Edição 70

Lendo e aprendendo

A importância da linguagem musical

João Collares

tocando_piano

Já foi comprovado cientificamente que as plantas, os animais irracionais, os seres humanos considerados normais e os diagnosticados como sendo deficientes (excepcionais) sentem e recebem os efeitos benéficos que emanam da boa música.

Experiências científicas comprovam que, dependendo da qualidade, a linguagem musical pode ser vista como terapêutica (musicoterapia).

A História registra que, desde as sociedades tribais aos países de primeiro mundo, a música sempre foi utilizada e vista como integrante de uma cultura.

Todas as igrejas do mundo usam músicas em seus rituais (liturgias) — hinos e cantos de louvor em homenagem às divindades.

Os grandes compositores do mundo juntaram a música com o teatro e criaram óperas e operetas que se imortalizaram, ficaram famosas e são apresentadas até hoje.

O gênero musical hino — marcial ou solene — usa o texto literário exaltando valores: de nações, estados, instituições, grêmios recreativos, times de futebol e outras agremiações. Esses hinos são encontrados em todos os países.

Na época do cinema mudo, a música foi sabiamente utilizada nas salas de projeção com músicos tocando ao vivo.

A partir do momento em que o homem descobriu a tecnologia de gravar o som, ele jamais dispensou as trilhas sonoras nos filmes, especialmente nos desenhos animados, nos quais a música complementa a cinestesia dos movimentos e das emoções.

As emissoras de rádio e televisão trabalham essencialmente com música.

É perceptível que determinadas músicas dão ênfase e destaque a temas que estão nos enredos das novelas de televisão.

Se, nos tempos de hoje, o modernismo caminha paralelamente com o imensurável avanço tecnológico e permanece utilizando ininterruptamente os efeitos sonoros e musicais nos eletrônicos — computadores, videogames, chamadas de telefones e celulares com inserções musicais orquestradas em seus programas e até nas campainhas de residências, produzindo sons com intervalos melódicos, etc. — , pergunto: de onde vem toda essa herança que gera a sensibilidade em prol do artístico sonoro e beneficia o social e cultural?

Reflexão: Tomando como base os registros que a Antropologia nos oferece, nas retrospectivas sobre a história natural do homem encontramos relatos documentados por historiadores citando manifestações artísticas nas mais diversas épocas e com variadas formas de expressão.

Esses documentos comprovam que a racionalidade dotou o homem com a capacidade de pensar, de experimentar, de memorizar e fixar na lembrança os eventos acontecidos no dia a dia. Portanto, o que foi vivenciado passa a ser conservado através da revocação (repetição), favorecendo o reconhecimento e a localização de algo que lhe deu prazer, respeito ou temor.

Tudo indica que momentos imprevisíveis vivenciados por nossos ancestrais tenham despertado o instinto racional de liderança e de superioridade nos ditames de sua consciência e razão. Certamente, o sensorial os induziu às percepções e reflexões sobre o que estava sendo vivenciado e percebido pelos sentidos da visão, da audição, do olfato, do paladar ou do tato.

Nos espaços geográficos em que os primitivos viviam (hábitat), a plasticidade dos corpos que compunham a natureza (paisagem), assim como os seres vivos, que exibiam imagens animadas ou estáticas, certamente estimulavam a capacidade fotográfica mental (registro no inconsciente de imagens captadas pela visão). Nas percepções e identificações sonoras, a capacidade labiríntica de registrar no inconsciente os sons (audição).

A sinestesia, com a abrangência de três sentidos (olfato, paladar e tato), facultou ao homem a percepção de odores agradáveis ou não, favorecendo as opções por determinados alimentos em virtude da ciência de que cada corpo tem seu cheiro peculiar (olfato); o sabor que é prazeroso na degustação de alimentos (paladar); e as pressões corpóreas nos contatos físicos, estimulando repulsas ou aconchegos sentidos no corpo, em especial, nas mãos (tato).

