Edição 91

Ambiente-se

Escola da Ponte – uma comunidade de aprendizagem

José Pacheco

Quando, por capricho de um concurso, cheguei à Escola da Ponte, a escola era um arquipélago de solidões. Em meados da década de 1970, os professores remetiam-se para o isolamento físico e psicológico, em espaços e tempos justapostos. Entregues a si próprios, encerrados no refúgio da sua sala, a sós com os seus alunos, o seu método, os seus manuais, a sua falsa competência multidisciplinar, em horários diferentes dos de outros professores, como poderiam partilhar, comunicar, desenvolver um projeto comum?

O trabalho escolar era exclusivamente centrado no professor, enformado por manuais iguais para todos, repetição de lições, passividade. As crianças que chegavam à escola com uma cultura diferente da que aí prevalecia eram desfavorecidas pelo não reconhecimento da sua experiência sociocultural. Algumas das crianças transferiam para a vida escolar os problemas sociais dos bairros pobres onde viviam. Exigiam uma atitude de grande atenção e investimento no domínio afetivo e emocional.

Tomamos também consciência de novas e maiores dificuldades. Por exemplo, de que não passa de um grave equívoco a ideia de que se poderá construir uma sociedade de indivíduos personalizados, participantes e democráticos enquanto a escolaridade for concebida como um mero adestramento cognitivo.

Se os pais eram chamados à escola, pedia-se castigo para o filho ou contributos para reparações urgentes. A escola funcionava num velho edifício contíguo a uma lixeira. Nas paredes, cresciam ervas. Os alunos traziam bancos de casa para se sentarem e improvisavam mesas. As poucas carteiras com buraco para o tinteiro ameaçavam desfazer-se. O banheiro estava em ruínas e não tinha porta. As crianças passavam as férias no abandono da rua a sonhar com uma praia inacessível. E, para lhes mitigar a fome, os professores serviam-lhes uma caneca de leite fervido no fogão que trouxeram de casa.

Em 1976, compreendemos que precisávamos mais de interrogações que de certezas. E empreendemos um caminho feito de alguns pequenos êxitos e de muitos erros, dos quais colhemos (e continuaremos a colher) ensinamentos, após termos definido a matriz axiológica de um projeto e objetivos que, ainda hoje, nos orientam: concretizar uma efetiva diversificação das aprendizagens tendo por referência uma política de direitos humanos que garanta as mesmas oportunidades educacionais e de realização pessoal para todos, promover a autonomia e a solidariedade, operar transformações nas estruturas de comunicação e intensificar a colaboração entre instituições e agentes educativos locais.

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Na Escola da Ponte, como em outros lugares, será indispensável alterar a organização das escolas, interrogar práticas educativas dominantes. É urgente interferir humanamente no íntimo das comunidades humanas, questionar convicções e, fraternalmente, incomodar os acomodados. Apesar dos progressos verificados ao nível da teoria (e até mesmo contra eles), subsiste uma realidade que as excepções não conseguem escamotear: no domínio das práticas, o nosso século corre o risco de se completar sem ter conseguido concretizar sequer as propostas do fim do século que o precedeu. Infelizmente, não vivemos o fim do “século da criança”, mas somente o princípio da escola. Desde há séculos, somos destinatários de mensagens que raramente nos dispomos a decifrar, e o que acontece é um regresso cíclico às mesmas grandes interrogações. Todos os movimentos reformadores se assemelham na rejeição do passado, mas a especulação teórica sem caução da prática engendra apenas reformulações de uma utopia sempre por concretizar. Na Ponte, hoje, apenas restam vestígios da “estrutura tradicional”, que transformamos em caboucos sobre os quais assentamos os andaimes de uma escola que já não é herdeira ou tributária de necessidades do século XIX.

