Edição 14

Matérias Especiais

CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2004

INTRODUÇÃO
Nós somos água. O corpo de um bebê é 90% água; o corpo de um adulto, 70%. Nosso planeta, à semelhança de nosso corpo, tem cerca de 70% de sua superfície coberta por água.1 Nós nascemos numa bolha de água. No ventre materno, passamos nove meses dentro de uma bolsa com o líquido amniótico. Ele contém todas as substâncias necessárias para crescermos até saltarmos para o mundo.

Podemos ficar várias semanas sem comer, mas, se não ingerirmos líquidos, em dois dias, começa o processo de falência múltipla dos órgãos, levando uma criança à morte em cinco dias, e, em dez, um adulto. Todas as formas de vida dependem da água. Não existe vida onde não há água. Por isso, do ponto de vista biológico, água e vida não podem ser separadas.

A saúde depende da água. A maioria das doenças do planeta é causada pelo uso de água imprópria para o consumo humano. Hoje em dia, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), aproximadamente 1,2 bilhão de pessoas não tem água de qualidade para beber e 2,4 bilhões não têm serviços sanitários adequados. A cada ano, morrem dois milhões de crianças devido a doenças causadas por água contaminada.

Nos países mais pobres, uma em cada cinco crianças morre antes dos 5 anos de idade por doenças relacionadas à água. A metade dos leitos hospitalares do mundo está ocupada por pacientes afetados de enfermidades relacionadas à água.2

No Brasil, o direito à água está absolutamente comprometido. Segundo dados da Organização Pan-americana de Saúde (Opas), 20% da população brasileira não tem acesso à água potável, 40% da água das torneiras não tem confiabilidade, 50% das casas não têm coleta de esgotos e 80% do esgoto coletado é lançado diretamente nos rios, sem qualquer tipo de tratamento.3

No meio rural brasileiro, a situação da água potável é ainda mais crítica. Segundo dados da Associação Brasileira da Reforma Agrária (Abra), 90% da população rural brasileira não tem acesso a água encanada. Obviamente, água encanada não significa, necessariamente, água potável. Assim como não ter água encanada não significa não ter água potável. Muitas fontes rurais que abastecem diretamente as famílias são potáveis.

Entretanto, mais uma vez, os dados da Opas e do governo se aproximam. Somando-se a porcentagem rural com a urbana, aproximadamente 20% da população brasileira não tem acesso a água potável. Acrescentando os 40% que não têm água confiável, 60% da população brasileira (105 milhões de pessoas) vive em estado de insegurança quanto à água que consome.4

Poluir as águas, danificar os rios e os lençóis subterrâneos, destruir nascentes e depredar mangues significa atentar contra todas as formas de vida. Nesse sentido, a água tem uma dimensão vital e ética que precisa ser cultivada, e não podemos permitir que ela se perca. É de responsabilidade de toda pessoa, principalmente daquela que detém o poder e a decisão, zelar pela qualidade das águas e pelo acesso de todas as pessoas e de todos os seres vivos a elas.5

Água, necessidade e direito de todos
A água é uma necessidade primária, portanto, direito e patrimônio de todos os seres vivos, não apenas da humanidade. A água é, por excelência, um bem de destinação universal. A primazia da vida se estabelece sobre todos os outros possíveis usos da água. Nenhum outro uso da água, nenhum interesse de ordem política, de mercado ou de poder pode se sobrepor às leis básicas da vida.
Nesse sentido, a ONU coloca a água para consumo humano no contexto do “direito humano à alimentação”.6 Várias organizações não-governamentais lutam por essa dimensão da água em nível planetário.7

Dimensões e valores
Além de usos, a água tem dimensões, valores e significados que precisam ser respeitados, porque são referências fundamentais para muitos povos. Eis, a seguir, alguns valores, dimensões e significados da água.

Valor biológico. O valor supremo da água é o biológico. Abiótica em si mesma, a água é o fundamento de todas as formas de vida, e a vida não existe sem ela. A água é biologicamente imprescindível e insubstituível. A vida não pode existir sem ela, e ela não pode ser substituída por outro elemento.

Valor social. Impossível pensar numa sociedade saudável, harmônica e em paz sem água de qualidade para todos os seus cidadãos. O próprio valor biológico da água exige seu valor social. O que é um bem social exige controle social. Significa que, por mais importante que seja o trabalho dos especialistas do ramo, a população não pode delegar a eles o gerenciamento exclusivo das águas.

Valores simbólico e espiritual. Muitos povos têm rios, lagos e nascentes considerados sagrados. Um exemplo clássico é o Rio Ganges, na Índia. Para os negros brasileiros, de origem africana, as próprias fontes têm um orixá residente. Para os índios carajás, do Araguaia, no fundo das águas do Rio Araguaia está a origem de seu povo. Os cristãos têm na água um valor simbólico extremamente forte, encontrando-se a água presente nos rituais fundamentais, como o Batismo.

