Edição 21

A fala do mestre

Com a Palavra, o Autor

Luciana Sandroni

Na minha fase de mestrado, entrevistei 23 autores de literatura infantil e juvenil, analisei os depoimentos e tentei traçar um perfil desses autores. O tema das entrevistas foi o processo de criação: como é escrever e ilustrar para crianças e jovens?

Essa idéia nasceu durante um curso que fiz com a professora Cecília Almeida Salles sobre a Crítica Genética, na PUC de São Paulo. O nome assusta, mas a essência dessa nova teoria talvez seja perguntas que nós fazemos todos os dias ou pelo menos algum dia já as fizemos: quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Essa curiosidade pela origem da vida nos persegue, e o pesquisador de Crítica Genética leva toda a sua curiosidade para a origem das obras de arte. Ele pesquisa o que o autor decidiu que vai ou não entrar na obra. Aquela obra, que antes parecia feita num passe de mágica, é analisada como uma teoria científica. As tomadas de decisão, os cortes, os assassinatos de personagens — no caso dos literatura —, as encruzilhadas, enfim, esse labirinto que antes pensávamos impenetrável para alguém de fora é estudado com todo o rigor científico. Algumas pessoas não acham isso grande coisa, afinal o pesquisador de Crítica Genética é, na verdade, um grande abelhudo, que vai fuçar exatamente aquilo que o artista teve todo o trabalho de esconder. Mas não, não é com esse intuito que um pesquisador se debruça sobre o manuscrito. Na verdade, ele quer tentar compreender o mistério da criação, quer questionar o mito de que a obra já nasce pronta, de que o artista tem dons, de que recebe a visita da musa inspiradora, etc. O pesquisador de Crítica Genética sabe que não vai desvendar o mistério da criação, mas consegue perceber que o artista necessita de tempo, de disciplina e de métodos.

Esse curso me despertou muito interesse. O processo criativo dos artistas sempre foi um tema que me estimulou, mas nunca tinha lido nada sobre isso como teoria. O mistério da criação era assunto de poetas e cineastas, que questionam o processo de criação na própria obra de arte. Como Drummond, com sua luta com as palavras, ou Truffaut, em A Noite Americana, e tantos outros. Comecei a pensar em como trabalhar esse assunto com os livros infantil e juvenil e notei que não me interessava pesquisar manuscritos, mas sim discutir com os autores, ouvi-los falar sobre seu processo criativo e principalmente discutir os temas que se tornaram mitos sobre o artista que se dirige a crianças e jovens.

A literatura infantil tem uma história muito próxima à da literatura pedagógica. E, atualmente, os livros para esse público leitor são vendidos nas escolas, tendo assim um mercado já definido. É por essa relação tão estreita com a educação que a literatura para crianças é considerada uma literatura menor. Como comenta Edmir Perrotti, no seu livro O texto sedutor na literatura infantil:

autor_01Nem a literatura nem o escritor para crianças serão jamais idênticos à literatura e ao escritor para adultos. Se estes gozam de mais prestígio social, isso se deve a condições históricas que não serão alteradas enquanto a literatura e o escritor para crianças continuarem teimando em ser o que não são e não podem ser e enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente continuar a ser o que ele é hoje. A inferiorização social do público está diretamente ligada à inferiorização da arte a ele dirigida.

Será que isso influencia o processo de criação do artista? De que maneira? Criar para crianças e jovens é realmente mais fácil ou muito mais difícil? Os autores precisam estar em contato com crianças e jovens para criar? O livro infantil é feito num processo coletivo, em que escritor e ilustrador trabalham juntos, ou é fruto de dois trabalhos individuais? O fato de essa área ser discriminada entra no processo? Essas são questões que já me faziam querer encontrar respostas (ou mais perguntas) conversando com outros autores.

Minha intenção era detectar o que é único, o que é exclusivo do fazer literatura para crianças e jovens e quais os pontos que essa literatura tem em comum com o fazer arte em geral.

