Edição 55

A fala do mestre

Considerações metodológicas para uma abordagem sob a ótica das Ciências Sociais

Luiz Alberto Ribeiro Rodrigues

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Neste artigo, buscar-se-á abordar o estudo analítico de política pública como objeto de investigação na área das Ciências Sociais. Utiliza-se da concepção teórica de Muller & Surel, intitulada de abordagem cognitiva das políticas públicas. Toma-se política como a direção em que se coloca o processo de tomada de decisão sobre um conjunto de ações públicas e vinculadas diretamente a questões relativas ao exercício de poder em uma sociedade. A abordagem de Muller & Surel indica que o resultado de uma política pública está intimamente relacionado ao grau de participação dos atores no processo de sua elaboração e implementação.

Palavras-chaves: política pública, Ciências Sociais, metodologia.

O termo política pública, para efeito de construção do objeto de investigação, tem o sentido de processo através do qual são planejadas e implementadas ações públicas, “isto é, dispositivos político-administrativos coordenados, em princípio, em torno de objetivos explícitos” (MULLER & SUREL, 2002, p. 11).

Uma qualificação mínima de uma política pública diz respeito a ações que os diversos governos decidem, por razões diversas, realizar ou não, ou seja, ações que são ou não inseridas nas agendas, sendo de algum modo incluída ou rejeitada a sua implementação.

De outro modo, o conceito de política pública refere-se ainda à direção em que se coloca o processo de tomada de decisão sobre um conjunto de ações públicas. A política vincula-se diretamente a questões relativas ao exercício de poder em uma sociedade. Essa vinculação, que nem sempre é direta, no sentido formal, faz-se no conjunto das interações entre indivíduos e instituições influenciados por questões de natureza conflituosa no que se refere a interesses. Ou seja, não significa que uma política possa ser entendida como uma resposta simples e direta aos interesses dominantes, mas antes como o resultado, sempre provisório, de um processo de negação assimétrico entre grupos e forças econômicas, políticas e sociais potencialmente conflituais (TEODORO, 2003, p. 28).

Na área das Ciências Sociais, o estudo analítico de política pública como estratégia metodológica é recente. Vem sendo acelerado, sobretudo, a partir da década de 1980. Nessa área, a Educação, por exemplo, tem um diferencial de especificidade inerente ao espaço social e às correlações que são construídas. Esses fatores “colocam, para o analista, determinados desafios cuja compreensão e cujas respostas só em parte podem ser encontradas à luz das indicações contidas naquelas abordagens” (AZEVEDO, 2001, p. 57).

Na década de 1990, houve um avanço significativo na proposta de análise produzida por esses estudos, na medida em que eles apontavam para uma perspectiva mais ampla: Educação como política estatal.

No campo educacional […] passou-se a produzir estudos que privilegiam a abordagem da Educação na sua dimensão de política estatal. Trata-se, pois, de estudos que, em sua maioria, têm o próprio campo educacional como referência primeira, e, portanto, utilizam-se de ferramentas teórico-metodológicas comumente empregadas nas investigações desse campo (Ibidem, 2001, p. 2–3).

A mudança se deu, sobretudo, no campo da análise, até então realizada a partir de instituições particulares e em contextos particulares, focando, a partir de então, fenômenos sociais, enxergando-os como objeto de estudo que se reestrutura tanto em nível local como em nível global. Considera-se, desde então, o fenômeno da globalização como elemento de influência na constituição dessa realidade. A relação que se procura fazer entre o local e o global deve-se, desse modo, “à presença crescente das questões educacionais na criação de identidades locais, definidas não tanto numa perspectiva geográfica, mas no sentido de uma pertença a certas comunidades discursivas” (TEODORO, op. cit., p. 27).

img-1683-02Por uma abordagem cognitiva das políticas públicas

Um caminho metodológico pertinente ao estudo das políticas educacionais tem sido referenciado em Pierre Muller & Yves Surel (2002). Esses autores utilizam a corrente de análise denominada abordagem cognitiva das políticas públicas, que pode ser encontrada no estudo originalmente intitulado L’analyse des Politiques Publiques.

O ponto de partida dessa abordagem é a hipótese de que a ação pública no Estado moderno é resultante de um dinâmico processo de práticas sociais em um determinado momento histórico capaz de processar a construção social da realidade (Ibidem). Defende-se um caminho para o entendimento das políticas públicas: forjadas em um processo complexo de interpretação e realizadas por atores públicos e privados. Põe-se, desse modo, uma questão central, que é a influência exercida pelas normas sociais e globais sobre os comportamentos sociais e sobre as políticas públicas. É nesse sentido que esses autores propõem que o modo de apreensão de uma política pública é resultante de matrizes cognitivas e normativas (Ibidem), tendo em vista que uma política é resultante de um processo de interação, de relações de força que vão, dialeticamente, pouco a pouco, firmando-se.

A abordagem cognitiva entende que os modos de ação do Estado moderno estão amparados em uma lógica de posicionamento, isto é, toda ação pública acontece dentro de modelos conceituais, chamados de paradigma, sistema de crença ou mesmo referencial. Assim, todo processo político atribui necessariamente uma importância fundamental aos valores, às ideias e às representações (Ibidem).

