Edição 114

A fala do mestre

Ensino híbrido: o legado da pandemia

Lécio Cordeiro

Até março deste ano, a rotina escolar estava claramente definida para muitos alunos e pais. Essa rotina envolvia, necessariamente e em boa medida, a vivência da vida fora de casa. Os pais saíam para trabalhar, os filhos ficavam na escola. Encontravam-se à noite apenas, depois de um longo dia. Ou seja, pais e filhos viviam juntos, mas pouco conviviam. Alguns apenas sobreviviam, mas isso é outra questão. O ponto é que, de repente, essa rotina se subverteu e impôs a pais, alunos e professores inúmeras dúvidas, limitações, dificuldades. Nesse contexto, vimos emergir, com urgência e algum desespero, a necessidade de as escolas implementarem, com suficiente clareza de métodos e objetivos, as metodologias ativas. A pandemia bagunçou tudo, invadiu a casa dos alunos, transformou a sala de aula em uma tela. Evidentemente, essa passagem trouxe inúmeras dificuldades, principalmente porque o quarto, que sempre foi local de descanso e brincadeira (para os privilegiados que desfrutam desse cômodo), passou a ser, também, local de suplício. Quem é pai ou mãe sabe do que estou falando. No artigo passado, falamos dessas dificuldades e propomos uma reflexão: o que podemos fazer para trabalhar a partir delas? Agora, num momento em que se ventilam em todo o Brasil as estratégias de retorno às aulas presenciais, precisamos falar sobre o que ficará dessa turbulência para a educação pós-pandemia. Há várias respostas, mas o fortalecimento do ensino híbrido será, sem dúvida, a maior herança.

Todos sabemos que, independentemente de pandemia e distanciamento social, o ensino híbrido vinha cambaleante há muitos anos no Brasil. Falo, logicamente, do ensino híbrido que corresponde, grosso modo, à realização de atividades parte de forma remota, on-line, parte presencial. Digo “cambaleante” porque, vocês sabem, há inúmeras barreiras que bloqueiam sua implementação efetiva no País como um todo. Há limitações de ordem prática, é verdade, como o acesso incipiente à Internet de qualidade. Mas o que me chama a atenção é a barreira do preconceito, pois o ensino híbrido como um todo carrega o rótulo da inovação, e na nossa área a inovação não costuma ser vista com bons olhos. Os pais até gostam do adjetivo, desde que ao final da atividade “inovadora” os filhos voltem à “normalidade” da rotina escolar. Trago um exemplo prático. Em fevereiro, fui a uma reunião de pais no colégio do meu filho, aluno do 3o ano do Ensino Fundamental. Ele e alguns colegas estavam com dificuldade para realizar o que a professora chama de correção coletiva, que nada mais é do que a correção conjunta das atividades feitas em sala. Ou seja, uma metodologia ativa, pois coloca o aluno em posição de protagonismo. O motivo da reunião: vários pais não estavam concordando com o método. No meu tempo (e no seu também!), a professora ficava com os livros e cadernos para corrigir. Ou seja, ficávamos excluídos do processo de correção, resumido basicamente a um visto apressado, e isso era o normal. Ainda hoje é! Na reunião, os pais evidenciaram que o método estava errado porque seus filhos não estavam corrigindo as atividades de forma adequada. Então a correção coletiva deveria acabar e a professora passar a corrigir cada livro e caderno de forma individual, uma volta vertiginosa ao passado. Falamos de anacronismos como esse na edição 111 (http://www.construirnoticias.com.br/autismo-por-si-mesmo/) da Construir Notícias. O que nos interessa aqui: esse embate traz à tona dois sinais tenebrosos do tempo atual. O primeiro é a compreensão de que os pais, e não os professores, sabem o que deve ser feito em uma sala de aula (eles não conseguiam perceber que, na verdade, estavam pedindo para que a professora parasse de estimular a autonomia dos seus filhos). O outro sinal, que nos leva ao ponto que queremos, é a evidência de que a novidade, no âmbito educacional, não é vista com simpatia.