O primeiro aspecto que trabalhei foi a criação como um ato comunicativo, em que vemos que, no processo de gestação de uma obra, há o desejo do autor de se comunicar com o leitor e com a própria história da arte. O que em geral move o artista a criar é, muitas vezes, o diálogo com outras obras de arte. Os autores que entrevistei falam muito sobre esse assunto.

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Roger Mello conta:

Eu tive uma fase de muita paixão pelo Guimarães Rosa. Então ilustrava tudo dele, e comecei a me interessar mais por ilustração; a culpa foi do Guimarães Rosa. Eu achava tudo o que ele escrevia muito visual. Achava impossível ilustrar, e, por isso mesmo, eu tinha vontade.

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Angela Lago também comentou:

Acho que agora estou me alimentando de pintura, de artes plásticas de um período da primeira metade do século 20. Eu estou sorvendo isso, não sei o que vai acontecer. Estou lendo sobre expressionismo alemão, o movimento Fauve, cubistas na França, a pintura brasileira feita nesse período… É a coisa que mais adoro atualmente. Houve paixões das quais eu me alimentei, sim, para desenhar. Eu vi Escher, William Mauds aos borbotões antes de fazer o Cântico dos Cânticos. E cito eles tranqüilamente. Eles estão lá no trabalho de alguma forma.

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Bartolomeu Campos de Queirós afirma:

Eu sou muito encantado com a leitura; então tenho que ficar me policiando, porque às vezes começo a escrever, tenho uma idéia, lembro do poeta tal ou do autor tal e aí paro de escrever e fico lendo aquele escritor. Tem um diálogo grande entre a escrita e a leitura. Eu leio muito, gosto de ler, acho até que é uma coisa superior à escrita, para mim. Eu me sinto muito bem lendo.

Além de dialogar com outros artistas, o criador está sempre lendo e vendo seu próprio texto e desenho ganhando forma, aparecendo. O resultado do seu trabalho é efeito de um diálogo entre o artista e a sua própria obra: há uma interação total entre as posições de escritor e leitor, o criador é o interlocutor, e trabalham juntos.

Na preparação da obra, as duas posições se confundem. O autor descobre que é o seu primeiro leitor, mas que é um leitor especial, pois pode decidir e apontar caminhos. Há um momento em que o autor assume essa dupla função e quase opta por ser só o leitor. O trabalho está concluído, e o que resta é completar e refazer, o que é mais fruto da leitura do que da escrita.

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Ricardo Azevedo também comenta esse assunto:

O importante para mim é dar um tempo para o texto. Depois de ficar meses pensando naquele trabalho, é legal não pensar. Eu noto coisas que eu não via antes. Frases que não estão bem construídas, idéias que não ficaram claras. Você já está com distância, normalmente surgem coisas que poderiam estar melhor.

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O autor assume, então, a posição de leitor poderoso, mas muito mais leitor do que autor, pois às vezes até esquece o que escreveu, como conta Ana Maria Machado:

Eu gosto muito de deixar o texto na gaveta um tempo. Invariavelmente, quando vou ler, encontro coisas que tinha esquecido que escrevi e coisas que, daquela maneira, eu tinha me dado por satisfeita, e hoje não mais.

Ana Maria mostra bem que o autor, com esse distanciamento do texto, assume que é leitor de si mesmo: não lembrar do que escreveu é como se um outro autor tivesse escrito. Foi um outro autor que se desgastou com aquele texto, e não ela.

Outro aspecto que os autores comentaram muito e que ainda está ligado a esse tema da criação como um ato da comunicação é o fato de o leitor estar presente na cabeça do artista no momento da gestação de uma obra. O que quero dizer é que o artista pensa no leitor quando está trabalhando. Ele imagina se o leitor vai se emocionar em tal parte, se o leitor vai entender o que ele quis dizer, enfim, o artista do livro infantil e juvenil tem consciência desse leitor. Notamos essa consciência quando os artistas comentaram que têm uma visão nítida de seus leitores: para uns, esses leitores precisam de cuidados especiais, tanto no nível temático como no nível lingüístico.

