Edição 35

Matérias Especiais

Autonomia e Identidade

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Os termos autonomia e identidade não costumam ser aproximados. Quando se fala em identidade, é a dimensão afetiva que, no mais das vezes, é salientada. Mas, quando se fala em autonomia, é a dimensão cognitiva que se impõe. Com efeito, fala-se em autonomia em relação ao fazer: dir-se-á de uma criança que amarra sozinha os sapatos que é autônoma para essa ação. Fala-se também em autonomia em relação ao pensar: a pessoa autônoma é aquela que sabe pensar por si só, refletir com seus próprios meios, inventar idéias e teorias, ao passo que a pessoa intelectualmente heterônoma é aquela que somente sabe decorar, repetir o raciocínio alheio, “reinventar a roda”. Finalmente, emprega-se bastante o termo autonomia em relação à moral: na perspectiva piagetiana, a pessoa moralmente autônoma é aquela que, nos seus juízos, baseia-se nos princípios da igualdade, da eqüidade, da reciprocidade e do respeito mútuo.

Então, como pensar a questão da identidade quando se pensa em autonomia? Nas dimensões do fazer e do saber, não se vê muito bem como articular os dois conceitos. Em compensação, isso parece possível e desejável na dimensão moral. Vamos, portanto, nos ater a ela.

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Autonomia Moral e Identidade

Para introduzir a relação entre autonomia moral e identidade, precisamos acrescentar uma nova definição ao conceito de autonomia: a pessoa é moralmente autônoma se, apesar de mudanças de contexto e da presença de pressões sociais, ela permanece, na prática, fiel a seus valores e princípios de ação. Assim, a pessoa heterônoma será aquela que muda de comportamento moral em diferentes contextos. Ora, vários experimentos de Psicologia, assim como fatos observados tanto em momentos históricos importantes (como as guerras) quanto no dia-a-dia (em instituições, torcidas, etc.), mostram que a maioria das pessoas é heterônoma. Poucas são aquelas que permanecem fiéis a si mesmas, a despeito do momento histórico em que vivem ou do lugar social onde se encontram. Vale dizer que, em certos contextos, muitas pessoas podem mostrar-se boas, justas, respeitosas, mas em outros, violentas, injustas, desrespeitosas, ou, pelo menos, menos boas, menos justas e menos respeitosas. Em resumo, o que se observa é que várias pessoas agem de certo modo em determinados contextos, mas que, em outros, agem como se fossem outras pessoas, como se sua identidade tivesse mudado.

Estamos, portanto, em plena relação entre autonomia e identidade. O conceito de identidade costuma remeter à idéia de que as pessoas têm certas características de personalidade que as acompanham nos diversos contextos. Todavia, o que acabamos de lembrar faz pensar que, longe de ser um conjunto fixo de características, a identidade pode ser extremamente elástica, volúvel, maleável. Logo, ao invés de ser autônoma, no sentido de relativamente imune a contextos e pressões grupais, a identidade seria essencialmente heterônoma, no sentido de dependente de fatores exteriores a ela. Daí uma conclusão possível: autonomia e identidade formam um par impossível.

Permanecer Fiel a Si Mesmo

Para tornar relativa essa conclusão, devemos lembrar o seguinte: nos experimentos de Psicologia e na vida real, há pessoas que permanecem fiéis a si mesmas, que se recusam a obedecer indiscri-minadamente a autoridade ou a submeter-se às pressões dos grupos.

Representam talvez uma minoria, mas existem: há pessoas que, em meio a multidões furiosas, recusam-se a xingar, bater e linchar; que, quando todos pensam de uma determinada forma, permanecem pensando de outra. Vale dizer, existem pessoas que possuem uma identidade estável, com valores que se conservam de um contexto para outro, ou seja, existem pessoas para quem o binômio autonomia–identidade é uma realidade. Logo, a questão psicológica que se coloca é procurar um modelo teórico sobre a identidade que dê conta tanto da autonomia quanto da heteronomia, e isso no campo moral.

Identidade

Propomos o modelo que explicitamos a seguir. Em primeiro lugar, precisamos definir identidade. Várias definições são aceitáveis, mas vamos nos fixar na seguinte: a identidade de uma pessoa é um conjunto de representações que ela tem de si. Dito de outra forma, cada pessoa tem imagens a respeito do que é, e são tais imagens que chamamos aqui de representações de si. Note-se que achamos preferível falar em representações (no plural) a empregar a expressão autoconceito, pois esta última sugere a idéia, falsa, de que a identidade é um todo simples, com uma imagem única ou dominante, enquanto, na verdade, são variadas as imagens que cada um tem de si, sendo que algumas delas podem se contradizer. Em segundo lugar, devemos ver o que há em comum nas várias representações de si. O que há em comum é que sempre são valorativas. Isso quer dizer que ninguém é neutro observador de si próprio: pensar sobre si é inevitavelmente julgar-se a partir de valores como bom, ruim, superior, inferior, desejável, indesejável, etc. É até simples de se compreender por que as representações de si são valores: como valor significa investimento afetivo e, como é natural, cada pessoa investe afetividade em si própria (narcisismo), decorre que as representações de si são sempre valor.

