Edição 104

Campanha da Fraternidade 2019

Educar para uma vida em fraternidade com consciência da responsabilidade: uma sociedade justa e solidária

Rosangela Nieto de Albuquerque

Uma vida em fraternidade com consciência da responsabilidade nos remete à reflexão do “ideal” de se viver em comunidade. Almeja-se um mundo que ofereça tudo o que se precisa para levar uma vida digna, significativa, com respeito e responsabilidade, nas regras sociais que conduzem o indivíduo a uma postura cidadã.

Para Max Weber, na Antiguidade clássica, o significado da palavra cidadania permeava a condição de civitas, isto é, os homens, vivendo em aglomerados urbanos, edificavam relações pautadas em direitos e deveres, mutuamente respeitados. Com o passar do tempo, o aspecto de civitas incorporou-se a polis, momento em que os sujeitos das cidades tinham o direito de participar dos negócios públicos (BRAUDEL, 1996). Assim, a polis somente poderia existir com o mínimo de justiça social. Weber, então, acena para uma dinâmica sequencial de cidadania cívica, cidadania política e cidadania social.7

No século XIX, com a inclusão de direitos de proteção ao cidadão contra o arbítrio do Estado, a condição de cidadania é expandida. E, no final do século XIX e início do século XX, o amparo ao cidadão avança, e desenvolvem-se os direitos relacionados à proteção social estendida à condição do cidadão, do indivíduo. Anteriormente, estavam somente relacionados aos riscos do trabalho assalariado (desemprego, acidente do trabalho, etc.).

Nesse contexto, com a evolução da cidadania cívica, política e social na qual já se pensava nos direitos do cidadão e na proteção deste numa realidade social, pode-se então refletir sobre a dinâmica do sujeito “eu enquanto comunidade” e “eu enquanto país”, que, certamente, é resultado do sujeito “eu comportamento social”. Este sujeito social — no sentido histórico da palavra cidadania — remete à ideia de ordem social e emergência dos Direitos Humanos, intrinsecamente ligados à condição humana, esta humanamente fraterna. Ora, se a fraternidade é o sentimento-chave da cidadania, e, de maneira geral, ela não é independente da igualdade e da liberdade, elas estão entrelaçadas e relacionadas à dignidade do homem.

A fraternidade vem expressa nos plenos direitos (sociais, políticos e individuais) e na dignidade dos homens. Ela tem um caráter anacrônico, portanto independente do tempo histórico e dos diferentes contextos sociais. A fraternidade na atualidade nos remete ao projeto de modernidade, ou pós-modernidade, e denuncia o mal-estar social que vivemos e a necessidade de renovação.

Para Bauman (2003), as características da pós-modernidade evidenciam a situação crítica que representa o novo mundo, a sociedade que se apresenta com relações fluidas, relações frágeis, e com relacionamentos não tão duradouros. Os fatores da pós-modernidade acendem a consonância que Weber enfatiza no sentido de que vivenciamos uma ruptura do processo histórico, aumento da polis, a evidência de uma retração do civitas e a inexistência do societas.

A deterioração da societas nos evidencia o grito da mudança, o grito de socorro da necessidade de fraternidade e justiça social, de políticas públicas de dignidade humana. Chega de vulnerabilidade!

Vulnerabilização e cidadania

O processo de vulnerabilização social decorre da precarização das políticas públicas, da educação sem qualidade, da falta de emprego, da inexistência de preparação para o trabalho e dos processos que evidenciam os efeitos do empobrecimento social, que são vetores de desestruturação do universo familiar, da estigmatização e do isolamento social, que denunciam o abandono pelo poder público. Ao se chegar nesse estágio, cria-se um círculo perverso que aumenta a marginalização social.

É nesse espaço que se verificam as maiores taxas de mães jovens solteiras, repetência e evasão escolar e jovens que não estudam, não trabalham e tampouco procuram empregos. Observam-se, portanto, as evidências do aumento da violência, a relação entre as taxas de incidência de homicídios e a precariedade urbana. Não é novidade que, com a implantação de programas de cidade, alguns progressos foram alcançados; programas que foram criados em virtude das preocupações dos organismos internacionais — política econômica neoliberal — que visam trabalhar as necessidades de reprodução das classes populares (na forma de um direito à cidade). Por exemplo, os programas de urbanização das favelas — a aprovação de uma lei nacional (o Estatuto da Cidade), em 2001, que valoriza a função social da cidade e da propriedade imobiliária — continuam a reproduzir a exclusão e segregação, pois ainda há espaços de desvantagens sociais. Apesar do esforço, ainda se produz violência… esta, numa dimensão mais ampla.

