Edição 120

Profissionalismo

Centenário de Paulo Freire

Nildo Lage

Foi Paulo Freire quem disseminou o alerta. Quem creu? Os verdadeiros educadores! Estes aferiram, refletiram, delinearam metas e agiram. Progrediram, evolucionaram técnicas, aprimoraram práticas… Visualizaram o horizonte de uma aprendizagem progressiva e compuseram veredas. Ao atinarem, tinham se achegado ao aluno, atraído a família, dando, aos que passaram sob sua regência, o privilégio de experimentarem uma formação edificada à base da liberdade.homem_negro_quadro_professor_AdobeStock_314407926_Pixel-Shot

Mesmo ante a impassibilidade, o professor Freire não abdicou. Partiu para o alvo. Investiu, contornou conflitos, suplantou dificuldades, manteve a resistência e, assim, instruiu até mesmo os que criam doutrinar que tais preceitos conduzem a ilação de que: “Ninguém nasce feito, é experimentando-nos no mundo que nós nos fazemos” (Paulo Freire).

De tal modo, experimentou, fez, refez… Reiniciou… Gritou. O brado retiniu pelas dependências da escola, acionando o alarme que assentou os verdadeiros educadores no portal dos desafios. O encargo? Uma educação que promovesse o livre-arbítrio. Tropeçou na resistência do sistema. Recorreu à base do aluno. A família estremeceu e, no instante seguinte, virou a cara. Ele apelou para os colegas. Poucos deram atenção.

Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.

Não cedeu. Desistir não fazia parte dos seus planos. Por isso, protestou; e, quanto mais clamava, mais a indiferença dos “cumpridores de calendário” se acendia, a apatia do sistema granjeava grandeza. Cresceu tanto que chegou ao ranço, converteu-se numa muralha. De tão altiva, abordou o ponto de muitos educadores não ousarem dar um passo para se aproximar do aluno para que ambos se tornassem nós.

Como fidedigno educador, não cedeu. Sentiu a esperança avivar com o agir dos verdadeiros educadores e disseminou uma cadência de coordenadas aos que criam que tais preceitos pudessem alcançar até os que desconheciam que: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (Paulo Freire).

Não teve jeito! O mestre correu, falou, lutou… Enfastiou… Perdeu as forças, voltou ao pó. Todavia, sua filosofia, seus atos e, nomeadamente, suas atitudes abalizadas no diálogo ressoam como contragolpe.

Contudo, nossa educação é desleixada. De tão prolixa, não seduz. O descaso aborda o desmazelo, e, como o sistema não oferece o mínimo de estruturas para converter o aluno num indivíduo ativo, destaques continuam sendo pontos avulsos, pelo fato de a escola arrostar o educando como baú, que deve arquivar conteúdos, arremessados por aquele que ainda crê ser o administrador do conhecimento ― o educador.

Freire doou tanto à educação que sua dedicação causou prescrição

Como todo professor que não abdica com receio de encarar desafios, Freire não se deteve ante críticas, até mesmo quando afrontou o aluno como ser passivo, e ousou se posicionar como retentor do conhecimento, por apreender que a educação só se desviaria do conservadorismo se despertasse da hibernação histórica para acionar a consciência crítica e, assim, romper os entraves por meio de uma educação libertária.

Ele aprendeu que, assim como os erros instigam a busca de acertos, desistir do alvo humanização era se conformar com os arcabouços desumanizantes da sua época. E foi de tal modo que recondicionou o olhar para desviar olhares de um abismo que, nos dias de hoje, sorve a essência da própria educação; para que se pudesse visualizar, no horizonte da sala de aula, que educação pode ir além do transmitir conteúdos, basta politizar; para que a consciência crítica desperte como ferramenta transformadora e, assim, forme indivíduos práxis, por acreditar que, com a práxis humana, numa integração solidária e dialética, é possível conciliar agir com pensar lógico.

Para um sistema obsoleto, é tudo abstruso. Todavia, Freire não se desviou do alvo. Seu atuar se converteu em tendência. E esse ponto de convergência, que posiciona a educação como instrumento de formação do humano, granjeou espaço por acreditar que a consciência crítica exercita a prática da liberdade, exclusivamente, de expressar e que, se o professor proporcionar um ambiente atraente, adotando a democracia como plataforma, é possível edificar relações dialógicas de ensino para harmonizar um aprender mútuo.

