Edição 06

Matérias Especiais

A linguagem, o mundo e as coisas desse mundo que vêm a partir de tal relação…

Por Hugo Monteiro Ferreira (1)

“Quero aprender a ler para rezar pra Jesus. Preciso arrumar um trabalho e o patrão quer que a gente faça anotação. Tenho vergonha de não saber ler e escrever. Quero ajudar os meus filhos com a tarefa da escola. Estudei, mas tive de deixar. Sonho com o dia em que vou escrever uma carta para minha amiga que mora em Tupaoca.”

Texto Coletivo, Alunos do Curso de Alfabetização de Adultos do IEAK & LCC

“A leitura do mundo é anterior à leitura da palavra”, diz Paulo Freire. Entretanto sem o domínio da linguagem verbal, o homem, enquanto sujeito social, ocupa lugar à margem do sistema que governa as relações comunicacionais e generalizantes: a escrita.

A linguagem verbal sistematizada, a língua, quando não conhecida pelo falante (nativo ou não), representa um desafio ao exercício da cidadania. O indivíduo que não domina o universo escrito é colocado à margem das discussões sociais, pois lhe falta o instrumento pelo qual toda e qualquer sociedade é instituída: as regras “padronizadoras” do dizer as coisas sob a ótica do código alfabético.

A representação fonoestética do nosso universo semiótico possui especificidades que lhe conferem a condição de modelo institucional, ou seja, paradigma regente de ações, atitudes, formulações, proposições, discursos. Compreender o código alfabético, em suas nuances superficiais e profundas, significa interligar idéias e instrumentalizar argumentos, fatores essenciais ao bom desempenho no conjunto comunitário (2).

Quando o indivíduo social não consegue decifrar vocábulos, transformando-os em palavras, para logo em seguida, fazê-los frases e mais além, editá-los textos; dizemos que a sua compreensão em torno do que vem a ser o seu papel (função) no mundo das significações, está não somente incoerente como indica a inadequação ao sistema semiótico que criamos e por ele, de alguma maneira, também somos intensamente criados e sem o qual não há inter-relações possíveis de nomeação.

Reconhecer-se analfabeto em meio ao discurso contemporâneo (onde o homem precisa saber lidar com a linguagem digital) é tarefa árdua e impactante, é como, se de punho próprio, o sujeito assinasse atestado de improdutividade intelectual, requerimento de impossibilidade de crescimento social, incapacidade em termos empregatícios, portanto admitisse o fracasso em suas ações cidadânicas.

Pessoas analfabetas, em sua maioria, recebem, no Brasil, menos de um salário mínimo e pertencem, quase sempre, a uma, das muitas minorias, existentes em nosso mundo. Não é fácil ser iletrado. Esta situação gera dificuldades e incertezas. Torna quem a possui, espécie de patinho feio, peixe fora d’água, aquele que não sabe anotar recados, fazer nota de compras, ler a cédula do voto, ajudar na tarefa escolar do filho.

O analfabeto no Brasil é documentado. Na RG, ele registra a condição de não-letrado. Usa as digitais como forma de reconhecimento de sua identidades social. Segundo o IBGE, cerca de 15 milhões (13,3%) de brasileiros são analfabetos. O Nordeste é a região que concentra maior número de iletrados, ou seja, 7,18% das pessoas brasileiras as quais não conseguem reunir fonemas, morfemas, vocábulos, palavras, termos, estilos, sentidos e propor hipóteses.

Conhecer o mundo das letras é desejo de quase todos os que o desconhecem, porém, como todos os obstáculos, requer força de vontade a fim de vencê-los, de ultrapassá-lo. Um analfabeto, conforme os padrões internacionais, pessoas com mais de 15 anos de idade, portanto fora da idade escolar e que não consigam compreender o sistema alfabético de sua nação, não consegue formar conceitos adequadamente. Isto porque, segundo estudos cognitivos, a linguagem é peça central na formação do pensamento conceitual do ser humano.

Para que um analfabeto passe a formar conceitos adequadamente é necessário que ele estrutura a linguagem verbal que utiliza não somente em suas nuances significantes (orais), mas também em seus aspectos gráficos (escrita). Portanto para que um iletrado saia da escuridão do mundo dos não-alfabetizados, é importante que ele participe de um conjunto de atividades que o conduzam à desconstrução de “certos” conceitos e o possibilitem à reconstrução de várias significações.

Em uma alfabetização onde o sujeito é visto não tão-somente como um ignorante, mas antes como um cidadão não-letrado, possuidor de conhecimento empírico, a linguagem é trabalhada a partir de pressupostos reflexivos cujo maior objetivo é fazer com que a língua escrita não exclua a oral, mas a ornamente como uma nova modalidade da linguagem. Nesse sentido, aprender a ler e a escrever é muito mais que reunir sílabas e memorizar palavras, é, como dizia Paulo Freire, uma forma de emancipação, de libertação sócio-existencial.

Alguns pontos importantes devem ser considerados para que pessoas analfabetas não se sintam diminuídas no que diz respeito a sua condição não-alfabetizadora: trabalhar auto-estima; enfatizar a importância da aprendizagem para a vida; possibilitar ao sujeito um reconhecimento de seus limites e de suas possibilidades; disponibilizar material que o torne agente de significados; pesquisar e estimular as mais variadas inteligências existentes no sujeito sócio-histórico.

Os métodos existentes para alfabetização de adultos são, quase todos, baseados na proposta sócio-construtivista de Freire. Modificam aqui ou ali. Todavia na prática procuram fazer com que o aluno trabalhe a língua a partir de palavras geradoras de outras palavras. Salientamos que antes de qualquer ação escrita, o sujeito precisa de ações orais, portanto textos (nas suas mais variadas expressões) devem ser sempre lidos e discutidos com os alunos.
1 Mestre em Letras e Lingüística. Coordenador do Projeto de Alfabetização de Adultos do Instituto Espírita Allan Kardec e Lar Ceci Costa. Professor da FAINTIVISA, UPE/PROGRAPE.

2 Conjunto comunitário aqui é idêntico ao conceito sobre conjunto social.

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