Edição 55

Espaço pedagógico

“Educador é aquele que aprende”

Marcelo Iha
Da redação do Portal Pró-Menino

Entrevista com o educador Tião Rocha

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Tião Rocha ganhou o prêmio Empreendedor Social de 2007

Ele criou a “pedagogia da roda”, fez de um pé de manga uma sala de aula diferente e inventou jogos educativos para ensinar alunos com dificuldades em determinadas áreas. O educador mineiro Tião Rocha, de 59 anos, fundou o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD) há 24 anos, com uma metodologia de Educação que “incomoda aqueles que não querem sair do lugar”, nas palavras dele mesmo, e critica a chamada escolarização, atualmente praticada pela maioria das escolas brasileiras.

A experiência de Tião foi exportada para países como Moçambique, Angola e Guiné-Bissau, na África, e sua iniciativa foi reconhecida pela Fundação Schwab e pelo jornal Folha de S.Paulo com o prêmio Empreendedor Social de 2007, que busca identificar líderes de organizações que desenvolvam produtos ou serviços voltados à melhoria da qualidade de vida e que sejam exemplos a serem seguidos.

Em entrevista concedida ao portal Pró-Menino, o educador conta suas experiências pessoais e profissionais e como são as concepções inovadoras que possui na área da Educação. Confira abaixo a conversa na íntegra.

Portal Pró-Menino – O que representou, para o senhor, ser eleito o empreendedor social de 2007?

Tião Rocha – Primeiramente, foi uma boa surpresa e uma honra ganhar esse prêmio. Por outro lado, é também um grande desafio ser reconhecido por um trabalho e, ao mesmo tempo, tornar-se uma referência para outras pessoas, educadores, projetos e ter que me manter sempre atualizado.

Pró-Menino – Qual é sua principal contribuição para a Educação brasileira nos dias atuais?

img-1680-02Tião – Separar o que é Educação e o que é escolarização e propor não só caminhos alternativos, mas também alterativos, opções para que tenhamos uma escola mais eficiente e comprometida com a Nação e com uma Educação verdadeira e integral para todos os meninos. Acredito que nossa grande contribuição é pensar fora da caixa, do padrão ou do modelo histórico e institucionalizado que está incrustado no sistema educacional brasileiro.

Pró-Menino – Faz sentido a separação entre a Educação formal, aquela que se dá dentro do espaço físico, e a Educação informal, que acontece em outros espaços de aprendizagem, como projetos sociais, que são cada vez mais presentes no Brasil?

Tião – Primeiro, precisamos separar o que eu chamo de Educação de escolarização. Educação é um fim; escolarização é um meio. Existe um projeto de escolas que trabalha dentro da fôrma e, na maioria das vezes, dentro do formol, ou seja, são escolas que estão fechadas em si mesmas, que têm um conteúdo já pronto e um currículo fossilizado e predefinido há muitos anos, que não se atualiza. Por isso, o formol. Só muda a data de ano para ano, mas o conteúdo, o programa e as matérias são os mesmos. E, na maioria das vezes, até o jeito de ensinar é o mesmo. Essa dita Educação produzida nessas escolas não educa, mas apenas escolariza, se reproduz ano após ano. Esse é o aspecto crucial para mim, pois a escola não consegue cumprir nenhuma função social importante, nem a formação educacional integral (desejada por todos) nem a preparação para a vida profissional (desejada pelo mercado), por exemplo. Alguns anos atrás, a gente dizia que a escola era o aparelho ideológico do Estado. Hoje, ela é o aparelho ideológico do mercado, pois atende aos interesses dele e está à sua mercê, preparando gente como mão de obra para um mundo volátil, excludente, seletivo, individualista, amoral e competitivo. Essa privatização da escola não produz Educação, mas escolarização, e esse é o ponto fundamental. Para que haja Educação de verdade e integral, temos que pensar além dos muros da escola, além das necessidades do mercado e além do conteúdo focado e pré-formatado. Temos que pensar em outras formas de aprendizagem, e não apenas de “ensinagem”, por isso a chamada Educação não formal está fora da fôrma, pois se aprendem e se ensinam outras coisas relativas ao dia a dia, à cidadania, à ética, à rua, à casa, à solidariedade, ao trabalho, à igreja, ao clube, às relações sociais, à vida social ativa. Se pensarmos em Educação integral no sentido pleno, ela vai muito além da escola, já que esta, sozinha, não consegue nem pode nem deveria querer dar conta de tudo, da complexidade que é a vida de hoje. Precisamos construir mais espaços e tempo de aprendizagem e de humanidade, portanto, de Educação. Precisávamos mesmo separar o trigo do joio nessa história.

“A escola, atualmente, não forma pessoas éticas, justas, dignas, solidárias, pois está comprometida com os interesses do mercado, do qual tornou-se aparelho ideológico.”

