Edição 25

A fala do mestre

De Porto Alegre para o MUNDO

moacyr1“Minha mãe (…) me incentivou a ler desdea infância. (…) os livros faziam parte do meu cotidiano.” No Mesmo ano em que se formou em Medicina, 1962, o escritor gaúcho lançou sua primeira obra, Histórias de um Médico em Formação. Desde então, mantém em paralelo as duas carreiras: é professor de saúde Pública, na Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, e tem, até agora, 68 obras editadas, muitas delas traduzidas nos Estados Unidos e em vários países da América Latina, Europa e Ásia, além de escrever semanalmente para jornais Zero Hora, Folha de S. Paulo, Correio Barziliense e para a revista Veja. Nesta entrevista, conta como se tornou escritor, de que maneira ganhou repercussão internacional e que acredita ser fundamental para a formação de leitores.
Panorama Editorial – Quando e por que o senhor decidiu que seria escritor?
Moacyr Scliar – Acho que duas influências foram muito importantes para isso: meus pais eram imigrantes russos, muito pobres, que vieram morar em Porto Alegre/RS, no tradicional bairro do Bom Fim, que, à época, tinha casinhas muito modestas. Era uma vida muito carente, mas com uma convivência familiar muito intensa, e fazia parte dessa convivência contar histórias. Meu pai era um grande contador de histórias, embora não fosse um homem culto. Ao contrário, mal sabia ler e escrever. Já minha mãe, que também era de origem pobre, estudou, era professora primária e uma grande leitora e me incentivou a ler desde a infância. Então, os livros faziam parte do meu cotidiano. Era um leitor voraz.

“(…) nos anos 70, (…) a literatura latino-americana era muito prestigiada, por várias razões. (…) tinha autores muito originais, da época do realismo fantástico (…)”
PE – Que tipo de livros o senhor lia? Tinha algum gênero em especial ou autores preferidos? Scliar – Costumo dizer que a casa da leitura tem muitas portas, e a gente pode entrar por qualquer uma delas, pode até entrar pela janela. Lia desde revista em quadrinhos até os escritores da infância e juventude, sobretudo Monteiro Lobato. Depois vieram Érico Veríssimo, nosso escritor gaúcho, e Jorge Amado, também uma influência muito grande.

PE – Quando e de que maneira o senhor começou a escrever?
Scliar – Escrevo desde criança. Comecei escrevendo historinhas e mostrando para meus pais, para os professores, e eles me elogiavam muito. Sempre tive a sorte de contar com a ajuda de muitas pessoas próximas e também de escritores, como o próprio Veríssimo, que me estimulou muito. Comecei a publicar por meios que estavam ao meu alcance: primeiro, no jornal da escola; depois, na faculdade, quando cursava Medicina. Aliás, meu primeiro livro, Histórias de um Médico em Formação, tinha a ver exatamente com a minha experiência como estudante de Medicina. Foi lançado em 1962, ano em que me formei, por uma editora daqui de Porto Alegre, que hoje não existe mais, chamada Difusão.

“Acho que a função básica da literatura é abrir novos horizontes para o leitor, sempre através da emoção. (…) Trata-se de criar personagens e situações que façam bater mais depressa o coração do leitor.”
PE – Hoje, o senhor tem livros publicados em diversos países. Como se deu a trajetória da sua primeira obra, editada em Porto Alegre, até ganhar o mundo?
Scliar – Houve uma época, nos anos 70, em que a literatura latino-americana era muito prestigiada, por várias razões. Primeiro, tinha autores muito originais, da época do realismo fantástico; segundo, por solidariedade política aos escritores que viviam sob o regime da ditadura; e, terceiro, porque era realmente uma literatura vibrante. Nessa época, muitos escritores foram publicados. Eu, por exemplo, nos Estados Unidos, em muito rápida sucessão, tive nove livros publicados entre o final dos anos 70 e início dos 80. Depois, os livros saíram na França, Espanha, Itália, Rússia, Holanda, Argentina, Colômbia, Venezuela, no México, em Portugal e muitos países.

PE – O senhor também recebeu muitos prêmios ao longo de sua carreira: só o Jabuti foram três. Isso ajuda a impulsionar a carreira de um escritor?
Scliar – Não tenha dúvida. Sobretudo o Jabuti, que é um prêmio que tem consistência. Tem resistido ao tempo, o que, no Brasil, é uma coisa muito importante, porque os prêmios surgem e desaparecem com a maior facilidade. Outra razão importante é a forma de seleção, da qual participam pessoas que conhecem profundamente a área do livro e da literatura.

