Edição 28

Matérias Especiais

45% dos Brasileiros Descendem de Africanos

descendentes1Quantos São

De acordo com o Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2002, 45,33% da população brasileira é composta por negros e pardos. O Brasil é o segundo país de maior população negra do mundo — só a Nigéria está à frente. A maioria ainda sofre as conseqüências do passado. Além do racismo e do preconceito, existe uma grande diferença entre a condição de vida dos afro-descendentes e a do resto da população. Para começar, o desemprego é maior entre os negros. Em Salvador (BA), por exemplo, a porcentagem de negros desempregados chega a 29%, enquanto a dos não negros fica em 19,9%.

O Tráfico

Os ancestrais dessa população foram trazidos da África para o Brasil como escravos. Entre 1550 e 1850, quando o tráfico foi oficialmente extinto (Lei Eusébio de Queirós), chegaram ao Brasil cerca de 3,6 milhões de africanos escravizados, segundo cálculos do IBGE.

Na África, os traficantes obtinham escravos por meio da guerra (com soldados europeus e mestiços), de acordos com chefes africanos (que vendiam aos traficantes os prisioneiros feitos em guerras tribais, amplamente estimuladas pelos europeus) e da troca por mercadorias. Em Angola, os pumbeiros — mestiços ou negros a serviço dos traficantes — percorriam o interior comprando escravos dos chefes locais.

O tráfico era um empreendimento organizado e extremamente lucrativo, realizado principalmente por portugueses, espanhóis, ingleses e franceses. Muitos países europeus se beneficiaram do comércio de africanos, já que uma grande parte de seus produtos — principalmente tecidos — eram usados na troca por escravos no continente africano.

Os escravos tornavam-se propriedade de seus senhores e eram obrigados — freqüentemente à custa de terríveis castigos — a trabalhar até a exaustão.

Justificativa Ética

Como justificativa ética para a escravidão, a Igreja proclamava a necessidade de “Introduzir a nossa santa religião entre aquelas nações bárbaras ou, ao menos, salvar muitas almas”, nas palavras do Bispo Azeredo Coutinho, fundador do Seminário de Olinda, no início do século 19.

descendentes2Diferenças

Os africanos foram trazidos de várias nações, regiões e culturas diferentes. Os que vinham de Angola ou do Congo (levados principalmente para o Rio de Janeiro e para o Recife) eram mais caros que os de Moçambique (também encaminhados para o Rio de Janeiro), que chegavam mais fracos e doentes, devido à longa viagem. A Nigéria era outra região valorizada, de onde foram trazidos (principalmente para a Bahia) os iorubás — que ficaram conhecidos como nagôs — e os haussás (islâmicos), também chamados malês.

Havia ainda distinções como as registradas por Boris Fausto em sua História do Brasil. Algumas se referiam ao trabalho exercido, já que era diferente servir na casa-grande, trabalhar no campo ou ser escravo de ganho na cidade. “Os senhores permitiam que os escravos fizessem seu ‘ganho’, prestando serviços ou vendendo mercadorias, e cobravam deles, em troca, uma quantia fixa”.

Outras distinções referiam-se ao tempo de permanência no País. Os ladinos (que já estavam no Brasil há algum tempo e falavam português) e crioulos (escravos nascidos no Brasil) eram mais considerados que os boçais (africanos recém-chegados, que não falavam português).

Distinguia-se também a cor da pele, que influía no destino dos escravos. “Uma coisa era o preto retinto, em um extremo, e o mulato claro, em outro”, diz Boris.

“Em geral, mulatos e crioulos eram preferidos para as tarefas domésticas, artesanais e de supervisão, cabendo aos escuros, sobretudo aos africanos, os trabalhos mais pesados”.

Revoltas

Foram muitas. Os fugitivos se reuniam nos quilombos. O mais famoso foi Palmares, em Alagoas, que resistiu durante quase setenta anos. Seu maior líder, Zumbi, assassinado em novembro de 1695, é hoje oficialmente herói nacional. O dia 20 de novembro é comemorado como Dia Nacional da Consciência Negra.

Liberdade sem Igualdade

descendentes3A Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, libertou a todos os escravos. Mas não foi tomada nenhuma medida que permitisse a inclusão dos negros africanos na sociedade, em condições de igualdade com os brancos. “Os negros foram lançados numa sociedade preconceituosa, de forma desarticulada, sem dinheiro, sem casa, sem comida, sem nenhuma condição de se estabelecer”, diz relato do IBGE.