Pró-Menino – Algumas experiências iniciadas em Curvelo (MG) já estão sendo adotadas em outros países, como Portugal, Angola e Moçambique. Como foi a entrada nesses países e por que eles se interessaram pela sua proposta de Educação?

img-1680-03Tião – Começamos em Curvelo, há 24 anos, a partir de uma pergunta: é possível fazer Educação sem escola, sem prédio, sem estrutura física ou é possível a gente fazer uma boa escola e uma boa Educação debaixo do pé de manga? Essa experiência gerou o Projeto Sementinha, a escola debaixo da mangueira, que demonstrou, na prática, depois de muita experiência e muita “desaprendizagem”, que é possível, sim, fazer Educação sem escola. Aprendemos também que só é possível fazer boa Educação com os bons educadores. E isso é vital, porque os educadores ruins fazem Educação ruim. Essa experiência expandiu-se gradativamente pelo interior de Minas, Vale do São Francisco; depois para a Bahia; o Maranhão; Vitória, no Espírito Santo; Vale do Jequitinhonha. Um belo dia, algumas fundações internacionais que estavam muito preocupadas e atuando nessa questão da Educação e da escolarização nos países do Terceiro Mundo nos convidaram a levar isso para a África, e assim começamos a trabalhar em Moçambique com educadores que trabalhavam com crianças e jovens que viviam nos campos de refugiados de guerra. Ali era um país destruído pela guerra civil e que tentava se reorganizar, realocar a população que vivia andando de um lado para o outro, perdida em campos de refugiados. Buscavam fixar essas pessoas e criar um processo de Educação. Eles reconheceram que o Projeto Sementinha era uma possibilidade. Fomos para lá, e a ideia se expandiu, e depois adotaram nossas pedagogias também em Angola, Portugal e outros lugares, num processo de apropriação e adequação comunitária, segundo as necessidades de cada país.

Pró-Menino – Na questão do espaço físico da escola, ouvimos muito, nos noticiários e jornais, casos de crianças de diferentes séries dividindo a mesma sala por falta de espaço e que ficam sentadas no chão por falta de cadeiras. O senhor defende que o espaço físico é dispensável para a Educação?

Tião – Recentemente, vi na televisão uma série de denúncias e situações de escolas em fundos de casa, garagens e lugares absolutamente inapropriados. O grande problema, na minha opinião, não era o lugar, mas o conteúdo daquela escola, pois uma dessas reportagens dizia que os meninos estavam “aprendendo” sobre meio ambiente enquanto estavam lá sentados num lugar que parecia um lixo. Por isso, o problema maior não é o espaço, e sim o conteúdo e a forma, porque não depende se o menino está sentado em uma cadeira confortavelmente ou sentado em cima de um caixote. Se o aluno aprende algo que não tem nada a ver com a sua vida e sua realidade, isso não afeta sua formação. O equívoco dessas matérias da imprensa é o foco simplesmente na escola como prédio, como se isso fosse a solução. Um outro aspecto é que, se mostrarmos escolas em prédios com boa estrutura física, levantamos as seguintes perguntas: esses meninos estão aprendendo bem? Eles estão se transformando em cidadãos melhores? É preciso começar a avaliar isso. Imaginemos os garotos que colocaram fogo no índio em Brasília. Com certeza eles estudaram nas melhores escolas da cidade, nos melhores prédios, com ótimas estruturas, e tiveram o máximo de escolarização. No entanto, provavelmente a Educação foi zero, porque é impossível que um jovem seja capaz defazer tamanha atrocidade. Então, essa escola contribuiu ou deixou de contribuir com o quê? Por isso, o importante não é o lugar onde estão, mas o que efetivamente aprendem e o que dá sentido à vida das pessoas.

“É necessário rever os parâmetros e paradigmas educacionais para construirmos o Brasil que queremos.”

Pró-Menino – E o que mais te desagrada na educação formal?

Tião – A Educação formal não cumpre sua missão, pois a escola não educa, só escolariza. E outro ponto é que, atualmente, ela não forma pessoas éticas, justas, dignas, solidárias, mas está comprometida como um aparelho ideológico do mercado, que, como falei, é volátil e está formando pessoas para o mercado de trabalho para serem competitivas, eficientes e ganharem o máximo no mínimo de tempo, não importa se eticamente ou não. E o pior é que nem isso a escola brasileira está fazendo bem. Basta vermos os últimos resultados do exame do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), que mede a avaliação de estudantes de 15 anos nos campos da leitura, escrita, matemática e das ciências. Os alunos brasileiros foram uma calamidade e ficaram nos últimos lugares, ou seja, essa escola não consegue nem preparar gente para esse mercado, muito menos pessoas dignas e decentes. E, quando falo escola, não é apenas a escolinha lá do interior, de Ensino Básico ou pública, mas também a universidade. Por exemplo, o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto teve todas as escolas, fez MBA, pós-graduação, etc., mas esse indivíduo, com certeza, nunca teve uma aula de Ética e não sabe o que é isso, caso contrário não faria tanta roubalheira. Para um caso desses, que é um desastre, a universidade onde ele estudou deveria tomar-lhe o diploma, porque ele rompeu com o juramento. Era o mínimo que deveria ser feito a bem da moralização do Ensino Superior brasileiro. E a universidade deveria pedir desculpas à sociedade por ter formado e diplomado pessoas como Dr. Lalau, da mesma forma que ela deveria ser cumprimentada pelos bons exemplos de cidadãos formados. Para mim, nossa escola deve nos preparar para a construção de uma nação, de um país, e não apenas de mão de obra. Se queremos um país ético, justo, com menos corrupção, solidário, como podemos ter uma escola que prepara pessoas só para o mercado, em que vale tudo e o mais esperto leva todas as glórias? Acredito que esse modelo é um grande equívoco e que estamos em um momento crucial em que é necessário rever tais parâmetros e paradigmas para construirmos o Brasil que queremos e de que necessitamos. Se temos uma escola medíocre, de segunda categoria, o País também continuará assim, um país de segunda. Então, precisamos pensar qual escola queremos ter. Eu acho que podemos vir a ser os campeões mundiais de Educação e construir escolas tão boas e eficientes quanto as nossas seleções e equipes esportivas.

