfeitos”.

C.G.: Qual é a abrangência da Pastoral hoje?
Z.A.: Estamos em todos os estados do Brasil, atuando em 66% das paróquias, isto é, 3.696 paróquias e 34.784 comunidades. Nós temos 129.424 líderes que moram nas comunidades, mas o total de voluntários que trabalham conosco é 229.977 pessoas. Nesse número, estão incluídas as líderes, as equipes que acompanham e capacitam e as equipes que apóiam as lideranças. Essas equipes é que fazem com que o trabalho da Pastoral da Criança seja maravilhoso. As líderes visitam a cada mês 1.272.383 famílias. Com todo esse trabalho, pelo menos cinco mil crianças a cada ano foram salvas da morte pela Pastoral.

C.G.: O que mudou nesses vinte anos? As crianças precisam de mais coisas para serem felizes?
Z.A.: Para que as crianças sejam sementes de paz, adultos felizes e realizados, nós precisamos, tanto a família como o governo e a sociedade, cuidar dos seus desenvolvimentos físico, social, mental, espiritual, cognitivo e nutricional. A Pastoral da Criança tem o Guia do Líder, que é sua bíblia e trata dessas áreas todas. Ele é considerado, pela Organização Pan-americana de Saúde, o mais completo guia que existe no mundo sobre isso. Eu fico emocionada quando vou a uma favela e vejo as crianças da Pastoral tão contentes, mamando no peito, saudáveis, apesar da pobreza. A criança bem cuidada, mesmo na pobreza, pode ser uma pessoa com boas qualificações para vencer na vida. Existem estudos que mostram que uma criança maltratada antes de um ano pode ter uma tendência à violência e à criminalidade. Sempre que vejo esses criminosos, penso na primeira infância deles. Será que foram bem cuidados? Como será que foi o parto deles?

C.G.: Para comemorar os vinte anos da Pastoral, a senhora está preparando algum projeto novo? Há alguma coisa que ainda quer fazer?
Z.A.: Nós já estamos trabalhando com saúde mental comunitária, auto-estima e relações humanas, porque o grande problema de hoje é a violência em casa e na comunidade.

C.G.: Durante as discussões sobre a redução da maioridade penal, a senhora disse que a prevenção primária da violência seria mais eficaz. Por quê?
Z.A.: A prevenção primária da violência começa na gestação. O primeiro ano de vida é essencial, porque tem tudo a ver com o desenvolvimento emocional da criança. A criança bem-amada, que mama no peito, que está com boa auto-estima, dificilmente cometerá algum crime. Eu diria que a primeira infância é a consolidação da prevenção primária da violência. Depois entra a idade escolar, quando a educação deveria ser integral. As atividades extracurriculares deveriam ser curriculares! Ter atividades que não sejam um peso para os alunos, mas sim coisas agradáveis. Essa prevenção é incrivelmente mais barata, pelo menos cem vezes mais barata. Sou a favor de diminuir a idade penal de dezoito anos. Existem crianças e adolescentes que têm uma índole criminosa tão forte — como este último que nós vimos, que mata e estupra com a maior frieza (caso Liane Friedenbach) — que em três anos não vão recuperar a cidadania.

Fonte: Revista Pais & Filhos. Manchete Editora. Fevereiro 2004, ano 35, nº 407. p. 37 a 41.

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