Edição 50

Espaço pedagógico

“É mais fácil construir crianças fortes do que reconstruir adultos quebrados”

Emerson Santana

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A chegada do século XXI era o almejo da humanidade. Não sabíamos que chegaríamos
a ele, mas ele chegou a nós. Os homens que viveram as décadas anteriores
são os homens do nosso presente, e questionamos suas posições ante a
educação, a saúde, a fé, a solidariedade e a família, sendo o papel desta última

o grande questionamento na sociedade atual. Como tem sido a estruturação
familiar hoje em dia? Qual o papel da família na formação do indivíduo? Que
educação de base as crianças deste século estão tendo na escola, onde muitas
famílias acreditam estar a salvação ou o remédio para sanar a dor dessas crianças
abandonadas pelo limite?

Hoje, o excesso de razão tem feito com que os pais não tenham
a convicção da correção. Psicólogos desse novo século
trazem em suas teorias o trauma da correção, afirmando
que ela, em muitos casos, pode impedir o desenvolvimento
da independência da criança, tornando-a insegura. Os pais
passam a questionar sobre o momento certo para tal correção
acontecer e se perdem no caleidoscópio de regras.
Quem transforma, hoje, as crianças em verdadeiros vencedores?
Quem são os heróis e exemplos dessas crianças,
que clamam por socorro? Quando essas crianças, na escola,
batem em um colega ou cometem pequenas infrações, será
que elas não estão gritando para serem vistas ou ouvidas e
esperam que alguém diga: “Basta!”?

Infelizmente, chegamos a um momento em que deixamos a
educação ser fanada por passeios em shoppings, no Google,
no UOL e em tantos outros sites que substituem os pais,
sites estes que têm sido o livro de ética entre as crianças e
os adolescentes do mundo atual. E pergunto: o que os pais
e educadores têm a dizer? O título do clássico do cinema
americano Assim Caminha a Humanidade tem sido a desculpa
mais comum entre muitos, porque, muitas vezes, eles
mesmos desconhecem onde cometeram os primeiros erros.
Cometem-se os primeiros erros quando se canta e se acha
engraçado crianças cantando melodias de fácil assimilação
que denigrem a imagem do outro. Peca-se quando se permite
que os meios de comunicação dialoguem mais com os
filhos do que os próprios pais, pois, na maioria do tempo,
estes estão simultaneamente presentes e ausentes. Será que

o limite e a repreensão agora não evitarão a mala de um
camburão no futuro? Estuda-se tanto para criar estratégias
educativas relacionadas ao limite da criança, porém, no
exato momento de colocá-las em prática, pais e educadores
não conseguem. Será que, entre os pais e educadores — educadores
porque, em muitos momentos, são também os responsáveis
por esse limite —, não existe a teoria do espelho?
Seria possível ensinar uma criança a escovar os dentes apenas
dizendo como se faz? Será que esses pais e educadores,
inflados pelo excesso de informação sobre o assunto, seriam
capazes de impor limites a essas crianças se muitos deles
não os tiveram?

Houve décadas na nossa história que foram de suma importância:
as décadas de 1960 e 1970 até meados dos anos 1980.
Mas essas décadas foram responsáveis pelo dilaceramento
da família. No auge das transformações sociais, quando a
principal regra era quebrar as regras impostas pela ditadura
militar, a família foi dilacerada. Ganharam-se algumas
coisas, mas se perderam os filhos. Os pais daquela época
são os filhos e avós de hoje. Houve uma mudança de comportamento
e uma inversão de respeito e valores. Tudo que
era uma regra familiar, como pedir a bênção ou informar
para onde se está indo aos pais, transformou-se em algo
retrógrado. O não que era para ser dito ao autoritarismo da
ditadura passou a ser dito aos pais. A mudança na moda,
a aceitação dos excluídos, a nivelação social, os hippies, o
topless, as drogas, tudo isso transformou a atitude e o comportamento
dos filhos. Infelizmente não entenderam que a
liberdade pela qual lutavam era a liberdade do respeito ao
outro. O não é tão importante na imposição do limite como

o dar de mamar, que cria a defesa imunológica. O não de
hoje com certeza fará um adulto forte no futuro.
Aprender a receber um não ensinará a criança que a vida
nem sempre lhe dirá um sim, evitando frustrações. Aprender
a receber um não é aprender a dizê-lo também. A criança
que aprende a receber um não também o dirá às drogas, ao
álcool, ao sexo prematuro — evitando tornar-se um adulto
ninfomaníaco —; dirá não aos pequenos furtos, à desonestidade,
à falta de respeito, à mentira. Dirá não a tudo que
tentar substituir os pais.

O problema é que ser pai é muito mais do que apenas
ser “bonzinho” com os filhos. Ser pai é ter uma função
e responsabilidades sociais perante nossos próprios filhos
e a sociedade também. Portanto, quando decido
negar uma roupa a mais a um filho, mesmo podendo
comprar e sofrendo por dizer-lhe “não”, porque ele já
tem outras dez ou vinte, estou ensinando que existe
um limite para ter. Estou, indiretamente, valorizando
o ser […]. Porque, para ter tudo na vida quando
adulto, fatalmente ele terá que ser um indivíduo extremamente
competitivo e provavelmente com muita
“flexibilidade” ética. Caso contrário, como conseguir
tudo? Como aceitar qualquer derrota, qualquer “não”,
se nunca lhe fizeram crer que isso é até normal? ( ZAGURY,
Tania. Os Direitos dos Pais: Construindo Cidadãos
em Tempos de Crise. p. 31–32).