Pró-Menino – O portal Pró-Menino é um projeto comprometido com a implementação dos direitos da criança e do adolescente. Qual é, na sua visão, a contribuição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para a Educação brasileira?

Tião – A grande conquista do ECA foi trazer para a pauta da sociedade e das políticas públicas a importância e o valor da criança e do adolescente como prioridade em todas as ações e políticas. Já temos alguns anos de existência dessa lei e da dificuldade de sua implementação, ou seja, de sair do desejo e da legitimidade para a prática e fazer com que as pessoas e instituições assumam o ECA como um exercício diário de vida digna e cidadania plena para todos os meninos. Nesse aspecto, ainda falta muito. Por exemplo, segundo dados do Simave, de 2003, dos alunos com oito anos de escola, somente 3,3% das crianças do Vale do Jequitinhonha alcançaram o índice de suficiência, enquanto 96,7% estavam abaixo desse índice em uma categoria chamada de insuficiência. E mais de 50% deles estavam num estágio chamado de estado crítico. Essas estatísticas mostram a falência do sistema de ensino, porque, se mais de 96% desses estudantes não aprenderam, a escola formou uma massa de gente analfabeta e semianalfabeta. Essas crianças não serão cidadãs por inteiro, mas só meio cidadãs, pois não terão acesso e possibilidade de se desenvolver plenamente nem no próprio mercado de trabalho. E o que aconteceu? Nada! A culpa do fracasso escolar ficou na conta das próprias crianças, que, de vítimas, passaram a culpadas pelo próprio analfabetismo. O Conselho Tutelar ou o Conselho de Direitos deveria intervir nessas escolas e obrigá-las a alfabetizar, e bem, todas as crianças. É um direito inalienável delas. Todos os meninos que passam oito anos no Ensino Fundamental deveriam sair da escola bem formados, alfabetizados integralmente, e isso é obrigação do Estado e da sociedade, um direito previsto pela lei. Nunca vi ou ouvi falar, mas gostaria de ver um Conselho de Direito ou Tutelar pedir ao Ministério Público para fechar uma escola por incompetência ou a obrigar a alfabetizar todos os alunos, sem exceção. Metade das escolas deste país teria que ser fechada ou multada pelo Procon por enganarem o consumidor, por não entregarem à sociedade os estudantes preparados como prometido e previsto pelo ECA. Não adianta ficar fazendo programas paralelos, a escola deve ter o compromisso e a obrigação de ensinar a todos, sem excluir. Se o menino não aprende, a culpa não é dele, mas da escola, pois todos são aptos para aprender tudo no seu tempo e no seu ritmo. Deveria ser proibido deixar qualquer criança sair da escola sem aprender o mínimo necessário para sua vida social como cidadão brasileiro. No dia em que isso acontecer, o ECA torna-se efetivo.

“[…] gostaria de ver um Conselho de Direito ou Tutelar pedir ao Ministério Público para fechar uma escola por incompetência ou a obrigar a alfabetizar todos os alunos, sem exceção.”

Pró-Menino – O que o senhor acha da mudança da LDB que insere os direitos da criança e do adolescente no currículo do Ensino Fundamental?

Tião – Tenho muito receio dessas medidas que visam “curricularizar” a vida, pois, quando qualquer assunto é colocado em uma grade curricular, pode ser uma forma de se ter controle e torná-lo apenas uma matéria a mais. O que era para ser bom vira uma chatice. Se o tema solidariedade virar matéria curricular, nada garante que o índice de solidariedade entre as pessoas vá aumentar. O que é preciso é praticar sempre, todo dia,a solidariedade, e não ter trabalho e prova sobre o assunto. Na época dos governos militares, em toda escola tínhamos uma disciplina chamada Educação Moral e Cívica, no ginásio; Organização Social e Política Brasileira (OSPB), no Segundo Grau; e Estudo dos Problemas Brasileiros (EPB), nas universidades, que a moçada chamava de “estuprobrás”. Todas eram obrigatórias, repletas de doutrinas e ideologismos, quando não de propaganda estatal. Por isso, tenho receio dessa mudança na lei, porque deve haver uma prática diária dos direitos das crianças e dos adolescentes, e não se guardar isso como aula na grade curricular. Como ação viva da Educação, acho muito legal e importante, mas o duro é ter uma aulinha disso por semana no meio de dez aulas de Matemática e outras tantas matérias e a cidadania tornar-se um adereço ou alegoria. Aí é bobagem e perda de tempo para quem ensina e quem aprende.

Pró-Menino – Como suas experiências escolares influenciaram as opções profissionais e a prática como educador atualmente?