“O livro depende basicamente da palavra escrita, e o cinema, da imagem. Quando cedo os direitos autorais dos meus livros, dou inteira liberdade para o diretor fazer aquilo que acha que tem de fazer. Não interfiro, (…) o sucesso de um texto no cinema ou mesmo na televisão atrai os leitores para aquele livro ou outros livros do autor.”
PE – Sua obra passeia por diversos gêneros — contos, crônicas, romances, ensaios e literatura juvenil. No momento em que pensa numa obra, como define o tratamento que dará a ela?
Scliar – Depende muito das circunstâncias. Por exemplo: para jornal, não escrevo ficção, à exceção da Folha de S.Paulo, para a qual, a pedido, faço semanalmente uma história de ficção baseada numa notícia publicada. Mas, para jornal, prefiro escrever crônica. Depende também do público: se é juvenil, penso numa história que tenha jovens, uma temática relacionada a eles, com uma linguagem que, sem deixar de ser literária, seja acessível. Acostumei-me a mudar de canal e trabalhar em cada um deles. Naturalmente, isso exige um grau de disciplina, mas disciplina a gente aprende a ter.

PE – Escrever para público juvenil e para público adulto é muito diferente? Aliás, como são conquistados os leitores?
Scliar – Sim, há grandes diferenças entre os dois públicos. Para escrever para o público juvenil, o escritor tem de recuperar o jovem dentro dele próprio. E isso, para mim, é sempre um processo muito gratificante, porque a juventude é a grande fase para a leitura, é quando o livro faz a cabeça da pessoa. Como me lembro com muita saudade do jovem leitor que fui, escrevo com igual emoção, imaginação e humor. Acho que a função básica da literatura é abrir novos horizontes para o leitor, sempre através da emoção. Não se trata de expor idéias, de transmitir mensagens. Trata-se de criar personagens e situações que façam bater mais depressa o coração do leitor. No meu caso, o humor é fundamental, porque as histórias que ouvia do meu pai eram bem-humoradas, e sempre procurei manter o humor. Já a imaginação é primordial em termos de criatividade literária. Agora, tudo isso, evidentemente, tem de ser alavancado pelo uso da palavra como instrumento de criação estética. Tu podes ter muita imaginação, muito humor e muita emoção, mas, se não sabes colocar em palavras essas coisas, não há literatura.

PE – Livros seus foram adaptados para cinema, teatro e televisão. O que isso representa para o senhor? As adaptações correspondem às obras? Em que medida isso é interessante para o escritor?
Scliar – Interessante é sempre, porque, no mínimo, chama a atenção de um público que não é exatamente o literário. Nesse sentido, o cinema brasileiro realmente cumpre uma tarefa importante, presti-giando os escritores do País. Mas, por outro lado, não resta a menor dúvida de que livro é uma coisa e filme é outra. O livro depende basicamente da palavra escrita, e o cinema, da imagem. Quando cedo os direitos autorais dos meus livros, dou inteira liberdade para o diretor fazer aquilo que acha que tem de fazer. Não interfiro, porque se eu quisesse fazer filmes dos meus livros, eu mesmo faria. Como não sei fazer, deixo para as pessoas que sabem. Além disso, a transposição de uma obra para outros meios pode despertar também o interesse pela leitura. Comprovadamente, o sucesso de um texto no cinema ou mesmo na televisão atrai os leitores para aquele livro ou outros livros do autor.

PE – A sensação que se tem é de que, no Rio Grande do Sul, há uma grande valorização do livro. Isso é real?
Scliar – Uma coisa ajuda muito o Rio Grande do Sul: é que o Estado tem um sistema educacional admirável. Isso acontece porque faz parte da tradição gaúcha valorizar a educação. A rede de ensino pública aqui é enorme, e os professores trabalham muito com literatura, de uma forma muito inteligente e criativa. Além de trabalhar com os clássicos da literatura brasileira, trabalham também com autores contemporâneos, muitos dos quais são convidados para ir às escolas. Existe um programa estadual de encontros de escritores com alunos, que são, por sua vez, convidados a dar sua própria versão das obras, adaptando-as. Enfim, a literatura não é imposta como uma obrigação curricular, é prazer. Sei disso muito bem, porque freqüento bastante as escolas. Fico surpreso e feliz com o trabalho que os alunos fazem com os textos dos escritores.

“Seria muito boa a difusão da idéia de que, quando um pai ou uma mãe está lendo um livro para a criança, na hora de dormir, por exemplo, está não apenas transmitindo cultura literária, mas dando uma demonstração de afeto. Quando a criança associa o livro a uma imagem paterna ou materna, está a caminho de se tornar um grande leitor.”

PE – Então, a escola tem um papel importante no incentivo ao hábito da leitura?
Scliar – Acho que começa antes, em casa. Seria muito boa a difusão da idéia de que, quando um pai ou uma mãe está lendo um livro para a criança, na hora de dormir, por exemplo, está não apenas transmitindo cultura literária, mas dando uma demonstração de afeto. Quando a criança associa o livro a uma imagem paterna ou materna, está a caminho de se tornar um grande leitor.

Fonte: Este artigo foi gentilmente cedido pela revista Panorama Editorial, uma publicação mensal da Câmara Brasileira do Livro. Reprodução parcial da entrevista do Prof. Moacyr Scliar, concedida à revista Panorama Editorial, ano I, nº 2, outubro, 2004, p. 28, 29 e 30.

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