A questão da violência — nas mais variadas modalidades — é tão óbvia que a população já não se assusta com o número de mortes praticadas diariamente, já não se assusta com a fome, com o descaso dos Direitos Humanos… ou já atingimos o estágio de naturalização da violência?

Em geral, a negação do direito à educação é um dos aspectos mais complexos, pois esta, sim, fomenta a violência, ela surge pela negação da tutela dos direitos fundamentais, e é evidente que a violência é fruto desse paradigma de uma educação precária. A violência e a falta de educação coabitam com a negação dos direitos do futuro dos jovens; sem o direito de trabalho e emprego, a porta se abre para a violência, a marginalização, a exclusão e, consequentemente, a negação de uma vida digna.8

Educar na fraternidade e justiça social

Falar em justiça social é tratar das relações do indivíduo com a comunidade, e, conforme a tradição aristotélica, a comunidade não existe para além dos indivíduos que a constituem. Se para praticar justiça social deve-se tratar daquilo que é devido à comunidade, devemos dar conta do respeito ao indivíduo, aos bens e serviços e àquilo que o indivíduo vivencia na comunidade como um todo, mas, sem políticas públicas voltadas para o princípio da dignidade da pessoa humana, não teremos justiça social. Negar a saúde, a alimentação, a educação e a segurança pública é um desarranjo social.

Na verdade, nunca tivemos um sistema de proteção e solidariedade sociais, podemos dizer então que a vulnerabilização urbana suscita a insegurança e o risco e, assim, a difusão da violência. Todos sabem que uma saída para minimizar o panorama existente é a educação. A educação escolar, que pode construir uma cultura de justiça social e de paz, permitindo uma inserção social que poderá verdadeiramente diminuir os preconceitos de gênero, etnia, sexo e religião e edificando relações mais humanas e dignas.

Considerações finais

Vivemos em sociedade, num conjunto de ações individuais, com comportamentos distintos, e todos em busca de seu bem-estar, mas é necessário que se deem oportunidades para que o indivíduo busque a sua autorrealização, oportunizando políticas públicas, com saúde, educação de qualidade e segurança, para “produzir” cidadãos éticos e compromissados com o coletivo. A construção de uma sociedade fraterna, sem preconceitos e pluralista é um dos objetivos ainda a serem consolidados pela sociedade, uma pretensão distante de ser alcançada.

Viver em comunidade é incluir-se no espaço e tempo delineados pelo mundo contemporâneo; é assumir responsabilidades das ações e perceber que nossas ações imediatas podem ser cruciais para o futuro.

É preciso educar para uma vida em fraternidade com consciência da responsabilidade, com políticas públicas que desenvolvam uma sociedade justa e solidária.

 

 

Rosangela Nieto de Albuquerque é Ph.D. em Educação (Untref), pós-doutoranda em Psicologia (Universidad John F. Kennedy), Doutora em Psicologia Social (Universidad John F. Kennedy), Mestre em Ciências da Linguagem, psicopedagoga clínica e institucional, pedagoga, licenciada em Letras (Português/Espanhol), Consultora ad hoc do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), professora dos cursos de graduação e pós-graduação; coordenadora do curso de Pedagogia, autora e organizadora de dez livros.
E-mail: rosangela.nieto@gmail.com

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 258 p.

BRAUDEL, F. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes. 1996.

Bibliografia Consultada

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 190 p.

CASTEL, R. Les métamorphoses de la question sociale. Une chronique du salariat. Paris: Fayard. 1995.

FREITAG, B. Cidade dos homens. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

KOWARICK, L. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1979.

POLANYI, K. A grande transformação. As origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

SOARES, L. E. Meu casaco de general. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

WACQUANT, L. Punir os pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos-Instituto de Criminologia, 2001.

cubos