Tião – Minha experiência na escola foi ruim, como a da maioria das crianças no Brasil. Tive uma escola excludente, seletiva, preconceituosa e racista, porque era uma escola branca, europeia, cristã e capitalista, como é até hoje. Percebi que tinha duas alternativas: ou eu me ajustava e aceitava aquilo como valor ou me rebelava. É claro que optei pela segunda, e isso tem um preço a se pagar, pois a maioria daqueles que se rebelam torna-se os “marginais”, os “meninos-problema”. Por outro lado, tive uma compensação que foi fundamental e me marcou muito, pois meu ambiente comunitário era muito bom. Isso me ajudou muito não só a enfrentar, mas também a estabelecer uma formação melhor. Por isso sou contra tirar os meninos da rua. Não quero tirá-los de lá, mas, sim, mudar a rua, pois ela é o lugar da cidadania, da manifestação cívica, por onde passam as procissões religiosas, onde se comemoram títulos de futebol, onde há o ato público, a festa popular, a passeata pela greve ou a manifestação pelos direitos da criança, pelos direitos humanos, etc. Quer dizer, a rua é um espaço importante de aprendizagem. Então, por que temos que tirar os meninos e as meninas dali? O lugar deles é na rua, na praça, no coreto, no shopping, nos estádios, nas escolas, em todo lugar. Ou ele é cidadão por inteiro ou ele é cidadão “meia-boca”, e me incomodam muito esses discursos que dizem demagogicamente que “lugar de criança é na escola”, pois eu falo que, na escola, só se for aprendendo. E o que tento fazer atualmente é trabalhar em comunidades que façam de suas ruas e seus bairros espaços permanentes de Educação. Eu tive a oportunidade de viver numa rua muito boa, que me ajudou muito para a não aceitação do modelo padrão e autoritário de escola e de Educação. Tudo isso foi fundamental para minha vida e para a opção do que faço e acredito hoje. “Apesar de a maioria das instituições dizerem que temos de tirar os meninos da rua, não quero tirá-los de lá, mas, sim, mudar a rua.”

Pró-Menino – Como a família foi importante na sua formação?

Tião – A família é importante para todo mundo, mas, quando falamos nela, também temos que ter claro do que e de quem estamos falando. Família pode ser o pai, a mãe, os irmãos, os primos e todas as relações de parentesco envolvidas. Boa parte das famílias de nosso país só tem a mãe com uma penca de filhos, porque o pai sumiu. Outras têm só a avó, e há crianças que saíram de casa para refazer sua família nas ruas, nas gangues, nas galeras. O Mapa da Exclusão de São Paulo, inclusive, mostrava que 34% dos meninos que viviam na Praça da Sé saíram de casa para não perder a família e foram constituir a sua família na rua, que era a gangue. Todo mundo precisa ter família, porque, para mim, família significa o ninho, o colo de que todos nós precisamos. Deve ser um lugar que te receba, que te acolha e que te dê a possibilidade das relações de afeto. Nesse aspecto, precisamos oferecer o que eu chamo de cafuné pedagógico para todos aqueles que não o tiveram. Só consegue fazer esse cafuné nos outros quem já o teve na vida, pois isso é algo eminentemente íntimo e familiar. Eu tive o privilégio de ter um ninho, do ponto de vista das relações de parentesco, mas também fui acolhido por meus amigos na rua, construímos laços e companheirismo e familiares, e tudo isso cria os ninhos, forma a família de que todos nós precisamos.

Pró-Menino – O que fez o senhor optar pela carreira de educador?

Tião – Tenho formação em História e Antropologia. Fui professor durante muito tempo. Dei aula no Ginásio, no Científico, no Segundo Grau e então fui para o Terceiro Grau, a pós-graduação, o mestrado, etc. Em determinado momento, por volta de 1982, era professor na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop-MG) e me dei conta de que eu não queria mais ser professor. “Agora quero ser educador”, dizia, e comecei a falar sobre isso com meus colegas, mas eles respondiam que os dois eram a mesma coisa, sinônimos, com o mesmo salário e a mesma chatice. Mas eu dizia que não, que eram coisas diferentes. Eles perguntavam qual era a diferença, e eu falava: “Professor é aquele que ensina, e o educador é aquele que aprende”. Eu preciso parar de ensinar e começar a aprender, e a universidade deveria deixar de ser uma instituição de “ensinagem” e se transformar em uma instituição de aprendizagem de fato. Precisamos aprender porque, se não, a gente fica fechado intramuros e paredes, cheirando a mofo e respirando gás carbônico porque não entra oxigênio para arejar. Foi quando percebi que a universidade, em vez de se abrir e se arejar, foi fechando as portas e as minhas possibilidades. Então, dei-me conta de que não podia ficar naquela instituição, pois ela não queria educadores, mas só professores, gente que soubesse ensinar e repassar a informação. Por isso, pedi demissão, e, para minha surpresa, quando fui ao departamento de pessoal, o chefe do setor disse que eu não podia me demitir porque nenhum professor de universidade pública brasileira faz isso e que nunca havia tido um caso assim naquela universidade. Ele não tinha nem o formulário, então falei: “Pode deixar que eu crio! Fui!”. Ao sair dali, comecei um novo caminho e criei o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD), há 24 anos, para ser uma instituição guarda-chuva que pudesse abrigar as nossas perguntas e fosse um exercício de ser aprendiz permanente.

“Professor é aquele que ensina, e o educador é aquele que aprende.”

Pró-Menino – Então, como deveria ser a formação de um educador?