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Luiz Antônio Aguiar comenta:

O tema das drogas para mim é complicado de falar. Eu não quero tornar ninguém neurótico, mas quero dizer: aproveite a vida, mas defenda-a. A gente tem que ter sutileza para falar nisso e, ao mesmo tempo, muito cuidado, porque a gente está lidando com vidas frágeis e vulneráveis. Tudo isso me cerca.

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Sobre esse tema, Ziraldo comenta:

Escrevo para todo mundo, para mim mesmo. Mas eu acho que menino de nove anos é que curte mais. Se bem que outro dia eu recebi uma carta de uma menina de sete anos, uma carta enorme, sobre o livro mais difícil daquela coleção ABC, que é a letra F. É a história de uma luta de boxe. As pessoas acharam esquisito. Mas será que a criança nunca viu luta de boxe? O mundo não tá aí na cara dela? Por que vou ficar fingindo que não tem luta de boxe? E como eu gosto muito de boxe…

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Ziraldo demonstra que se preocupa com o leitor. O leitor está o tempo todo lhe acenando. Mas, no final, o autor decide pelo que preferir. Isto é, a consciência de que escreve para um leitor criança não interfere na busca do melhor, na procura da beleza. O autor pode ficar em dúvida, mas é categórico ao dizer que não faz nenhum tipo de concessão por saber que seu leitor é uma criança ou um jovem. Marina Colassanti também comenta a visita do leitor no processo de criação:

Trabalhar sabendo que ia atingir muito o público infantil, no início, me deu um susto muito grande, um medo muito grande: o que vou dizer a ele? Ai, meu Deus! Que responsabilidade! Aí decidi que não ia me importar com isso. Que não ia pensar nessa questão, que essa questão é equívoca. Porque se eu sou uma pessoa decente, legal, que tem uma visão de mundo positiva, no sentido de ter uma certa intimidade com a vida, não tenho que me preocupar, porque o que eu disser vai estar dentro desses parâmetros, dentro desse universo que é meu. Se eu não sou essa pessoa, se eu sou retrógrada, se eu sou ranheta, se eu sou moralista, não adianta botar muito laço de fita em cima porque uma hora vai passar por baixo que eu sou moralista, que eu estou falsificando. Então resolvi não me preocupar. Resolvi escrever o que eu queria escrever.

Nesse comentário, Marina revela várias coisas. Primeiro: ela faz essa reflexão a partir do momento em que se vê diante do leitor infantil, isto é, o leitor está do lado dela no momento solitário da criação. É o interlocutor que a preocupa, que a detém. Segundo, que percebe que o seu projeto como escritora está totalmente ligado à sua própria vida, que seu texto revela quem ela é: se ela for falsa, o leitor vai descobrir. O texto reflete o autor. Marina escreve o que deseja escrever, porque se não o fizer não vai se realizar como artista. Ela descobre, como Ziraldo, que não tem que falsificar em nome do leitor, não tem que fingir que a luta de boxe não existe, porque isso seria uma anulação da própria essência do artista, de realizar o seu desejo: ele se guia por aquilo que acredita ser belo sem ter que dar explicações. Marina e Ziraldo entendem que o fato de o leitor ser criança não altera em nada seus desejos, estilos, palavras, porque isso seria negar a busca da beleza com que o artista tanto sonha.

Angela Lago também comenta que pensa no leitor e quer prendê-lo nos seus livros:

Acho que não preciso de passaporte para falar com criança. Não me interessa falar o usual. Acho que se eu trouxer alguma coisa nova, melhor, mesmo que provoque, a princípio, estranhamento ou mais dificuldade. Não há por que simplificar e partir para o gosto médio. Penso o tempo todo que o meu leitor é criança. Penso o tempo todo que estou falando com uma criança, que eu gostaria de prender sua atenção.