Muller & Surel explicam que a expressão matrizes cognitivas e normativas integra elementos análogos e se presta a
diferentes recortes. O primeiro deles refere-se à convicção de que a lógica de posicionamento é resultante de um conjunto de valores e princípios gerais que definem uma visão de mundo particular (Ibidem). Essa visão de mundo decorre de princípios abstratos que determinam o mundo possível e identificam as diferenças entre os atores individuais ou grupais. Um segundo recorte diz ser possível uma relação inversa entre os princípios, ou seja, “princípios mais específicos que declinam de modo variável os princípios mais gerais” (Ibidem, p. 47).

Na base desse raciocínio, está a ideia de que nenhuma ação pública é conduzida por princípios de neutralidade ou a partir de uma razão indefinida. Como explicam, “a mobilização de certo número de instrumentos não se faz […] de maneira neutra, mas responde, ao contrário, a certos imperativos normativos e práticos desenhados/definidos pelos elementos precedentes” (Ibidem, p. 47).

Por fim, asseguram que, além dos métodos e dos meios, as matrizes tendem a definir as escolhas específicas, a direção coerente de outros elementos, ou seja, toda escolha menor tende a se justificar em uma lógica maior; ou acontece, como chamam esses autores, uma coalisão de causa. A distinção desses diferentes elementos se faz necessária, sobretudo para permitir “isolar, analiticamente, os processos pelos quais são produzidos e legitimados os comportamentos, as representações e as crenças, principalmente sob a forma de políticas públicas particulares, no caso do Estado” (Ibidem, p. 48).

É fundamental considerar que o processo de política aqui é essencialmente constituído por relações de poder, que se dão ao longo de sua elaboração e implementação. Nele, estão presentes os mais diversos tipos de relações, as quais quase sempre contribuem para a formação de uma rede “diretamente indexada à elaboração e/ou à mobilização de uma matriz cognitiva e normativa particular” (Ibidem, p. 50). Esse é um processo que se apresenta em constante construção e, por isso mesmo, um processo de exercício do poder.

img-1683-03[…] processo de poder […] pelo qual o ator faz valer e afirma seus interesses. Uma relação circular existe, com efeito, entre lógicas de sentido e lógicas de poder, através da qual o ator constrói o sentido que toma o leadership do setor que afirma a sua hegemonia, tornando-se legítimo o referencial ou o paradigma em consequência dessa estabilização das relações de força (Ibidem, p. 50).

A instituição do poder, no contexto de um processo de política, faz-se dentro de uma dinâmica marcada por “interações e pelas relações de força que se cristalizam pouco a pouco num setor e/ou num subsistema dado” (Ibidem, p. 50). Nessa dinâmica, um grande componente do poder é a palavra. Todo processo de construção de uma matriz cognitiva “alimenta, ao mesmo tempo, um processo de tomada de palavra (produção e sentido) e um processo de tomada de poder (estruturação de um campo de forças)” (Ibidem, p. 50). Defende, desse modo, essa abordagem, que as políticas públicas operem como um complexo processo de interpretação do mundo.

[…] ao longo do qual, pouco a pouco, uma visão de mundo vai impor-se, vai ser aceita, depois reconhecida como “verdadeira” pela maioria dos atores do setor, porque ela permite aos atores compreender as transformações de seu contexto, oferecendo-lhes um conjunto de relações e de interpretações causais que lhes permitem decodificar, decifrar os acontecimentos confrontados (Ibidem, p. 50).

A abordagem cognitiva das políticas públicas apresenta-se, assim, como uma tentativa de superação do caráter determinista e voluntarista das ações sociais. Em sua proposição, a análise das políticas se dá a partir de uma perspectiva que combina o determinismo cultural, em que “os atores não são totalmente livres na sua escolha”, e, de certa forma, o voluntarismo, no qual os atores “não são totalmente determinados pelas suas estruturas” (Ibidem, p. 50).

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A identificação do processo de política

A abordagem teórica utilizada por Muller & Surel para especificar a política pública chama a atenção para a complexidade que constitui seu processo. Esse processo implica, inicialmente, buscar uma possível relação de oerência que pode existir entre diversos elementos de um programa, sobretudo no que se refere aos seus objetivos; é também fundamental observar que, na especificidade de uma política, está a questão da evolução do Estado em relação ao modo como se dão as relações entre os poderes público e privado; e, por fim, o modo como acontece o processo de regulação dos conflitos e a harmonização dos interesses.

img-1683-05Expressam, esses autores, que a especificação de política pública pode ser agrupada em “um quadro normativo de ação; ela combina elementos de força pública e elementos de competência (expertise); ela tende a constituir uma ordem local” (Ibidem, p. 14). Para melhor entendimento, buscar-se-á descrever essas rubricas, mesmo que de modo resumido, a seguir.