De tão fidedigno, ainda é bombardeado. Por quê? Não é preciso voltarmos no tempo para encontrarmos respostas. Freire foi constante, dedicado, muitas vezes obstinado. Almejava uma educação inclusiva e, na tentativa de transformar o espaço que forma para a vida num ambiente envolvente, ousou politizar o discurso pedagógico.

A politicidade foi asfixiada pelo conservadorismo. Pois o sistema deu ouvidos aos ecos procedidos da sala de aula, e estes prenunciaram que ser educador conservador é tudo de bom. Professor conservador é comodidade, e comodidade descomplica a prática que não decreta investigação para arriscar experimentar o novo.

Porque sua bíblia, o livro didático, é caminho de mão única, verdade e vida, que é recauchutada a cada três anos para não perder a magia. Assim, ninguém aprende se não adotar suas fórmulas prontas, e o sistema igualmente fica à vontade, por ser dispensado da responsabilidade de oferecer suporte, por não ser cobrado, exclusivamente, para introduzir as inovações tecnológicas na sala de aula.

É surpreendente como o conservadorismo acomodou confortavelmente o professor numa bolha. A influência é de uma grandeza que chega a ponto de não permitir formação, e, ao se recusar a ser um trabalhador reivindicador, ações que transformam comportamento são contidas.livros_pilha_AdobeStock_96376485_Artenex

E, como todo profissional que não aceita aprimorar para evoluir, admite que seu grito seja contido, permitindo ser subserviente para se conservar na sala de aula sem conflitos e cumprir, tão somente, protocolos. Tais atitudes assentam os três pilares do fracasso na escola: deformidade idade-ano, reprovação e abandono escolar.

Esse retraimento isola escola de sociedade, alarga a extensão entre aluno e seus sonhos. Abdução que, além de impedir mudanças, descarta os nortes para redirecionar ações, transformar práticas, evoluir ferramentas. Esse não agir aloca, milimetricamente, no mesmo espaço, professor e sistema de olhos vendados tão somente para alimentar o conservadorismo como tendência.

Como mudanças são imperceptíveis, questionamentos persistem: quem se atenta com o futuro do aluno? Quem? Governo? Educador? Sistema? Família? Gestor? Quem se atreve a se manifestar? Ecos silenciam asfixiados pelos velhos paradigmas, e o retorno são educandos frustrados, rompendo os portões da escola, decididos a não retornar.

Foi assim! Sempre foi assim! O conservadorismo se converteu num conservante, e, como é gerenciado por ações aleatórias, poucos são atingidos; e, sem uma linha de ação acentuada, a escola arquiva o aluno aqui, o professor ali, a família Deus sabe onde. E, como a pandemia não permite aproximação, tudo se adaptou. No frigir dos ovos, nada de aprendizagem, tampouco desenvolvimento humano.

Por quê? Nosso sistema tem resistência às ferramentas digitais. E, por nada, permite-se evoluir para chegar ao mínimo, como aulas remotas, mesmo com as tecnologias clamando anos a fio no portão da escola, implorando por uma oportunidade para adentrar como parceiras da educação.

A situação, de tão crítica, está virando piada. Há uma parcela de educadores que não sabe ligar um computador. O motim criou o grupo dos giram-giram… Põem a mão na cabeça, olham para os lados… Giram para lá, para cá, e ruem. O que vamos fazer? Como produzir uma aula? É lastimável, pois são os frutos dessa insuficiência que cerram os horizontes da educação, e, quando educação não atrai, tampouco liberta, o resultado é contexto nas páginas policiais dos nossos jornais.

 

O efeito pode ser visto pela janela da própria escola: o submundo social seduzindo vidas, que são aprisionadas numa sociedade que poda oportunidades; e muitos, para continuar a viver, tornam-se déspotas que ceifam sonhos, a vida do outro, porque o descaso desmorona os fundamentos da educação, que é a liberdade, e, no mesmo processo, o direito e a oportunidade de ser livre.
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Poucos se atrevem a questionar: “Por que vidas são interrompidas no meio do caminho?”. Como educadores, sabemos que, sem reflexão e interação entre os envolvidos no processo ensino-aprendizagem, educação escolar é maquiagem, embromação! Se sujeito-sujeito não canalizam olhares e encaram os mesmos horizontes, as perspectivas de vitória esvaecem pelo fato de a relação sujeito-mundo não sobrevir!