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Alguns autores afirmam serem contrários à visão de inferioridade que muitas vezes persegue a criança: acreditam que ela é o leitor ideal, mais capaz, muito mais aberto para experimentos literários. Heloísa Prieto comenta:

Acho que na infância as pessoas têm uma percepção, uma qualidade de inteligência que é mais abrangente. Isso vai se perdendo na vida, a não ser para quem mantém por alguma razão essa espécie de energia. Acho que a criança é um leitor privilegiado, que percebe as coisas com muito mais sagacidade.

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Monteiro Lobato sempre fez questão de dizer que seus livros eram para os pequenos e defendia a tese de que o que tinha para dizer não teria sentido para os adultos, pois estes não entenderiam. Em uma carta para seu amigo, o escritor Godofredo Rangel, ele diz:

Ando com idéias de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas, para as crianças, um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro do Robinson Crusoe, do Laemmerte. Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim morar, como morei no Robinson e n’ Os filhos do capitão Grant.

Lobato afirma que escrever para criança é algo especial, pois acredita que esse leitor tem mais capacidade de entender seus livros do que um leitor adulto, isto é, o leitor criança o estimula a escrever. Numa outra carta, Lobato dá a receita para escrever para crianças, mostrando-nos o que considera a maior diferença de um texto para adultos:

A coisa tem de ser narrativa a galope, sem nenhum enfeite literário. O enfeite literário agrada aos oficiais do mesmo ofício, aos que compreendem a beleza literária. Mas o que é beleza literária para nós é maçada e incompreensibilidade para o cérebro ainda não envenenado das crianças… Não imaginas a minha luta para extirpar a literatura dos meus livros infantis. A cada revisão nova nas novas edições, mato, como quem mata pulgas, todas as literaturas que ainda a estragam.

Outro aspecto que trabalhei foi a intersemiose no processo criativo dos livros infantil e juvenil. Os escritores e ilustradores comentaram que tudo o que os rodeia, durante o processo de criação, pode ser material de trabalho: uma palavra numa conversa, um objeto, um aroma, uma paisagem. Observam tudo para a sua criação. Eles exploram e pesquisam o mundo para a realização de uma obra. A figura do artista romântico e distante, vivendo isolado numa torre de marfim, não surge nesses depoimentos; ao contrário, eles se vêem imiscuídos no mundo, que é percebido como material para exploração. O que as pessoas falam, o que é lido no jornal, visto na TV, tudo isso está na sua mira. O artista, de uma maneira geral, acredita que o mundo está à disposição da criação. Cecília Almeida Salles comenta no seu livro Crítica Genética: uma introdução:

A criação, não podemos esquecer, é um momento especial de percepção, percepção esta como campo de partida e campo de testagem e de exploração do mundo. Percepção, em que a meta que conduz o artista faz com que o mundo pareça estar à disposição da criação e é, na verdade, o artista que canaliza todo o mundo à sua volta para a criação.

Vamos notar principalmente a presença de linguagens diferentes — especialmente música, cinema e teatro — se relacionando no percurso da criação de um texto ou uma ilustração, isto é, artistas da palavra vão criar muitas vezes influenciados por uma imagem ou por uma música. Na maioria das vezes os ilustradores partem do texto para criar imagens. É essa relação intersemiótica, de linguagens diferentes se relacionando e criando, que vamos discutir.

Vamos notar que esses artistas têm uma relação forte com a música e o cinema, e essas linguagens vão atuar sobre a sua criação, propiciando ou alimentando esse momento.

A música serve como equilíbrio para Bartolomeu:

Escrever para mim é uma coisa meio formal; exige uma certa preparação. Quando escuto música, quando preciso me afinar um pouco, escuto sempre a Jessie Norman; quem me põe afinado é a Jessie Norman. Quando viajo compro tudo dela, sei de toda a vida dela, ela é uma pessoa que me afina. De repente eu me equilibro. A minha irmã telefona, meus amigos telefonam, e aí quando eles percebem no telefone que a Jessie Norman tá cantando, dizem: Jessie Norman taí, né? E desligam logo… porque sabem que estou trabalhando.

