Edição 44

Matérias Especiais

A teoria psicogenética de Piaget

Fabiana Barboza e Zeneide Silva¹

O processo de construção do conhecimento compreendido a partir do referencial teórico piagetiano

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Existe uma questão fundamental que embasa a teoria psicogenética de Piaget, que é: Como o ser humano constrói o conhecimento? Em busca de uma resposta a essa pergunta é que Piaget desenvolveu a chamada Teoria da Equilibração. Nela, justifica-se o conhecimento como algo móvel e dinâmico, ou seja, há momentos de equilibração e momentos de desequilíbrio. O desequilíbrio acontece quando surge o chamado conflito cognitivo.

O conflito cognitivo se estabelece quando o esquema mental que o indivíduo possui já não contempla as situações nas quais está inserido ou já não supre suas necessidades. Então, acontece a desequilibração. Nesse momento, o indivíduo passa a desenvolver e a transformar ou sofisticar os esquemas mentais já desenvolvidos. Assim, passa a resolver a situação, e o equilíbrio se restabelece. Isso significa que o equilíbrio volta a ser majorante.

Os esquemas apresentam-se numa estrutura, ou seja, numa forma organizada da inteligência, uma estrutura cognitiva. A inteligência tem como função a constante adaptação dos esquemas. A adaptação utiliza-se tanto da assimilação (incorporar o objeto às estruturas e aos esquemas que o indivíduo já possui) como da acomodação (mudanças nos esquemas para dar conta da situação). Além disso, os esquemas se assemelham à ideia de modelo, que é a representação mental do objeto real, do objeto do conhecimento.

Já que os esquemas podem ser classificados como sendo de: ação (motores) e representação (conceituais), o conceito de modelo está ligado aos esquemas de representação. Em Piaget, representação é a capacidade de pensar um objeto através de outro, e é por esse motivo que estão diretamente relacionados ao conceito. Nos esquemas conceituais, para construir o conceito, o indivíduo não “traz” o objeto inteiro, mas apenas características ou propriedades fundamentais, ou essenciais, para construir uma representação, o esquema, desse objeto. Assim, o conhecimento é, na verdade, uma representação da realidade, ou seja, representar significa tornar presente novamente. Isso é a abstração. Abstrair é, na verdade, “descolar” do objeto real. O conceito só passa a ser conceito quando ele se “descola” do objeto.

As abstrações estão relacionadas diretamente às experiências. Tanto existem duas formas de experiência — física e lógica — como, respectivamente, existem duas formas de abstração — empírica e reflexiva. Na experiência física, a abstração empírica está presente porque o próprio objeto dá ao sujeito a informação de que precisa. Na experiência lógica, a abstração reflexiva está presente porque a reflexão do sujeito é que dá a informação necessária; e essa relação é lógica — sua ação sobre o objeto —, é o seu pensar sobre o seu agir.

Vale ressaltar que os esquemas de ação não estão vinculados aos reflexos, porque o esquema é uma ação intencional, a qual podemos manipular, e o reflexo não é intencional, embora, junto com o desenvolvimento, se transforme em esquemas.

Tudo isso converge para o argumento de que a ação no mundo implica uma coordenação de esquemas, que, por sua vez, têm a função de dar autonomia aos indivíduos. Aqui, autonomia está relacionada à ideia de plasticidade cerebral: a possibilidade de o cérebro ser modificado. Nesse sentido, o sujeito em Piaget é considerado epistêmico porque está sempre buscando elaborar hipóteses para explicar o mundo. Assim, a construção do eu e do objeto acontece a partir das frustrações, da necessidade de a criança desejar algo que não é ela, que está fora dela. E esse algo que está fora dela trata-se do esquema de objeto permanente: o objeto existe independentemente do sujeito; no caso, a criança. Para que ela identifique esse objeto fora dela, precisa representá-lo por algo que substitui esse objeto, que é a linguagem.

Quando a criança passa a compreender a função representativa da linguagem, esse fato provoca a função simbólica. A função simbólica significa que a linguagem é uma representação do pensamento. A palavra é a representação de uma ausência. Em Piaget, o pensamento se estabelece antes da linguagem. Entretanto, para que a linguagem possa se estabelecer, é preciso compreender que há um estágio anterior, que prepara a inteligência.

Em Piaget, há, na verdade, a ideia de estágios. Os estágios são caracterizados por certas formas de inteligência, e cada uma dessas formas integra e prepara os estágios seguintes. Os estágios são: sensório-motor, pré-operatório e operatório. Este último divide-se em operatório concreto e operatório formal². Respectivamente, a inteligência de cada estágio são as inteligências prática, representativa e operatória.

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A inteligência prática do estágio sensório-motor é marcada fundamentalmente pelo desenvolvimento das sensações e percepções e pelo desenvolvimento de conceitos fundamentais, tais como: eu, objeto, espaço, tempo, causalidade (causa e efeito), além do desenvolvimento da motricidade.

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A transição do estágio sensório-motor para o pré-operatório é marcada pelo nascimento da função simbólica, que surge com o desenvolvimento do objeto permanente (ambos vistos anteriormente neste texto).