Em terceiro lugar, devemos saber se existe uma certa lógica que organiza essas representações entre si. Aqui, podemos empregar o conceito de sistema. As diversas representações de si compõem um sistema que pode ser descrito de duas formas diferentes e complementares.

Valores Centrais e Periféricos

A primeira: certos valores podem ser centrais, e outros, periféricos. Por centrais, entendem-se os valores mais fortes, e por periféricos, os mais fracos. Por exemplo, para uma determinada pessoa, ver-se como bonita (ou seja, ter de si a imagem de que é bonita fisicamente — o que não significa que o seja objetivamente, pois as representações de si, como seu nome indica, estão na dimensão simbólica, e não real) pode ter mais valor do que se ver como corajosa ou justa: nesse caso, a representação de si relacionada à beleza é central, e aquela relacionada à moral é periférica. A descrição das representações de si enquanto sistema no qual certos valores são centrais e outros, periféricos permite aquilatar a forma motivacional desses valores: os centrais têm maior força motivacional. Voltando ao exemplo acima, a pessoa para quem a beleza física é um valor central na sua identidade investirá maiores esforços na conservação ou no incremento dessa beleza do que investirá para ser corajosa ou justa, sendo esses dois últimos valores periféricos (e sentirá mais vergonha de não se ver como bonita do que de não se ver como corajosa ou justa).

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Integração

A segunda forma de se descrever o sistema das representações de si que compõe a identidade apela para o conceito de integração. Certas representações de si podem estar integradas entre si, enquanto outras podem estar isoladas. Por exemplo, uma pessoa pode se ver como justa e corajosa ou como generosa e humilde, enquanto outra poderia ver-se como justa ou generosa, mas sem nenhum outro valor associado. Em termos motivacionais, temos que quanto mais o sistema das representações de si é integrado, mais os valores que o compõem inspiram variadas ações coerentes entre si. Dito de outra maneira: os valores integrados são mais fortes que os valores isolados.

Heteronomia e Autonomia

Voltemos agora aos conceitos de heteronomia e autonomia. Pode-se prever a hipótese de que as pessoas moralmente heterônomas, no sentido daquelas mais influenciáveis pelos diversos contextos, são aquelas nas quais: (1) os valores morais são periféricos no seu sistema de representações de si e/ou (2) os valores morais estão pouco integrados entre si. Logo, nesse caso, sendo mais fracos, os valores morais têm menos força motivacional em contextos em que outros valores estão em jogo. E, reciprocamente, pode-se pensar na hipótese de que as pessoas moralmente autônomas são aquelas nas quais: (1) os valores morais são centrais e/ou (2) eles são integrados entre si. Neste caso, a pessoa resiste às diferenças de contextos, resiste às pressões do grupo, é fiel a si mesma porque os valores morais ocupam um lugar privilegiado e consistente no seio das representações de si.

Autonomia Moral

Se tal hipótese psicológica fizer sentido, temos possibilidade de pensar autonomia e identidade: a autonomia moral depende de certas características da identidade, entre elas, o lugar ocupado pelos valores morais entre aqueles que compõem as representações de si. Algumas provas empíricas tendem a referendar essa forma de interpretar os comportamentos morais e imorais dos homens (notadamente, com base na análise de personalidade de pessoas moralmente admiráveis).

Em termos pedagógicos, a concordância com o que acabamos de escrever implica que a educação moral não deve se ater ao desenvolvimento do juízo moral, mas também deve se preocupar com a construção da identidade dos alunos. Por exemplo, se o “clima de valores” no qual os alunos são imersos colocar em primeiro plano valores como riqueza, beleza, glória, fama, etc., será grande a probabilidade de sua identidade ser construída em torno desses valores, e não serão algumas atividades sobre ética ou direitos humanos que vão conseguir reverter esse quadro. Em compensação, se temas como justiça, coragem, generosidade, gratidão e demais virtudes fizerem parte do “clima moral” da escola, alguma chance há de se ter sucesso na construção da autonomia moral, na formação do cidadão.

Textos do Autor

DE LA TAILLE, Y. Ensaio sobre o lugar do computador na educação. São Paulo: Iglu, 1990.
________________. (em co-autoria). Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992.
________________. A educação moral: Kant e Piaget. In: MACEDO L. (Org.) Cinco estudos de educação moral. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.
________________. O sentimento de vergonha e amoralidade. In: AQUINO, J. (Org.) A indisciplina em sala de aula. São Paulo: Summus, 1996.
________________. O erro na perspectiva piagetiana. In: AQUINO, J. (Org.) Erro e fracasso na escola. São Paulo: Summus, 1997.
________________. Para um estudo psicológico da honra. In: BANKS-LEITE, L. (Org.) Percursos Piagetianos. São Paulo: Cortez, 1997.
________________. Limites: três dimensões educacionais. São Paulo: Ática, 1998.
________________. Autoridade na escola. In: AQUINO, J. (Org.) Autoridade e autonomia na escola. São Paulo: Summus,1999.
________________. Vergonha, a ferida moral: ensaio sobre a moralidade (título provisório). Petrópolis: Vozes. (prelo)

Yves de La Taille é mestre e doutor em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

Este artigo foi gentilmente cedido pelo autor, Yves de La Taille (Instituto de Psicologia – Universidade de São Paulo), e teve sua publicação na Revista Criança (MEC), edição dezembro/2001.

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