Para Bartolomeu, a música o ajuda a colocar as coisas em ordem, como se ela o ajudasse a encontrar o tom certo. O artista parece ter necessidade de organização, e a música aparece como um elemento que vai auxiliá-lo na criação, estabelecendo uma ordem no caos.

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Lygia Bojunga comenta a importância da música na criação da obra:

O escritor, a casa, a rua, o ciúme, aquilo tudo não saía da minha cabeça pro papel porque eu custei demais a enxergar a ponta do fio da história. Acabei encon-trando-a numa música do Villa-Lobos: Choros nº 10. Eu comprei o disco por causa do Trenzinho Caipira: Choros nº 10 eu nem sabia o que era. Me sentei e ouvi o trem bem quieta. Mas nos Choros o meu coração começou a bater barulhento (querendo, na certa, me avisar da química especial que ia se processar). E o barulho foi crescendo. Aquela música do Villa me emocionava, me estimulava, me dava a certeza que era só ouvir ela mais um pouco e eu enxergava a ponta do fio. Toquei a música não sei quantas vezes; adorei! Chorei. Não sei se isso ajudou, só sei que a ponta apareceu. Comecei a puxar, e o fio arrastou lá de cima de uma personagem já pronta. E era a mulher, imagina, depois de eu ter pensado aquele tempo todo que ia nascer um homem.

Lygia expõe aqui da maneira mais simples a função da música na sua criação. Ela sabe que através da tradução da linguagem musical vai encontrar a história. Estimulada pela música, vai conseguir traduzir a emoção em linguagem verbal. Para Lygia, essa imagem da música puxando o fio da história para o papel é tão forte, que é como se a autora nem tivesse mais comandado seu texto. A música desperta a emoção no ouvinte e reforça a emoção que já se encontra nele.

Outras linguagens, ainda que diversas das dos autores, são importantes para eles porque propiciam clima, alimento, equilíbrio, organização, referencial, para que saiam do caos em que se encontram, tornando-se aliadas do seu processo criativo, condição comum aos artistas em geral.

Nesses capítulos da tese, eu me detive no aspecto mais marcante do livro infantil, que é o fato de ele conter ilustrações. Ele é o resultado de uma intersemiose, isto é, da relação entre as linguagens verbal e visual. Mas o processo, na maioria das vezes, não é coletivo, só o ilustrador recebe o texto já pronto do autor. É o ilustrador que vai transformar aquele texto em imagens.

Os ilustradores comentaram muito sobre a discriminação da imagem no livro infantil. Ainda há uma grande discriminação em relação ao ilustrador e à imagem no livro. A palavra escrita é considerada a linguagem principal no livro por muitos críticos, editores e escritores. Os próprios ilustradores comentam que essa visão acarreta uma série de equívocos, como o de se pensar que o ilustrador tem que desenhar exatamente o que o autor do texto escreveu, para não complicar a leitura da criança. Ricardo Azevedo exemplifica:

Muitos dizem que as ilustrações, num livro para crianças, devem ser literais, seguir o texto o máximo possível ou, como nos livros didáticos, tomar as coisas ao pé da letra. Dizem também que num livro para crianças deve haver uma sincronia entre texto e imagem. Quer dizer: a ilustração deve estar sempre junto ao texto que pretende ilustrar. Os livros para crianças, a pretexto de buscar uma fidelidade ao texto, só conseguem ser óbvios. O que se espera são desenhos que, somados ao texto, consigam ampliar ao máximo o universo de significação do livro como um todo.