Tião – Ser educado é um dos fins da nossa vida, já que viemos ao mundo e temos pouco tempo aqui — não há segundo turno na vida, é turno corrido. Nós somos inquilinos, não proprietários do mundo, e estamos de passagem — e para quê? Para sermos educados, livres, felizes e termos saúde, penso eu. Por isso, acredito que a Educação é fim, e não meio, e o educador é aquele que cria as condições para as pessoas aprenderem tudo e todo o tempo. Educador é aquele que possibilita às pessoas a aprendizagem para a realização plena de todo o potencial humano que trazemos e construímos. Então, a Educação deve preparar para que cada um seja um grande aprendiz com os outros, com o todo. Podemos defini-la como quisermos, mas ela só acontece no plural. Não existe Educação no singular, pois, para que haja Educação, é necessário no mínimo duas pessoas. E Educação não é aquilo que eu ou o outro sabemos, mas o que nós conseguimos trocar e aprender juntos; é na soma (1 + 1 = 3) que se aprende junto com o outro e se produz o milagre da Educação. Por isso, penso que a formação do educador deveria preparar o indivíduo para ser um aprendiz permanente, com uma capacidade de ouvir e de aprender de uma forma generosa e intensa. Quando nós conseguimos despertar nas pessoas esse potencial de educador que todos nós temos, percebemos que é possível fazer isso em escala maior. Aprendi lá em Moçambique que, “para educar uma criança, é necessária toda uma aldeia”. Então, uma cidade deve ser sempre uma cidade educativa, uma grande aldeia. O importante é trabalhar esse potencial e disponibilizá-lo como possibilidade concreta para criar uma vida melhor para todos.

Pró-Menino – Como isso pode ser feito?

Tião – Pela nossa experiência, construímos a “pedagogia da roda” para que todo mundo pudesse se ver e percebemos que, na roda, com as pessoas confortavelmente instaladas, não tem ninguém que manda. Numa roda, as informações circulam de um lado para o outro, e o que comanda é o conteúdo, são os desejos, os conhecimentos e os interesses de todos que estão nela. Quem está sentado na roda é educador, e não importa se é criança ou adulto. Começamos a perguntar o que iríamos estudar e aprender juntos, e, como cada um tem um desejo, aparecia uma listagem com trinta ou quarenta assuntos. Em um primeiro momento, começamos a usar a lógica econômica selecionando o que é mais importante e fazendo uma eleição do tipo “maioria vence”. Isso é bacana como prática de exercício da democracia. Mas, no aspecto educacional, é uma lástima, porque, se um determinado tema proposto por uma criança qualquer fosse vetado e ela “perdesse” no primeiro, segundo e terceiro momentos, na quarta vez que tivesse nova eleição ela nem entraria, pois já teria se excluído ou pensaria: “Poxa, vou embora porque nunca ganho. O que me interessa nunca interessa ao grupo”. E uma escola que exclui não educa!

Pró-Menino – E, então, o que fizeram?

Tião – Com isso, percebemos que, se continuássemos daquele jeito, perderíamos os meninos e, para não perder ninguém, mudamos o jeito de fazer, e a eleição ficou proibida. A eleição do tipo “maioria vence” é boa como exercício de vida democrática, mas não como processo educacional, porque exclui pessoas. Temos que aprender a construir consensos. E o que isso significa? Se temos uma pauta com quarenta assuntos, ótimo, vamos organizá-los como prioridades: o que é mais importante para se estudar hoje, amanhã e assim por diante, até trabalhar com todos os assuntos. Então percebemos que a participação era de muito mais qualidade, todas as opiniões e propostas eram valorizadas porque não queríamos perder nada e queríamos estudar tudo. Também percebemos que, ao fazer novos consensos, os assuntos adquiriam mais qualidade e o envolvimento era muito maior nas rodas.

“Educação só acontece no plural. Não existe no singular, pois, para que haja Educação, é necessário no mínimo duas pessoas.”

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Pró-Menino – Deu certo?

Tião – Sim. Isso não era problema nem dificuldade. Pelo contrário, era uma solução. Não se faz isso na escola porque é mais cômodo, para quem ensina, achar que todo mundo precisa aprender a mesma coisa, do mesmo jeito e no mesmo tempo, o que é um equívoco de um autoritarismo tremendo. Hoje, as crianças têm muita clareza disso porque alguém decide o que elas precisam aprender, que existe uma autoridade, mas o que elas precisam aprender efetivamente é a saber respeitar, socializar, ter tolerância e solidariedade e criar relações de justiça. Tenho citado um caso que aconteceu comigo recentemente, quando uma aluna de 9 anos me disse que, nas férias, havia esquecido o que era hectômetro e estava preocupada que esse “assunto” caísse na prova. Disse-lhe que ela (nem ninguém) não precisava saber isso e que nem cairia na prova. Perguntei se ela sabia o que era centímetro, metro e quilômetro, e ela respondeu que sim. Então eu disse: “Minha filha, você está pronta para andar pra baixo e pra cima, medir as coisas, viver a vida inteira, e ninguém vai pedir para você medir ou mostrar nada em hectômetro. Isso só interessa para a pós-graduação, no doutoramento de Matemática, Física, sei lá…”. Passados alguns dias, ela voltou. A questão caíra na prova, e ela perdeu nota. Imagine quanto desperdício de tempo e de talento por causa de inutilidade. As crianças têm que aprender brincando, aprender a serem justas e solidárias. Esses temas devem ser deixados para a época certa, no ritmo, no tempo e no momento necessários para a vida das crianças. Então essa é a grande questão: se nós quisermos realmente aprender, temos que fazer o exercício de humildade, e não pensar que nosso conhecimento de adulto ou professor de escola é único e verdadeiro. Mas, infelizmente, reafirmo que o nó da questão é que a escola teima em ser um aparelho ideológico do mercado. Atualmente, muitas famílias, principalmente da classe média, colocam o filho em determinada escola infantil ou pré-escolar porque pensam que a escola pode preparar a criança para o vestibular desde pequena. Aliás, existe até “vestibulinho” para maternal e pré-escolar. Ou seja, é uma escola que instrumentaliza e treina o menino, desde cedo, para passar numa prova, e não importa se ele vai ser feliz, ser boa gente ou ético. Depois de passar, ele vai pegar um diploma para ter um emprego, ganhar dinheiro, ficar rico e poderoso. Se futuramente ele cair nas operações da Polícia Federal por roubalheira, ninguém estará preocupado com a sua formação. Percebam o seguinte: a maioria das pessoas acusadas de crimes contra o patrimônio público, nos últimos anos, tem um vasto currículo escolar. A maioria tem curso superior. Portanto, temos um problema, já que essa escola não formou cidadãos. Se a gente começa a trabalhar com as crianças lá na base, não é tempo perdido, mas, sim, um investimento, e a escola pode fazer isso nos quatro anos de Ensino Básico. Os estudantes precisam sair de lá aptos para aprender a viver bem e dignamente, dominando os códigos de leitura, de escrita, de comunicação e de bem-viver. E há assuntos que só serão vistos lá no Segundo ou Terceiro Grau ou quando ele quiser estudar, pois na vida é possível se interessar e aprender tudo, o tempo todo e de todas as maneiras, e não temos só a escola o tempo inteiro para nos ensinar.