Como resultado, até hoje os negros e seus descendentes ocupam uma situação de exclusão na sociedade brasileira, que só recentemente começa a se reconhecer como racista — um “Racismo camuflado, disfarçado de democracia racial, mas tão perigoso quanto o que é assumido, declarado”, diz a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro.

descendentes4A desigualdade entre brancos e negros aparece claramente nas estatísticas sobre trabalho, salário e educação. Segundo o IBGE, em 1997, apenas 34% das famílias brancas tinham rendimento mensal de até um salário mínimo. Essa porcentagem sobe para 58% nas famílias de pretos e alcança 61% nas de pardos (pretos e pardos são termos adotados pelo IBGE). Entre os brancos, 6% são empregadores. Apenas 2% dos pardos e 1% dos pretos estão nessa categoria.

O nível de escolaridade também apresenta uma grande diferença: a taxa de analfabetismo é de 9% para os brancos e de 22% para os pretos e pardos.

“Temos uma cultura que nos une e uma economia que nos separa”, diz Dulce Maria Pereira, presidente da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura.

descendentes5Racismo é Crime

A Lei Afonso Arinos, de 1951, a primeira disposição legal contra o racismo no Brasil, estabelecia penas para atos de discriminação de cor e raça em lugares públicos.

A Constituição de 1988 considera a prática do racismo “crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão”.

Cultura Negra

descendentes6“Somos um país de cultura negra, para desespero dos racistas”, diz Sueli Carneiro, do Geledés, Instituto da Mulher Negra.

Além da contribuição de seu trabalho, os africanos marcaram profundamente a língua, a música, a religiosidade, o modo de ser do povo brasileiro. Segundo Sueli Carneiro, elementos subjetivos também mostram a impregnação de valores africanos na cultura nacional — “O jeitinho brasileiro e uma relação especial com o corpo (…), prenhe de sensualidade”.

A religiosidade brasileira tem a marca do sincretismo, da mistura entre o catolicismo e as religiões africanas. O candomblé é o exemplo mais claro desse sincretismo: nele, os santos católicos foram identificados com os orixás, as divindades africanas. Nossa Senhora da Conceição foi identificada com Iemanjá, o Senhor do Bonfim com Oxalá, São Jorge com Oxóssi, Santa Bárbara com Iansã, etc.

descendentes7“Ao que parece”, diz Pierre Verger, estudioso da cultura negra, em seu livro Orixás, “certos membros do clero católico julgaram conveniente favorecer esse sincretismo (…). Os santos católicos, ao se aproximarem dos deuses africanos, tornavam-se mais compreensíveis e familiares aos recém-convertidos. É difícil saber se essa tentativa contribuiu efetivamente para converter os africanos ou se ela os encorajou na utilização dos santos para dissimular suas verdadeiras crenças. (…) Com o passar do tempo, com a participação de descendentes de africanos e de mulatos numerosos, educados num igual respeito pelas duas religiões, tornaram-se, eles, tão sinceramente católicos quando vão à igreja, como ligados às tradições africanas, quando participam, zelosamente, das cerimônias do candomblé”.

Negritude Ilustre

Grandes personagens negros ou mestiços, descendentes dos africanos, marcam, de várias formas, a história do País. Essa marca é mais visível — ou mais aceitável pela sociedade — na música popular, no carnaval ou nos esportes. São muitas figuras ilustres, de Pixinguinha a Milton Nascimento, de Cartola a Carlinhos Brown, de Pelé a Dida e tantos outros.

A imagem do negro está fortemente associada a essas áreas. Nunca, ou pouco, é visto pela sociedade brasileira como alguém que domina tecnologias, como a do fumo ou da fundição de ouro, na época da colonização, ou que possui conhecimentos científicos, como o etnógrafo Teodoro Sampaio e, no presente, Milton Santos, internacionalmente reconhecido como um dos maiores geógrafos do mundo.

descendentes8Recuperação da Auto-Estima

A recuperação da auto-estima e da identidade étnica afro-brasileira estão entre os principais objetivos dos movimentos negros.

“O Brasil tem uma realidade cultural negra e uma identidade que não se explicita de jeito nenhum”, diz Dulce Pereira, da Fundação Cultural Palmares. “A maioria das pessoas fica dividida entre considerar adequado ou aceitável ter presente a afirmação da negritude. A negritude sobrevive, fica subjacente, está ali no conjunto social, mas não se expressa na forma de identidade racial. Por que o mestiço, por exemplo, tenta, muitas vezes, fugir da sua condição racial? Porque essa identidade não é considerada positiva. Por isso, é tão importante o resgate da auto-estima do negro, a valorização dos traços culturais afros. Desse jeito, não fica ruim ter samba, gostar de futebol e de candomblé”.

Fonte: Revista TV Escola – Especial: Brava Gente Brasileira. Secretaria de Educação a Distância do MEC. Abril, 2000. p. 16 e 17.

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