Se os autores do texto se sentem discriminados pela sociedade por se dirigirem ao público infantil, os autores da imagem se sentem duplamente assim, por haver uma idéia de que a imagem tem que simplesmente facilitar a leitura da criança, concretizando-a ao desenhar ao pé da letra o que o autor escreveu. Uma questão que muitos apontam como a mais evidente de que a ilustração é considerada inferior ao texto é o fato de a crítica de livros infantis ser feita apenas por estudiosos ligados à literatura. Não há nenhum teórico de artes plásticas que considere a ilustração no livro infantil, é o que afirma Angela Lago:

Todo mundo fala livrinho, ninguém me pergunta a respeito do meu próximo livro, mas sim, tem algum livrinho? E acho que ainda há um outro preconceito, que é contra a ilustração. No Brasil, o texto é muito mais valorizado do que a ilustração. Nós não temos uma crítica de ilustração tão boa quanto temos de texto. Para ilustração ainda está começando; você pinça figuras. Isso mostra o desinteresse dos críticos e teóricos de artes plásticas em parar e pensar um pouquinho em ilustração; ilustração ainda é uma arte menor que o texto para criança.

Pude realmente observar um processo intersemiótico, isto é, a linguagem visual e verbal se relacionando no processo, quando o autor do texto também é o autor da imagem, o que é mais uma especificidade no livro infantil.

Uma das questões feitas sobre o processo desses artistas foi: quem nasce primeiro, o texto ou a imagem?

Ricardo Azevedo comentou que:

Sempre é o texto primeiro, mas ao mesmo tempo que estou escrevendo eu penso na ilustração. Tem horas que penso: eu jamais vou conseguir ilustrar isso aqui. Isso é totalmente literário. Em outros momentos, ao contrário, eu digo: vou perder tempo escrevendo isso aqui não, porque depois o desenho vai explicar melhor. Por exemplo: uma descrição que eu achei inútil, no desenho vou encher de detalhes, fazer um monte de coisas, então não preciso escrever sobre aquilo, a coisa que é menos importante literariamente pode ganhar riqueza na ilustração.

A imagem está o tempo todo na cabeça do autor: há um diálogo interno entre a palavra e a imagem. E uma não pode viver sem a outra. As duas linguagens juntas é que vão expressar com exatidão o que ele quer dizer. Uma linguagem complementa a outra, uma sem a outra não tem sentido. E o que observamos no processo desses artistas é que, mesmo o texto sendo feito primeiro, ele é elaborado paralelamente a uma imagem, e a imagem é feita a partir de um texto.

O artista que trabalha com texto e imagem tem um processo de criação intersemiótico mais claro de ser percebido do que um escritor que, a partir de uma música, cria um personagem ou um que assiste a um filme e tem a idéia de um livro. Esses artistas estão em trabalho permanente de tradução de linguagens, mas um ilustrador que também seja escritor faz essa tradução clara no livro infantil. Através de seus depoimentos, entendemos que a linguagem escrita está impregnada de linguagem visual: o que elas lêem, na verdade visualizam, o que eles escrevem está sendo ilustrado simultaneamente.

O que é específico no fazer da literatura infantil e juvenil é exatamente esse artista que trabalha as duas linguagens e que vai expressar no seu livro o encontro delas, o diálogo que mantém entre elas durante o processo e depois, quando o livro vai suscitar novas interpretações do leitor, que, como comenta Angela Lago, também vai ter uma relação intersemiótica com o livro: ele vai interpretar duas linguagens diferentes mas que se relacionam entre si.

O terceiro aspecto que analisei foi a questão da memória da infância. Ao longo da análise dos depoimentos, notei a forte presença das lembranças da infância e, muito especialmente, as recordações das histórias orais. O artista trabalha explorando o seu mundo, e as percepções da infância também são trazidas à tona; um diálogo entre a criança que foi e o artista que é hoje.

O que registramos como uma especificidade do fazer literatura infantil é o fato de essa memória servir como passaporte. É dela que o artista vai se alimentar para criar histórias. Recuperando a própria infância, ele se sente mais próximo do seu leitor e talvez assim diminua a distância etária entre eles. Isso é marcante no fazer literário infantil.