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Pró-Menino – Pela sua metodologia, nos exemplos que o senhor citou da “pedagogia da roda” e da conversa com a menina sobre o hectômetro, é necessário estar sempre atento às demandas dos alunos. O senhor acredita que o educador é um pouco como um psicólogo?

Tião – Não sei se o educador deve ser um pouco psicólogo. Ele precisa ser um aprendiz permanente e bom ouvinte; ele precisa aprender a transformar os saberes, fazeres e quereres das crianças e dos jovens em instrumentos de aprendizagem para todos. Então, eu falo que é como usar as Tecnologias da Informação e da Comunicação (as TICs) para transformá-las em conhecimento, em Tecnologias de Aprendizagem e de Convivência (as TACs). É necessário esse exercício de ritmo, tempo e pulsação no processo de aprendizagem. O educador é um construtor de pedagogias próprias. E deve ser verdadeiro. Não adianta a gente querer que ele saiba ou tenha a resposta para tudo, mas ele precisa ser uma pessoa curiosa, instigante, que queira aprender junto e que pesquise todo dia. E outro ponto que nossos professores ainda não descobriram é que esta é a única categoria profissional que tem o privilégio e a honra de estar diante de seu “cliente”, que são seus alunos, todos os dias. Isso não acontece com o psicólogo nem com o médico, o engenheiro, o advogado, o padre ou o bancário, pois eles encontram seus clientes de vez em quando, ao ir ao banco, à igreja, ao hospital, etc. Já o professor está diariamente com o aluno, ou seja, se ele quiser, pode rever e passar o mundo a limpo todos os dias. Isso é fundamental porque, se ele tiver esse jeito de olhar e a vontade de fazer, ele pode realizar uma transformação fantástica. Por outro lado, se ele acredita que os meninos passam quatro anos para aprender sempre a mesma coisa, com repetição e perda de tempo, aí acaba criando um lugar que fica chato para ir, ficar e conviver. Por isso, é sempre um grande desafio pensar qual seria a escola ideal: é aquela em que os alunos, professores e funcionários querem que haja aulas aos sábados, domingos e feriados, por exemplo. Atualmente ocorre o contrário: é só falar de um feriado à vista que todos ficam felizes. Muitos professores pensam assim e dão graças a Deus quando ficam três dias ou uma semana sem ver aqueles “capetinhas”. E do outro lado, com os meninos, acontece a mesma coisa, pois eles falam: “Oba, vou ficar sem ver aquela jararaca!”. Ou seja, temos um problema de relação: enquanto o professor fica copiando coisas em que não acredita na lousa, mas porque alguém mandou fazer, os alunos são obrigados a copiar aquilo que não faz sentido na vida deles. Então um finge que ensina, o outro finge que aprende, a escola finge que existe e o Estado finge que paga, criando essa relação de mútuos fingimentos. E as pessoas imaginam que está tudo certo, mas depois estouram as estatísticas de violência e criminalidade, e alguém grita que o motivo é a falta de investimento em Educação…

“Para educar uma criança, é necessária toda uma aldeia.”

img-1680-06Pró-Menino – Como o senhor vê o uso da tecnologia da Internet na Educação?

Tião – Qualquer que seja a tecnologia, ela será sempre um instrumento a serviço da nossa humanidade e, se for bem usada, pode ser muito legal. O acesso à informação pela Internet possibilita a transformação das Tecnologias de Informação e da Comunicação (as TICs) em Tecnologias de Aprendizagem e Convivência (as TACs). E isso é a própria pessoa que faz, não é o computador. É o menino com a capacidade de transformar aquilo que leu em valor, e isso serve para todos e para qualquer mídia — como a televisão e a Internet —, outras linguagens, os livros e todas as pedagogias. As TICs devem estar sempre à disposição das TACs.

Pró-Menino – Como a sua concepção de ensino e de aprendizagem é vista por outros profissionais da área de linha mais tradicionalista?