Valores paisagístico e turístico. A água proporciona paisagens maravilhosas. A beleza das praias, das cachoeiras, das correntezas e dos desfiladeiros atrai multidões para vários pontos de todo o planeta. As praias de toda a costa brasileira, as cachoeiras de Foz do Iguaçu, o delta do Parnaíba, os Lençóis Maranhenses, o Pantanal, a foz do São Francisco, as ilhas do Araguaia, o encontro das águas do Rio Solimões com as do Rio Negro são algumas atrações mundialmente famosas e que atraem turistas do mundo inteiro. Essas paisagens estariam mortas sem água de qualidade.

Dimensão política e de poder. O controle da água significa poder sobre todos aqueles que dela dependem. O sertanejo do Nordeste brasileiro sabe o que isso significa. Quando o proprietário da terra se apropria também da água (que, pela Constituição Brasileira, é bem de domínio público e não pode ser privatizada), ele mantém subjugada toda a população local. O mesmo fazem certos políticos que controlam a distribuição de água pelos caminhões-pipa.

O uso da água como instrumento de poder é condenado pela consciência moral e pela ONU. Apesar disso, em várias regiões do mundo, a água é instrumentalizada como mecanismo de pressão e controle. Caso clássico é o do Oriente Médio, onde o controle dos recursos hídricos tem papel estratégico. A instrumentalização da água como arma de pressão é um crime contra os Direitos Humanos, pois viola o direito à vida.

Dimensão poética e artística. A água é uma fonte de inspiração para poetas e músicos. No Brasil, compositores renomados, como Luís Gonzaga, Tom Jobim, Guilherme Arantes e outros, registraram em suas músicas a beleza, a abundância e a importância das águas para o povo brasileiro.

Dimensão saúde. A água é fundamental para a vida. Todos dependemos dela para uma vida saudável. Não há povo sadio sem água de qualidade para seu consumo. Segundo os preceitos legais, embora toda a água oferecida ao consumo humano deva ser potável, é cada vez menor a confiança dos consumidores na água encanada oferecida à população brasileira.

Os especialistas explicam que, devido às múltiplas formas de contaminação, é praticamente nula a confiabilidade dos processos convencionais de tratamento de água de mananciais que recebem esgotos de centros urbanos, efluentes industriais e poluição difusa decorrente de práticas agrícolas inadequadas que, devido ao uso intensivo de insumos químicos, carrega grande quantidade de elementos tóxicos aos mananciais. Portanto, águas captadas de bacias hidrográficas não protegidas podem não ser confiáveis para abastecimento público.

Dimensão ecológica. Não são apenas os seres humanos e os animais domesticados que têm direito à água, mas todas as formas de vida. O zelo pela qualidade das águas é um dos fatores mais importantes para a biodiversidade, juntamente com o zelo pelas florestas e pelos solos. A agressão aos rios e mares é a forma mais radical de eliminar a variedade das espécies e o número de seres vivos que vivem nas águas.

Todas essas dimensões da água, com seus múltiplos usos e valores, tornaram-se objeto de estudos especializados e de debates políticos porque, pela primeira vez na história humana, estamos percebendo a falta d’água não como um fato localizado ou emergencial, mas como resultante de ações humanas, que colocam em risco a sobrevivência.

Não é exagero dizer que estamos diante de uma das mais graves crises do século XXI: das atitudes que agora tomarmos, dependerá a vida das gerações futuras. É imperativo conhecer melhor a natureza dessa crise.

1 Roberto Malvezzi, Texto da água, CD Pachamama: terra e água. Comissão Pastoral da Terra (CPT), 2000.
2 Cf. documento do grupo Whead, distribuído na Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio + 10, realizada entre agosto e setembro de 2002, em Johanesburgo,
África do Sul (Whead = Water, Health, Energy, Agricultural e Diversity).
3 Cf. Seminário Água para todos, realizado dias 27 e 28 de janeiro de 2003, em Porto Alegre (RS), durante a programação do Fórum Social Mundial.
4 Cf. Flávio Valente, Projeto Relatores Nacionais DHESC: Direitos Humanos à Alimentação Adequada, Água e Terra Rural. Versão Genebra, 2003. Internet.
5 Cf. Cáritas/CPT, Bendita água. Goiânia, Terra, 2002.
6 Cf. Roberto Malvezzi, Direito humano à água como alimento. Internet, 2002.
7 Cf. Food First Information and Action Network (Fian), Fian and the human right to water. Internet, 2002.

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Fraternidade e água. São Paulo: Salesiana, 2003. p. 16-35.

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