Marina Colassanti comenta o assunto:

A infância e a adolescência, na vida da gente, são como tatuagens: são pontos que ficam embaixo da pele, absolutamente indeléveis. Os pontos vão desenhando uma tatuagem preciosa e única. Quando você escreve, vai colhendo esses pontos tatuados. Você colhe esse ponto e bota num microscópio, amplia e aí trabalha esse ponto. Ele tem uma carga de sangue, ele não é seco, ele não estava entre as páginas de um livro. Ele não estava desidratado. Ele está encharcado de sangue da tua pele. Então, ele é muito vivido, muito intenso. (…) Eu faço muita apropriação da minha vida na criação. Não é uma apropriação direta, vou buscar lembranças.

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Ruth Rocha também comenta que suas memórias da infância são, de alguma maneira, utilizadas nos seus livros:

Eu não reprimo as lembranças da minha infância porque eu fui muito feliz. (…) Eu acho que isso tem a ver com o que eu escrevo. Eu não tenho nada para esconder da minha infância. Eu lembro da sensação de brincar no quintal, de subir em árvore para pegar fruta, brincar de roda… A infância para mim é uma coisa clara, gostosa.

Nos comentários dessas duas autoras, fica claro que a memória guarda impressões, sensações que elas tentam registrar em seus trabalhos. As histórias muitas vezes remetem às lembranças da infância. Essa é uma característica geral do fazer artístico: a memória da infância e da adolescência não nutre somente os artistas dessa área. A procura das sensações da infância, ou um diálogo com essa época, é muito comum no fazer artístico em geral, mas há uma diferença em relação aos artistas de literatura infantil: o fato de essa memória ser percebida como história, como material a ser transformado em história. Ela vai servir ainda de elo entre o autor e o leitor criança: são histórias vividas por crianças e contadas para crianças.

Vários autores, ao serem perguntados para quem escrevem, responderam que pensam muito na criança que foram, como se escrevessem para ela. Eles tentam, através de seu trabalho, um resgate da infância perdida e, assim, vivem as sensações, o clima desse tempo. Muitos vão buscar características suas da infância e elaboram textos para esse tipo de criança; isto é, retomado o tema da criação como um ato comunicativo, percebemos o artista querendo se comunicar consigo mesmo, com a criança que foi e que de alguma maneira resgata na criação, recriando a realidade.

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Eva Furnari fala da sua ligação com a imagem que acredita ter começado desde a infância:

Eu não enxergava muito bem e não sabia. Eu tinha que usar óculos, mas naquela época nunca ninguém achava que a gente tinha que ir ao oculista. Então eu não usava óculos e, como não enxergava muito bem, não conseguia ler tão bem, então ficava mais ligada ainda à imagem.

Desde criança, Eva se ligava mais à imagem do que ao texto, e, de alguma maneira, podemos ver que seu trabalho como ilustradora de muitos livros, vários sem texto, pode ser uma referência a essa Eva menina que não conseguia ler as letras e vivia muito melhor no mundo das imagens.

Resumi aqui alguns aspectos que discuti em minha tese de mestrado defendida em 1996, que teve como objetivo pensar o ilustrador e o escritor de literatura infantil e juvenil como um artista no sentido amplo da palavra, lidando com as especificidades do seu fazer.

Luciana Sandroni é carioca e autora de livros para crianças e jovens, como Minhas Memórias de Lobato (Companhia das Letrinhas, 1997, II. Laert, prêmio Ofélia Fontes, da FNLIJ, de 1997, e prêmio Jabuti de 1998), Ludi na Revolta da Vacina, (Salamandra, 1999, II Humberto Guimarães, prêmio Carioquinha e prêmio Ofélia Fontes, da FNLIJ, de 1999), O Mário que não é Andrade, (Companhia das Letrinhas, 2001, II. Spacca, prêmio O Melhor Para Jovem, da FNLIJ, de 2001), entre outros.

Este artigo foi anteriormente publicado no Jornal de Notícias da Fundação Nacional do Livro Infanto Juvenil (FNLIJ).

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