São sempre necessários os momentos quase únicos durante
a semana ou os finais de semana, como comer sempre à
mesa, falar do dia de trabalho, dos amigos da escola dos
seus filhos. As relações interpessoais são de fundamental
importância. Os pais têm de lembrar que ordem dada é ordem
jamais tirada, independentemente de quem a tenha
dado. Há crianças que são criadas por tios, babás e avós,
e a presença dos pais é motivo para os conflitos familiares,
com eles sempre lembrando: “O filho é meu, é a mim que
ele tem de obedecer”.

O que chamamos de falta de limite nada mais é do que uma
forma de dizer “Olhem pra mim, estou aqui, me socorram”.
As crianças pedem socorro, os adolescentes clamam. As
crianças não precisam de manual para ser compreendidas,
precisam de pais compromissados. Os pais precisam saber
que há uma enorme diferença entre criar e educar. Crianças
educadas são fortes emocional e fisicamente, crianças criadas
são apenas fortes fisicamente e gastam essa energia de
forma errônea.

A criança do poema de Vinicius de Moraes, que chupa gilete,
bebe xampu, toca fogo no quarteirão, é um bom exemplo de
uma criança sem limite. Não necessariamente precisamos
tê-la para saber disso. Contudo, é preciso educá-la. Então,
procuramos várias razões para explicar e conceituar determinadas
atitudes dos adultos, sem conhecer seu histórico
familiar. O adulto problemático de hoje foi a criança sem limite
do passado; o péssimo pai de hoje foi a criança que não
viu um gesto de perdão entre os pais; o adulto que vemos
hoje em CPIs, envolvido em casos do mensalão, com certeza
foi uma criança sem limite. O narcisismo nas academias, as
cirurgias plásticas, os silicones são formas de aquela criança

que pedia socorro ser vista e amada. O lar conflituoso fará
adultos conflitantes consigo mesmos.

Limitar é ensinar a tolerar frustrações. É prevenir para
que, no futuro, uma dificuldade qualquer não se transforme
em uma barreira intransponível.

Limitar é ensinar que todos temos direitos, mas deveres
também. Limitar é mostrar que o outro também
deve ser considerado quando nos decidimos a agir, que
nunca devemos pensar apenas em nós mesmos, mas,
sim, compreender que vivemos em grupo — ou seja,
convivemos. É, antes de tudo, preparar nossos filhos
para o exercício da cidadania. É, pois, uma parte importante
do trabalho educacional da família. Um pai e
uma mãe conscientes não se deixam levar pelo medo do
que está acontecendo por aí afora; ao contrário, tudo o
que acontece na sociedade deve servir de base para encontros
e conversas com os nossos filhos. E, finalmente,
dar limites é dar responsabilidade, o que implica tornar
nossos filhos, mais cedo, adultos responsáveis (ZAGURY,
Tania. Encurtando a Adolescência. p. 45).

Os limites dados à criança diminuiriam, com certeza, os
problemas de incesto, divórcio, falta de compromisso com
as dívidas a serem pagas, o limite nos cartões de crédito, a
violência no trânsito, os casos de crimes passionais, a falta
de respeito ao outro, e, sem sombra de dúvida, os divãs ficariam
solitários, e os presídios como meio de reeducação
deixariam de ser o lar daqueles que foram órfãos de pais
vivos.

Então, se o desejo da sociedade é construir homens fortes,
precisamos rever nossos conceitos educacionais e travar
uma batalha contra essa invasão inovadora da modernidade

— em que tudo parece ser normal. E lutar para que a família
volte a ser a verdadeira transformadora do comportamento
transgressor é a primeira sacada. Os pais estão perdendo os
filhos para um fantasma que os assombra por muito tempo,
e eles não sabem como exorcizá-lo: o fantasma da ausência.
O mundo acelerado exige que se trabalhe cada vez mais
para que os filhos possam ter mais. Porém, será que apenas
isso os satisfaz? Será que não seria muito mais significativo
para uma criança uma conversa ao pé da cama ou um beijo
de boa-noite do que um celular novo? Será que uma visita
repentina à escola não faria mais efeito do que o comparecimento
na festa de final de ano? Existem educadores que
nunca viram os pais dos seus alunos. A escola passou a ser
um orfanato.

Os complexos dos adolescentes e adultos — baixa autoestima;
a insegurança para dar os primeiros passos, escolher
uma profissão, mudar de emprego; ou até mesmo fáceis tarefas
como escolher uma roupa — serão sempre reflexo da
infância sem limite. Quando percebermos que a solução para
esses conflitos é o seio de uma família bem alicerçada pelo
respeito, pelo amor e pelo afeto ao próximo, grandes conflitos
mundiais serão solucionados, porque todos eles são de
ordem pessoal. Será difícil construir uma rocha, mas colher
migalhas perdidas no caminho será sempre impossível.

Emerson Santana é formado em Letras e possui especialização em
Literatura Africana de Língua Portuguesa.

Referências Bibliográficas

ZAGURY, Tania. Encurtando a Adolescência. 10. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2004.

Os Direitos dos Pais: Construindo Cidadãos em Tempos
de Crise. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

¹ Essa citação é de autoria de Frederick Douglass (1818–1895), um
abolicionista, estadista e escritor afro-americano.

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