Todos sabemos que o mundo pós-pandemia nos legará “um novo normal”. Muito se tem falado sobre isso na mídia e em conversas no WhatsApp. Levante a mão quem ainda não recebeu alguma mensagem pseudofilosófica sobre esse novo normal. A pergunta é: como será essa nova realidade para a educação? Bem, o que me parece mais óbvio é que, queiram os pais ou não, o ensino híbrido será tendência para a vida escolar no mundo pós-pandemia. Será cada vez mais comum alternarmos entre atividades presenciais e atividades on-line. Para quem duvida, basta considerar que, de um dia para o outro, o Zoom passou de simples startup de videoconferência para a posição de importante player na Nasdaq e na Wall Street. Segundo a Infomoney, as ações da Zoom dispararam quase 15% no início de junho, e a empresa alcançou o valor de mercado de 49 bilhões de dólares, mais do que as sete maiores companhias aéreas do mundo juntas.

Obviedade: esses números deixam claro que o ensino híbrido chegou de vez na nossa vida. Então, o primeiro ponto a se considerar é a inegável necessidade de, neste momento, buscar familiaridade com as plataformas de ensino digitais. Dispomos hoje de inúmeras delas, cada uma com funcionalidades específicas. Basta um pouco de boa vontade e pés no chão para transformar esse terreno pantanoso em uma piscina olímpica. O mais importante, meus amigos, é ter paciência e disposição. Não se exijam um domínio técnico que não têm nem poderão ter neste curto intervalo. Ou seja, vamos entrar em contato com esses recursos e fazer o possível para extrair deles uma aula satisfatória. Estamos diante de um desafio imenso que fez surgir uma nova realidade, pautada na reinvenção na forma de aprender e ensinar. Essa nova realidade nos obrigou a construir laços de solidariedade e a repactuar com os alunos nosso contrato pedagógico. Tudo será mais fácil se nos ajudarmos mutuamente e refizermos nosso pacto com os alunos. Se não puder contar com a realização de atividades on-line, busque outras estratégias, como a sala de aula invertida. A Internet e a tecnologia eliminam as fronteiras do mundo, mas o conhecimento, como tudo que é precioso, não tem utilidade em sua forma embrutecida. Ele precisa ser cultivado, burilado, aperfeiçoado, e isso não acontece sem o intermédio de um professor que não se satisfaz em apenas reproduzir.

Outro ponto importante que precisamos considerar é a necessidade de organização da aula virtual e seu planejamento. Sei que muitas vezes falta tempo, que o trabalho nos segue, que há uma infinidade de outras demandas das quais precisamos dar conta. No entanto, nunca antes planejar foi tão importante. Isso porque estamos diante de um contexto completamente diverso da aula que se desenvolve presencialmente. Assim, a dinâmica de funcionamento, a exposição, a interação, o tempo, os limites: tudo é diferente do que estávamos acostumados. Até nós estamos diferentes do que fomos em fevereiro, quando as aulas retornaram. Tínhamos um planejamento bonito, organizado, estável e imutável. Agora, depois que tudo foi bagunçado, a realidade é outra, cheia de diferenças em relação àquela que se desenvolvia até então na nossa sala de aula. A grande questão aqui é aceitar essas diferenças e conseguir trabalhar a partir delas, e não apesar delas. A melhor parte é que, passada a tormenta, voltaremos para a sala de aula, nosso hábitat, ainda mais fortalecidos e munidos, em boa medida, de ferramentas de ensino que talvez nunca fôssemos de fato utilizar.

Lécio Cordeiro é formado em Letras pela UFPE.
É editor e autor de livros didáticos de Língua
Portuguesa para os anos finais do Ensino
Fundamental.
E-mail: leciocordeiro@editoraconstruir.com.br
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