Com o passar do tempo e a repetição de eventos vivenciados no dia a dia, o homem experimentou e teve o discernimento de optar e refletir. E, assim, desenvolveu o senso estético que o levou a traduzir, fixar e reproduzir, inicialmente através das artes plásticas, fragmentos de sua própria história e que foram encontrados nas pinturas de cavernas.

Reproduzir e documentar elementos e sentimentos do cotidiano passou a ser visto como ação de superioridade — fixá-los numa parede era manter o domínio sobre todos esses elementos e sentimentos.

Essas manifestações fixadas nas artes plásticas, ou expressas através do uso de palavras ou nos movimentos de expressão corporal, acompanharam os humanos e foram testemunhas de uma gradativa evolução.

Nas observações e comprovações dos cientistas, as expressões musicais estiveram sempre presentes e causaram grandes prazeres e benefícios à humanidade.

A música cantada surgiu para expressar oralmente e de forma especial e criativa os sentimentos e as emoções de uma comunidade.

Diante de todas essas comprovações reveladas pela História, chegamos à conclusão de que as artes plásticas, as artes cênicas (representação teatral), a música e a dança há muito vêm cumprindo esse papel de representatividade de determinada cultura e com excelentes resultados, tais como:

No folclore – O canto, a dança e o teatro sabiamente utilizados nas representações de fatos que fazem parte das manifestações socioculturais. Nessa forma de expressão, a integração artística destaca a representação teatral traduzida com música, por meio da qual personagens expõem sentimentos e ideias ao narrarem fatos através do canto — expressão oral com a síntese das ideias verbalizadas e traduzidas pela poesia (letra da música) acoplada às melodias — em um estilo de musical criado e apresentado pela sabedoria popular, no qual a cinestesia dos movimentos apresentada pela dança sincronizada às pulsações rítmicas amplia estímulos em que o gestual favorece as percepções e codificações de mensagens.

Manifestações folclóricas de destaque no Brasil – Carnaval; festa junina; bumba meu boi, no Maranhão; boi-bumbá no Amazonas; festa do divino; reisado, pastoril; São Gonçalo; e muitas outras.

Nas práticas religiosas – Músicas que são cantadas nas missas, novenas, cultos, casamentos, batizados e até mesmo em funerais. Nas seitas de origem africana, encontram-se os toques de atabaques, o canto e a dança.

Nas comemorações cívicas – Músicas do gênero hino, exaltando os valores pátrios ou de personagens que se destacaram numa nação.

Nas efemérides – Músicas que narram fatos e registros do dia a dia, evidenciando figuras e assuntos de relevância nos destaques sociais, culturais e religiosos.

Após todas essas citações sobre a importância da música na evolução humana, pergunto:

Por que razão essa linguagem, que é abrangente, maravilhosa, cheia de adequações e utilidades e que acompanha o homem desde os primórdios da humanidade e é definida como linguagem das musas, de onde se originou o próprio nome (música), havia desaparecido das escolas e da formação cultural do povo brasileiro?

Música por acaso não é cultura?

Discriminação cultural é ou não crime?

Música com letra e a projeção na quarta dimensão

A música se divide em três partes: melodia, harmonia e ritmo.

Melodia – Combinação sucessiva de sons (uma linha imaginária sinuosa e sonora).

Harmonia – Combinação simultânea dos sons (bloco sonoro).

Ritmo – Equilíbrio dos movimentos (pulsação sequenciada).

Partindo dessa tríplice divisão da música e tentando definir a visão representativa e filosófica de cada uma de suas partes, acredito que a melodia representa a criatividade. É importante salientar que criatividade é definida como inspiração. Sendo assim, independe do grau de intelectualidade ou erudição. A própria história comprova que, desde os primórdios da humanidade, clãs mais primitivos encontraram melodias que foram criadas bem antes do surgimento das notas musicais. E, com toda a evolução dos tempos, ainda hoje encontramos pessoas que tocam instrumentos sem conhecer as notas musicais e compõem músicas lindas simplesmente pelo dom da criatividade. Portanto, o simples conhecimento das notas e da teoria musical não promove o dom da criatividade.