 

Nosso sistema tem resistência às ferramentas digitais. E, por nada, permite-se evoluir para chegar ao mínimo, como aulas remotas, mesmo com as tecnologias clamando anos a fio no portão da escola, implorando por uma oportunidade para adentrar como parceiras da educação.

Ainda que muitos não acolham seus conceitos, Freire deixou além de discípulos: um legado

O surpreendente no universo de Freire é que, vinte anos após sua morte, este planeta não perdeu o fulgor nem obstruiu a rotação. Seus exemplos são nortes, seus ensinamentos se conservam tão vivos a ponto de os gritos ecoarem ainda mais ensurdecedores, salientando que, se fossem acatados, a educação seria outra, o mundo seria outro, pois teríamos cidadãos cônscios, livres, humanizados. Assim, quem ousa lembrar Paulo Freire? Quem se atreve a expor o seu legado à educação?

Os verdadeiros educadores! Heróis que fazem, da missão de ensinar, a arte de formar para a vida. Estes não dependem de porta-voz, têm ousadia. O seu agir é o veredito. Agir que se tornou haste. Pois o professor Freire não apenas gritou para exceder aos brados dos militares. Idealizou, reinventou, por ter ciência que seu agir na educação arraigaria vidas das trevas, do analfabetismo, do submundo social, para as posicionar no ponto de partida.

Por isso, fez, e esse fazer instiga reinventar o artifício de ensinar, exceder ao marasmo de transmitir conteúdos, salientando a verdadeira arte de ensinar por meio da troca de saberes agenciados pela aproximação, por experimentar que aprender e ensinar estabelecem contato, relacionamento, intimidade, confiança e diálogo.

Se, para a maioria, o agir de Freire não deixou legado, seus exemplos não foram lições… Os seus gritos por mudanças ecoam como alerta! Alerta que silencia vozes, e é no impacto desse silêncio que os ecos de que educação é junção de valores ressoam pelas dependências da escola, para conservar o silêncio daqueles que atuam para suplantar as dificuldades e fazem a diferença para transformar realidades por meio da educação: os verdadeiros educadores.

O reflexo de tais conquistas clama, do outro lado do muro, como resposta de que a verdadeira educação emana da permuta de saberes ricos em valores, e, para tal, relacionamento e respeito ao olhar do outro são setas que conduzem a uma aprendizagem que, além de transformar comportamento, guiam para a vida.

É surpreendente que, mesmo depois de ter os seus olhos cerrados, seus reflexos cintilam tão somente para trazer à luz a dimensão do caos, para compreendermos que só formaremos para a vida quando permitirmos inovações que atendam uma geração que não permite cabresto, tampouco ser mantida enclausurada num curral para ser adestrada, em cujas cercas é impedida de explorar o mundo.

Pois Freire, mesmo vivendo numa época em que o tradicional imperava, visualizou um mundo novo, por captar, no silêncio do educando, brados por uma educação libertadora.

Seu legado, além de defender uma educação libertadora, desperta em cada um de nós — educadores — a consciência de que, para formar para a vida, é preciso encarar a realidade. Realidade que grita nos labirintos da escola por uma oportunidade, e esse grito são vidas que debatem para transformar suas realidades por meio da educação, não permitindo ser arraigadas do seu mundo.

E mesmo ante a resistência do sistema, do próprio educador, a herança freiriana orienta, enriquece gerações de educadores, e são esses diferenciais que dilatam olhares, promovem leitura de mundo e, quando receptam, conseguem decifrar que o envolvimento no processo educacional suplanta o difundir e receber informações, atinge a meta aprendizagem.

Assim como “a educação sozinha não transforma a sociedade”, a resistência de educador e o sistema afiançam a inexistência de melhorias. O que suaviza é a consciência educacional, refletida nas ações dos verdadeiros educadores.aula_pandemia_sala_mascara_AdobeStock_371578377_Drazen

Todavia, essa diferença não está sendo o bastante para conscientizar um sistema sem norte de que valorizar o verdadeiro educador é proporcionar condições para resgatar vidas do submundo social. Valorizar é preparar, e preparar é visualizar, é aprontar um profissional que edifica para a vida, proporcionando suporte que conecta conteúdos a valores para concretizar sonhos.