O primeiro e fundamental esforço do pesquisador que busca compreender uma política pública é inicialmente identificar uma possível coerência ou tendência que possa existir entre os diversos elementos e medidas, constituindo aquilo que esses autores chamam de quadro normativo de ação.

De modo prático, nesse momento da investigação, persegue-se a identificação de objetivos que a política pretende atingir. Esses objetivos, alertam os autores, nem sempre se dão de modo direto, podendo estar implícitos ou explícitos. Parte-se então do pressuposto de que a identificação de uma política requer um trabalho de reconstrução de toda a sua trajetória, incluindo objetivos e metas, publicações conceituais, documentos jurídicos, entre outros, como eles explicam:

[…] toda política governamental se definirá, antes de tudo, com um conjunto de fins a se atingir. […] tais fins, ou objetivos, poderão estar mais ou menos explícitos nos textos e nas decisões de governo (o preâmbulo de uma lei, por exemplo), detalhando os objetivos estabelecidos pelo governo no setor em questão. Às vezes, pelo contrário, os fins governamentais permanecerão fluidos, até ambíguos. Isso significa que, também lá, os objetivos da ação pública não são dados, mas devem construir um trabalho de identificação e reconstrução pelo pesquisador, através, por exemplo, do estudo das reuniões interministeriais preparatórias à decisão ou dos debates parlamentares (2002, p. 17).

A questão da coerência ou não dos objetivos pode não se revelar de modo suficiente nos seus propósitos, nas suas decisões e até mesmo nas proposições. Assim, os autores sugerem uma atenção maior no que diz respeito a buscar uma lógica de sentido das ações: “o trabalho de análise deve esforçar-se para colocar à luz as lógicas de ação e, em ação, as lógicas de sentido no processo de elaboração e de implementação das políticas” (Ibidem, p. 18).

Sugerem ainda que, para especificar uma política pública, é necessário identificar elementos que “fundamentam a especificidade da ação do Estado” (Ibidem, p. 18). A política é tomada, nesse sentido, como expressão do Poder Público, não limitado ao poder como bloco homogêneo e autônomo, mas ao espaço público de decisão.

A definição da política pública está, desse modo, relacionada diretamente ao grau de participação dos atores no processo de sua elaboração e implementação. Dois problemas são colocados por Muller & Surel quanto ao grau de implicação dos beneficiários na ação pública, relacionados diretamente às modalidades de participação que cada ator exerce, individual ou coletivamente, nesse processo.

O primeiro refere-se à capacidade de influência que exerce cada um dos atores no processo de política. Ela depende, de um lado, de fatores estruturais, ou seja, da posição desse ator na divisão do trabalho; e, de outro, “da capacidade do grupo para construir-se ator coletivo e mobilizar recursos pertinentes” (Ibidem, p. 21).

O outro problema é identificar quais são os fatores que determinam a capacidade de influência dos atores no processo de elaboração e implementação de política pública. Os autores apontam três tipos de fatores relacionados entre si: os estruturais, relacionados à posição que ocupa o ator na divisão do trabalho; os que dependem da capacidade do grupo em mobilizar recursos pertinentes; e, por fim, os que envolvem a aptidão para influir no conteúdo ou na implementação.

Esses fatores podem ser estruturais quando dizem respeito à posição do ator na divisão do trabalho própria ao setor. Eles podem também depender da capacidade do grupo para constituir-se ator coletivo e mobilizar recursos pertinentes. A aptidão de um ator coletivo para influir no conteúdo ou na implementação de uma política pública pode, com efeito, variar fortemente em função do grau de mobilização que é capaz de suscitar […] (Ibidem p. ???)

A teorização posta por esses autores representa uma significativa contribuição para se constituírem a identificação e a análise do processo político, de modo a possibilitar a sua compreensão como um processo complexo de relações reguladas entre os diversos atores sociais envolvidos no espaço público.

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Referências bibliográficas

AZEVEDO, M. L. Janete. A Educação como Política Pública. 2. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2001. ISBN 85-85701. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo)

AZEVEDO, J. M. L. de; AGUIAR, M. A. Políticas de Educação: Concepções e Programas. In: WITTMANN, L. C.; GRACINDO, R. V. (coords.). O Estudo da Arte em Política e Gestão da Educação no Brasil: 1991 a 1997. Brasília: Inep, 1999.
MORROW, R.A. & TORRES, C. A. Teoria Social e Educação: uma Crítica das Teorias da Reprodução Social e Cultural. Porto: Edições Afrontamento, 1997.

MAINARDES, J. Análise de Políticas Educacionais: Breves Considerações Teórico-metodológicas. In: Contrapontos, Volume 9, nº 1, p. 4–16, Itajaí, jan./abr., 2009.

MULLER, Pierre & SUREL, Yves. A Análise das Políticas Públicas. Tradução de Agemir Bavaresco e Alceu Ferraro. Pelotas: Educar, 2002.

TEODORO, A. Globalização e Educação: Políticas Educacionais e Novos Modos de Governação. São Paulo: Editora Cortez; Instituto Paulo Freire, 2003. (Coleção Perspectiva, nº 09)

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