A inteligência representativa do estágio pré-operatório é marcada pela introdução, principalmente, de três aspectos: da moralidade, da linguagem e do egocentrismo. Dentre esses três aspectos, aquele que se tornou a grande marca do estágio pré-operatório foi o egocentrismo. Entretanto, esse elemento deve aqui ser entendido no sentido de não conseguir realizar a empatia, ou seja, não conseguir ver o mundo pelos olhos dos outros. Ainda sobre esse estágio, a linguagem encontra-se no realismo nominal.

A transição do estágio pré-operatório para o operatório concreto é marcada pelo desenvolvimento da operação, e a transição do estágio operatório concreto para o operatório formal é marcada pelo desenvolvimento do raciocínio hipotético-dedutivo.

A inteligência operatória do estágio operatório concreto é marcada pelo desenvolvimento da reversibilidade e pelo sentimento de necessidade. A definição de operação, citada no parágrafo anterior, é, na verdade, a ação mental reversível, a ação interiorizada reversível. E reversibilidade é a capacidade de ir e vir em pensamento, ação e anulação, parte e todo.

Quais as contribuições da teoria psicogenética de Piaget para o construtivismo na Educação?

Uma das mais importantes contribuições da teoria de Piaget é considerar o sujeito como epistêmico, que está sempre buscando elaborar hipóteses para explicar o mundo. A partir desse parâmetro adotado por Piaget, em Educação, passamos a ter o parâmetro de que o processo de construção do conhecimento dos sujeitos envolvidos se desenvolve também pautado na autonomia. Essa autonomia é muito importante porque passamos a entender que ninguém transmite nada a outras pessoas, mas é a própria pessoa que organiza, escolhe ou estabelece, de forma autônoma, a construção do conhecimento. Para a Educação, ter a clareza de que a construção do conhecimento acontece de forma endógena (interna) é muito importante, já que muitos educadores avaliam seus estudantes apenas por aquilo que eles lhes mostram. Essa clareza da construção interna nos remete ao fato de que é necessário utilizarmos diversos instrumentos e recursos de avaliação para possibilitar aos estudantes diferentes formas de externar aquilo que construíram internamente. Outro aspecto fundamental é não basear a ação educativa na seguinte ideia: se é uma construção interna, não há necessidade de interferir nesse processo. Diante disso, em Educação, é preciso não confundir espontaneísmo com construtivismo. O espontaneísmo é que adota a ideia de que nada precisa ser feito para algo se desenvolver. Entretanto, seguindo o referencial de Piaget, a Educação, para ser construtivista, deverá se basear em atividades por meio das quais os educandos possam desenvolver o conhecimento necessário à execução delas mesmas.

Essas atividades, na verdade, são conhecidas em Educação como situações de aprendizagem. Na verdade, o educador propõe, escolhe ou determina contextos nos quais os educandos possam desenvolver os esquemas apresentados por Piaget. Vale ressaltar que, nessas situações de aprendizagem, se não houver interação, não há desenvolvimento. Portanto, consideramos que Piaget tem uma postura que considera e até mesmo baseia sua teoria na relação com o social.

Para determinar essas situações de aprendizagem, o professor precisa levar em consideração o conceito de conflito cognitivo proposto por Piaget. Aqui, conflito deve ser visto como algo bom, já que desenvolve o equilíbrio majorante. Portanto, é necessário identificar o conhecimento prévio dos estudantes e propor situações de aprendizagem que objetivem e desenvolvam os esquemas mentais desejados.

Assim, nos planejamentos, nas propostas de trabalho e nas atividades realizadas, é necessário que o educador tenha consciência de que a definição de competência, muito utilizada atualmente por Perrenoult, seria a coordenação dos esquemas de Piaget. A coordenação dos esquemas, na verdade, é algo presente em toda e qualquer forma de construção do conhecimento. Isso significa que as escolas podem estruturar seu currículo da maneira que considerarem mais conveniente (por disciplina, por projetos ou qualquer outra ordenação), mas é possível que a forma mais adequada seja determinando os esquemas mentais que devem ser desenvolvidos ao longo de cada série ou ciclo de acordo com cada fase proposta por Piaget.

Para desenvolver os conceitos de abstração e representação que Piaget pontua, é necessário que a Educação proponha estratégias que atuem no esquema mental puramente simbólico. Algumas dessas estratégias são brincadeira, literatura, cinema, pintura, escultura, enfim, as artes de um modo geral. Esse fato embasa a necessidade de a Educação não ser fragmentada, mas estar cada vez mais interdisciplinar e, quem sabe, chegar a atingir um grau tão grande de interdisciplinaridade que passe a ser transdisciplinar.

Enfim, podemos perceber, por meio desses argumentos, que a teoria de Piaget está muito presente na Educação atual e ainda contribui significativamente para o processo de construção do conhecimento.

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¹ Alunas do Mestrado de Psicologia e Ciências da Educação do ISLA, Leiria — Portugal.
² O operatório concreto e o operatório formal são considerados o mesmo estágio, mas com gradação diferente.

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