Edição 111

A fala do mestre

Anacronismos

Lécio Cordeiro

No artigo passado, por ocasião da Campanha da Fraternidade, desenvolvemos uma reflexão sobre a importância do amor ao próximo. Defendemos que a fraternidade, como todo valor moral, deve ser ensinada em casa e fora dela. Ao ler o artigo, algumas pessoas me questionaram sobre a validade de se trabalhar esses valores na escola, posto que,37 segundo elas, de modo geral, “Isso é tarefa da família e da Igreja”. Procurei argumentar, explicando algumas questões teórico-metodológicas subjacentes ao meu ponto de vista. Falei da BNCC, das competências socioemocionais, das diretrizes curriculares. Em vão. Algumas contra-argumentaram, outras se calaram, outras gritaram. O mais interessante é que nenhuma delas trabalha com educação.

Os nutricionistas sabem que há inúmeros especialistas em nutrição esportiva formados nos tutoriais do YouTube. Estes se sentem muito à vontade para receitar dietas para os amigos ou mesmo discutir com quem tem formação superior para isso. Nos tempos de hoje, em que tudo está no Google, acredito que essa postura impertinente atinge praticamente todas as áreas do conhecimento. As exceções aqui talvez sejam a medicina e o direito, pois, embora todo mundo se automedique, raramente alguém discute com o médico sobre um medicamento receitado. Podem até discutir com a equipe de enfermagem, mas não com os médicos. Do mesmo modo, ninguém questiona as explicações de um advogado.

38Não é o que acontece com a educação. Comumente professores e gestores escolares nos procuram desesperados para que justifiquemos algum posicionamento utilizado nos livros didáticos. Pode ser sobre o uso da letra cursiva na Educação Infantil, sobre a utilização de um paradidático no Ensino Fundamental, sobre a abordagem de algum tema “inadequado”, como a sexualidade em Ciências. A justificativa, quase sempre, é que precisam de respaldo para justificar esses apontamentos para as famílias.

Certa vez, uma professora de Biologia me falou que, nas suas aulas de Genética, o colégio a obrigava a iniciar sua exemplificação sempre do mesmo ponto: “Se um homem AABB e uma mulher AaBb se casam e dessa união vier um bebê…”. A intenção, de fato, é saber a probabilidade de o descendente ter este ou aquele gene. Mas não só isso. Os personagens do exemplo precisam ser casados para ter filhos porque a gestão determinou que seja assim, porque é o certo. Dessa forma, ela não pode falar de doenças sexualmente transmissíveis nem de métodos anticoncepcionais. Resultado: no fim das aulas, as alunas vêm aflitas lhe fazer perguntas do mundo real. “Os pais concordam com esse posicionamento?”, insisto. A resposta vem como uma pedrada: “Não”.

De fato, quem está na sala de aula, sobretudo nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, sabe que, de modo geral, os pais não dialogam com os filhos. A maioria se preocupa apenas em saber como estão as notas. Mas se um professor falar algo fora do padrão, como fraternidade, é bombar39deado com questionamentos sobre a validade de se trabalhar temas morais em sala de aula. Sem saber o que dizer, o professor se desespera à procura de explicações. Meus amigos, estamos falando de anacronismos impressionantes, gerações que não se entendem. Pior: se exasperam, pois é inviável o diálogo entre alunos do século 21 e pais e professores do século 20 em uma escola do século 19.

Àqueles que me procuram em busca de fundamentação, costumo dizer que precisamos ter muito claramente nosso papel enquanto educadores, sempre respaldados nos documentos oficiais. A BNCC tem valor normativo, concordemos ou não com alguns pontos, e, como lei, deve ser seguida. Precisamos conhecer as teorias que orientam o ensino das disciplinas que ministramos e o que há por trás de cada uma das habilidades que levamos nossos alunos a desenvolver ao longo da educação básica. Afinal os especialistas somos nós, não aqueles que em geral nos questionam movidos por preconceitos, desconhecimento e, pior, intolerância.

Desse modo, todo trabalho pedagógico voltado não só para a fraternidade, mas para as competências socioemocionais como um todo, é bem-vindo não só porque é lei, mas porque é fundamental. Fazem parte do pequeno arcabouço de conhecimentos que serão úteis aos nossos alunos em 2100, quando eles estiverem velhos, às portas do século 22. Respeitar, ajudar, ouvir o próximo são ações imperecíveis. Questionar a importância delas para a vida humana é o mesmo que acreditar que a linguagem se desenvolveria naturalmente em um Mogli ou um Tarzan, mesmo vivendo entre lobos e primatas, uma ideia do século 19. O problema é que, infelizmente, há muitas ideias anacrônicas vívidas entre nós. Diariamente vemos pais, alunos e até professores com ideias do século 15, defendendo-as com muita propriedade. Para eles, competências socioemocionais são modismos e, como tais, estão fadados a desaparecer. Não percebem que, na verdade, obsoleto é o seu pensamento.

Lécio Cordeiro é formado em Letras pela UFPE. É editor e autor de livros didáticos de Língua Portuguesa para os anos finais do Ensino Fundamental.
E-mail: leciocordeiro@editoraconstruir.com.br

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