Assim, lembrar Paulo Freire estabelece humildade para se curvar ante a grandeza do seu trabalho, pois somente quem deixou sua marca no horizonte da educação do planeta pode se orgulhar do próprio feito, e não é necessário esperar o centenário para salientar esse legado.

Só quem ousa explorar o universo Freire descobre que livre-arbítrio é agenciado pela educação dialógica libertadora, que transforma em elo para aproximar educador de educando na busca do novo, e esse contemporâneo convida o professor a experimentar o diálogo e a ação compartilhada como metodologias de aprendizagens mútuas.

Quando diálogo e ação se fundem em nome da aprendizagem, a relação professor-aluno se torna pilar que proporciona visão do ponto em que ambicionam chegar. Pois ir além se converte na mola propulsora que instiga o educador a esquadrinhar o mundo temático dos seus alunos para proporcionar um aprender homogêneo.

Romper a distância é o revide de que as buscas abordaram o ninho das atuações freirianas, que foram além de preleções, são herança deixada às novas gerações de educadores que ambicionam promover um mundo melhor através de uma educação crítica e libertadora; e liberdade salienta que educar não é meta, é missão que decreta engajamento, pois, quando a magia de quem transfere conteúdos contagia quem absorve, atende aos anseios daquele que brada por conceitos e temas contemporâneos para sair do lugar-comum e crescer de forma ativa.

De tal modo, para falar de Paulo Freire é preciso norte. Seus preceitos são coordenadas que sinalizam a gênese da autêntica educação, a verdadeira, a que inclui e forma para a vida. Seus nortes são flechas que miram nos alvos a formação, a libertação, para alcançar aquele que, mesmo com potencial para edificar o próprio conhecimento — o aluno —, necessita de direcionamentos, e não ser arremessado na sala de aula gerenciada por um sistema escolar clássico, que não abre mão da homogeneização por não abrir mão do círculo vicioso.

Quando tomamos ciência de que a realidade é tudo que não almejamos e emudecemos, permitimo-nos ser tratados como robôs — cuja programação acata os comandos do bloco dominador —, e, quando consentimos que vontades e desejos alheios direcionem ou redirecionem o nosso agir, deixamos de ser nós.”

E que não venham os resistentes, crentes de que suas ideias são oriundas do mundo novo. Somente quem se doou para um setor tão nobre pode deixar mais que referências, legados, num período que constitui transformações intensas.

Nem estudiosos hodiernos ousaram respostas para tais preceitos, tampouco questionarem. Por que Freire foi tão preciso nas suas prevenções? É simples! Porque, mesmo formado num século em que o padrão de ensino alocava todos no mesmo molde, o seu eu gritava por novo, porque queria mais, e esse eu não foi egocêntrico, pois, durante toda a sua trajetória de educador, alertou, sinalizou, doou-se, por ter a certeza de que a consciência das coisas estabelece mudança educacional.

E, quando tomamos ciência de que a realidade é tudo que não almejamos e emudecemos, permitimo-nos ser tratados como robôs — cuja programação acata os comandos do bloco dominador —, e, quando consentimos que vontades e desejos alheios direcionem ou redirecionem o nosso agir, deixamos de ser nós.

E, ao deixarmos de ser nós, abrimos mão do sonho maior que é ser livre, pois Freire deixou a cada um que passou sob sua regência o que é preciso para se tornar libertador do próprio eu, que estabelece saberes e livre-arbítrio para fazer escolhas através de habilidades e competências que promovam o tão ambicionado desenvolvimento humano.

Quando a educação não é libertadora, o sonho
do oprimido é ser o opressor
(Paulo Freire).

Por isso, de tão fundamental, Freire não precisa ser lembrado no universo educação. Sua fidelidade ao ofício o posicionou como soldado que honrou o posto e manejoucom maestria a arma mais poderosa para sobrepujar a ignorância, pois o legado deixado o assentou num trono que o próprio trabalho arquitetou: Patrono da Educação Brasileira.criancas_sala_aula_AdobeStock_288862877_vectorfusionart

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