Tião – Nunca fiz uma avaliação rigorosa disso, mas o que observo é que incomoda muito os tradicionalistas, pois cutuca e mexe na ferida. Eles se sentem incomodados e tentam reagir. Claro que quem é tradicionalista e conservador não quer sair do lugar, e, toda vez que se faz uma provocação, ele precisa se sacolejar, tirar a poeira e o ranço. Também é cômodo ficar no mesmo lugar, empurrando com a barriga, quando ninguém cobra resultados. Por isso, incomoda muito mais pessoas como os gestores de políticas de ensino, secretários e ministros. Essa turma toda se sente muito amarrada a algo que julgam muito maior que eles: é o dito sistema, que pensam estar pronto e acabado. Chegam lá só para cumprir tabela, aplicar regras e normas caducas, e a maioria não quer nem tentar mudar, prefere fazer pequenas reformas; são reformistas, não transformadores. Quando se mexe na possibilidade de construir o novo, é preciso mudar de posição para ter outra perspectiva, pensar e agir de forma sistêmica, sair da caixa e da fôrma, pois não dá para transformar a sociedade sem sair do lugar.

Pró-Menino – E pelos mais “progressistas”?

Tião – Estes, vejo que assumem muito como uma bandeira, e, nesse caso, a grande dificuldade é executá-la e colocá-la em prática. Vemos pessoas fazendo coisas extraordinárias de forma anônima na escola, na sala de aula ou na comunidade, mas com muita dificuldade de serem reconhecidas, porque a diretora da escola não admite ou a superintendência de Educação olha com maus olhos. E a Secretaria da Educação e o MEC nem sabem ou imaginam que existem e o que está acontecendo lá na ponta. Mas existe muita coisa positiva, e vejo que estamos fazendo basicamente algo que vai na contramão da lógica e dos teóricos da Economia, da Política, pois podemos fazer política pública não governamental. Quem disse que só o Estado faz política pública e que nossa sociedade civil organizada e desorganizada também não faz? Podemos fazer algo de caráter coletivo para o bem-estar de todos, e esse é o novo paradigma quando se começa a romper com determinadas lógicas e a quebrar um monte de barreiras. Com essa lógica de dividir os espaços de atuação em compartimentos estanques — a “educação bancária”, que Paulo Freire criticava quando dizia da relação do ensino e da aprendizagem —, temos o Primeiro Setor, que é de responsabilidade do Estado; o Segundo Setor, que é da área do mercado; e o Terceiro Setor, que é da sociedade. Mas, ao olharmos o aspecto da eficácia dos três setores, percebemos que não funciona, porque eles ficam numa briga em que um setor acusa o outro, e, enquanto isso, ninguém resolve nada. Por isso, defendo, cada vez com mais veemência, que devemos criar o Setor Zero, que não é comandado nem pelo Estado nem pelo mercado nem pela sociedade, mas, sim, pela ética. Por exemplo, não é ético que, em pleno século XXI, tenhamos crianças analfabetas, e isso não é uma questão econômica ou social. Temos que pensar em “analfabetismo zero” e seguir o mesmo raciocínio com pessoas que passam fome neste país com tanta riqueza, pensando em “fome zero”. Não é ético que haja degradação ambiental, desmatamento, queimadas na natureza, então pensamos na “degradação zero”, e também não podemos aceitar a violência contra mulheres e crianças, por isso “violência zero”, e assim por diante. Precisamos zerar esses déficits e, para isso, temos que criar o Setor Zero. Não é questão de saber se isso é responsabilidade de A, B ou C, porque é responsabilidade de todos nós, por uma questão ética, e a ética serve para todo mundo. Temos que cuidar do nosso ethos, da nossa morada, do sentido da nossa vida, por uma razão ética, e transformar isso numa bandeira, numa causa nacional, do País todo, e não tratá-las como questões setorizadas e sempre terceirizadas.

Pró-Menino – Como a cultura popular pode contribuir para o ensino de matérias tradicionais como Matemática e Ciências?

img-1680-07Tião – Aqui no CPCD, criamos o MDI (de quantas Maneiras Diferentes e Inovadoras podemos, por exemplo, ensinar Matemática ou Ciências para uma criança). Se perguntarmos aos educadores, vai aparecer, provavelmente, uma lista com mais de oitenta possibilidades, ou MDIs, em que provavelmente uma delas será por meio da cultura popular. Se funcionar, ótimo. Se não funcionar, usamos outra maneira, mas o importante não é pegar a cultura popular como solução dos “problemas da lavoura”. Claro que tudo que for ligado à tradição das crianças, da sua comunidade, da sua herança cultural as aproxima do mundo. Mas será muito chato se usarmos isso somente como uma instrumentalização da cultura para atender a um interesse que não tenha a ver com ela. Por exemplo, lá em Curvelo (MG) havia um garoto de 11 anos que estava na primeira série, pois todo ano ele era matriculado, repetia, mas era resistente e persistente, matriculava-se de novo e não aprendia de jeito nenhum. A escola não conseguia ensinar a ele as quatro operações básicas da Aritmética, mas ele sabia jogar damas muito bem e ganhava das pessoas nesse jogo. E aquilo nos incomodava muito, pois o menino era bom de espaço e de lógica. Por que ele não aprendia a Matemática? Na realidade, o aprendizado foi nosso, pois eu achava que Matemática e Aritmética eram coisas iguais, mas são coisas absolutamente diferentes. Matemática é a forma de pensar usando o raciocínio lógico; já Aritmética, qualquer maquininha faz. Então pegamos o tabuleiro de damas e enchemos com números variados e colocados aleatoriamente. Como ele jogava com tampinhas de garrafa de refrigerante, colocamos um sinal de “+” ou de “-” em cima delas, e ele só podia comer uma peça na jogada se ele fizesse uma conta de soma ou subtração. Se ele errasse, o outro faria no lugar dele. Em pouco tempo e dessa forma, esse menino aprendeu a calcular, somar, subtrair e multiplicar. E nós percebemos que tínhamos criado nosso primeiro jogo, uma mistura de damas com Matemática, que chamamos de damática. Ele funciona para resolver dificuldades dos meninos que precisam aprender a somar, subtrair e multiplicar; para dividir, o jogo não serve, pois tem suas limitações. Portanto, a cultura popular pode virar uma “damática”, mas é um prejuízo e uma bobagem pegar qualquer coisa ligada à tradição popular, como a dança ou a música, e forçar o seu uso como simples instrumento.