A harmonia, por ser uma elaboração arquitetônica sonora que é a combinação simultânea de sons (blocos sonoros), é essencialmente matemática e pode ser vista ou definida como sendo a representante da inteligência humana.

O ritmo pode ser definido como representante da emoção. As canções românticas normalmente têm ritmos lentos e promovem relaxamento. As músicas com ritmo acelerado, ou rápido, estimulam excitação, agitação e até irritação — dependendo do peso da marcação rítmica.

Ciente de todas essas comprovações, eu acredito que trabalhar com música é propiciar estímulos benéficos à criatividade, à inteligência e à emoção.

Quando uma composição musical tem letra, é porque houve uma elaboração artística com fusão de duas ciências: música e literatura.

No contexto artístico, a prosódia literária adaptou-se à prosódia musical.

No processo de comunicação, a mensagem é transmitida oralmente através do canto.

Cantar é promover a emissão oral de uma mensagem em que os sons ou fonemas das palavras são submetidos às nuances e oscilações sonoras de uma melodia.

Se a música e a sua divisão tríplice — melodia, harmonia e ritmo — projeta o ser humano numa terceira dimensão, deve-se ao fato de essa ciência ter sido formada através da criatividade, inteligência e emoção. Portanto, juntando esses três elementos com a literatura (letra da música), o ser humano é projetado numa quarta dimensão ao assimilar a mensagem literária, que vem a ser o discernimento (compreensão) de um fato transmitido através de uma poesia musicada.

Em toda e qualquer música cantada, o texto literário está sempre dizendo alguma coisa. Portanto, vendo por esse ângulo, acredito que aprender cantando aumenta os estímulos e as possibilidades de uma agradável assimilação na fixação de conteúdos, sejam eles educacionais ou não.

a) Um conteúdo pode ser ensinado apenas com palavras escritas ou faladas.

b) O mesmo conteúdo ensinado com música e poesia amplia o campo dos estímulos.

Na poesia, o conteúdo literário é realçado com a estética das rimas na emissão de fonemas com sonorizações semelhantes e que sempre foram agradáveis à audição.

Na música, o conteúdo literário acopla-se às extensões melódicas, que são variadas, submetendo as palavras às silhuetas nas emissões de alturas, na formação de linhas que são essencialmente imaginárias e sinuosas.

Nas pulsações rítmicas, como se fossem batimentos cardíacos, a aprendizagem torna-se mais rica, dinâmica e interessante.

No (a) – é uma coisa: somente palavras…

No (b) – é outra coisa: além das palavras com elaboração de rimas, tem a melodia, a harmonia e o ritmo.

Como arte-educador, eu sempre constatei que a cada instante de nossa existência nós convivemos com expressões artísticas:

Nós moramos em casa ou apartamento — construção que veio da arquitetura.

Nós nos alimentamos com comidas elaboradas pela arte culinária.

As roupas que vestimos, os sapatos que calçamos são confecções de arte.

A arte do cabeleireiro é cortar e cuidar de cabelos.

Os carros têm designs que são manifestações de arte.

As cidades — com casas e prédios arquitetados e organizados em ruas; praças com fontes adornadas por esculturas; monumentos com estilos e cores variadas; museus, bibliotecas e teatros — são acervos culturais que provam, e quase gritam, para nós o quão importante é a arte na vida dos seres humanos.

A própria natureza é uma obra divina e artística.

No entanto, o que comprovo e lamento é que as escolas costumam olhar para os professores de artes com certa indiferença…

Indiferença… Uma questão que envolve valores!

João Collares é acordeonista graduado pela Academia Brasileira de Artes Mário Mascarenhas, em Juiz de Fora – Minas Gerais (1958), e pelo curso superior de Música no Conservatório Alberto Nepomuceno da Universidade Estadual do Ceará (UECE),1970.

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