“Devemos criar o Setor Zero, que não é comandado nem pelo Estado nem pelo mercado nem pela sociedade, mas, sim, pela ética.”

Pró-Menino – O que o senhor acha da lei federal que estabelece a inclusão da História da África e da cultura afro-brasileira nos currículos?

Tião – É um passo importante, mas tenho o mesmo receio, como disse anteriormente em relação à questão da inclusão dos direitos da criança e do adolescente, pois podemos cair na mesma vala. Apesar disso, há um avanço significativo, por exemplo, pela minha própria experiência de vida, de uma história que me marcou profundamente. Sou sobrinho de uma rainha, mas nunca pude falar dela na escola primária, no Ginásio, na faculdade e em nenhum lugar, porque ela era Rainha Perpétua do Congado, da Irmandade da Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Quando fui estudar Antropologia, meu trabalho de pesquisa foi um comparativo entre as mitologias africana e grega, porque tinha necessidade de entender isto: o culto de Oxalá segundo a mitologia yorubá e o culto de Zeus segundo a Teogonia de Hesíodo, base da mitologia grega. Também passei quase cinco anos em uma faculdade de História e, durante seis meses, estudei a mitologia greco-romana, mas nunca tive uma aula sequer de mitologia yorubá. Eu nunca pude falar nem aprender sobre a minha tia rainha nem sobre a cultura yorubá. Como é que pode um país ser mulato, negro em sua essência e ter na negritude uma de suas raízes de força, beleza e talento e isso não ser razão de nosso aprendizado? Temos essa cultura fantástica e fundamental para ser estudada e aprendida. Por isso, penso que é um absurdo os alunos terem que conhecer todos os reis e as rainhas da França, da Inglaterra, todos os Luíses, os Stuarts, os Bourbons e essa turma toda e não existir uma aula sequer sobre os reis e as rainhas do congado ou sobre a cultura negra da África e também a que está no Brasil, nas nossas veias e no nosso dia a dia. Essa é uma conquista, uma forma de nos valorizar, aumentar nossa autoestima e criar mais um espaço, mas esse espaço deve ter o mesmo status de outras matérias e outros conhecimentos, senão pode virar alegoria ou adereço. Precisa ser tão importante como um samba-enredo. Percebemos que hoje esse é um conteúdo tratado com muito carinho, porque está ligado à força e à beleza cultural da nossa negritude. Isso nos diferencia de outros povos, porque somos misturados e diversificados e, apesar de todos os problemas de preconceito que vivemos, estamos levando essas conquistas com muita garra. Por isso, é uma conquista boa pela qual eu louvo e torço para que não fique engradada no currículo e tratada como algo menor e secundário, mas que ela tenha a pujança de transformação, porque traz a geratriz de nossa brasilidade.

Pró-Menino – O que o senhor acha do sistema de ensino brasileiro?

img-1680-08Tião – Como disse anteriormente, do ponto vista do sistema de ensino, atrelado para atender ao mercado, ele está mal. Basta vermos os dados estatísticos do Pisa, que mostram que nossos meninos de 15 anos não estão preparados para concorrer no mercado de trabalho, nessa sociedade competitiva, excludente e capitalista. Se o sistema estiver funcionando como gerador e produtor de cidadania, de solidariedade, de um país mais justo, ele também vai mal, porque não tem alcançado esses resultados e parece que não tem compromisso com essa questão. Então estamos em uma grande encruzilhada, vivendo uma demanda fundamental que a sociedade brasileira deseja: uma Educação de qualidade para seus filhos, netos e tataranetos. Por isso, temos que pensar e construir um sistema de ensino mais ligado aos interesses da nação que desejamos, e não da que temos. Qual é o país e o tipo de cidadão que queremos? Que sejam pessoas mais éticas, sem a defasagem e o abismo da injustiça social, da má distribuição de renda, em um país mais igualitário. Não precisa ser o primeiro do mundo em poder econômico, mas que seja o primeiro do mundo em dignidade e em cidadania. Esse é o grande desafio. Queremos esse país assim ou outro? Torço para que a gente seja campeão mundial da ética, da solidariedade, da alegria, do bem-estar, porque a experiência mostra que um país mais endinheirado não é necessariamente um país melhor. Os resultados estão nos indicadores de qualidade de vida, mas os nossos dirigentes precisam parar de olhar o Brasil apenas pela ótica do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), porque ele só mostra o lado vazio do copo ao medir aspectos de Economia, Saúde e Educação. Precisamos criar um novo jeito de olhar, pelos Indicadores de Potencial de Desenvolvimento Humano (IPDH), observáveis no lado cheio do copo. Para construir essa nova referência, nós temos que começar já, pois, se não fizermos, não vai acontecer. E não serão os americanos nem os europeus que vão fazer isso, porque, para eles, a História já está pronta e acabada, e só precisam dar prosseguimento. Mas nós, sim, precisamos e podemos construir um país.

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