A educação das crianças ditas com necessidades educativas especiais constituía mais um problema dentro do problema. A colocação de crianças com necessidades específicas junto dos ditos normais não era medida suficiente para se fazer o que recentemente se designa por inclusão. A inclusão não se processaria em abstrato, mas passaria por uma gestão diferente de um mesmo currículo, para que os alunos não interiorizassem incapacidades, para que não se vissem cada vez mais negativamente como alunos e depois como pessoas. Frequentemente, sob o rótulo e o estigma da diferença, priva-se a criança diferente (ainda que inconscientemente) de experiências que lhe permitiriam ganhar consciência de si como ser social-com-os-outros. Hoje, em cada grupo, há sempre um aluno especial. Se os professores, por qualquer motivo, em determinado momento, não podem acompanhar diretamente o trabalho de uma dessas crianças, logo um colega atento se disponibiliza à ajudar. O Marco era um menino rotulado de filho de pai incógnito. Sofria por não ter um pai como os outros meninos. O André era um menino rotulado de necessidades educativas especiais, que o isolavam dos outros meninos. Até que, um dia, mudou de escola, foi acolhido num grupo e deixou de ter rótulo. O Marco e os seus amigos já tinham descoberto o valor do trabalho cooperativo. Quando a Ana foi para outra escola deixou a Sandrina entregue aos cuidados da Maria do Céu. E o Marco envolvia o André num novelo de atenção que operava milagres no aprender com os outros.

São os alunos que decidem. E os professores estão lá, atentos e disponíveis

São os alunos que decidem. E os professores estão lá, atentos e disponíveis. Quando compreendemos que cada criança é um ser único e irrepetível, que seria errado imaginar a coincidência de níveis de desenvolvimento, concluímos que não seria inevitável pautar o ritmo dos alunos pelo ritmo de um manual ou pela homogeneização operada pelos planos de aula destinados a um hipotético aluno médio. E avançamos com uma outra organização da escola, uma outra relação entre os vários grupos que constituem a equipe educativa (pais, professores, alunos, pessoal auxiliar), um outro modo de refletir as práticas. Passou-se de objetivos de instrução a objetivos mais amplos de educação. Este projeto sugere um modelo de escola que já não é a mera soma de atividades, de tempos letivos, de professores e alunos justapostos. É uma formação social em que convergem processos de mudança desejada e refletida, um lugar onde conscientemente se transgride, para libertar a escola de atavismos, para a repensar. Não é um projeto de um professor, mas de uma escola, pois só poderemos falar de projeto quando todos os envolvidos forem efetivamente participantes, quando todos se conhecerem entre si e se reconhecerem em objetivos comuns.

Não há escolas-modelo, mas há referências que poderão ser colhidas neste projeto como em tantos outros anonimamente construídos, cujo intercâmbio urge viabilizar. Nos últimos cinco ou seis anos, outras escolas se acercaram de nós: umas movidas pela curiosidade; outras, por outras boas razões. Poderemos já falar de uma “rede de escolas” ou de uma “fraternidade educativa”.

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Releve-se o fato de não constarem muitas proibições da lista de direitos e deveres. Este documento, que os próprios alunos propõem, discutem e aprovam é a Magna Carta que lhes permite libertarem-se da tutela dos professores e serem dignos do exercício quotidiano da liberdade na responsabilidade. As nossas crianças não são educadas apenas para a autonomia, mas através dela, nas margens de uma liberdade matizada pela exigência da responsabilidade. Buscamos uma escola de cidadãos, indispensável ao entendimento e à prática da democracia. Procuramos, no mais ínfimo pormenor da relação educativa, formar o cidadão democrático e participativo, o cidadão sensível e solidário, o cidadão fraterno e tolerante. Para exercer a solidariedade é necessário compreendê-la, vivê-la em todo e qualquer momento. Na Ponte, cada criança age como participante solidário de um projeto de preparação para a cidadania no exercício da cidadania. Foi por isso que se constituiu, há cerca de vinte anos, a Assembleia. É por aí que passa a participação das crianças na organização interna da sua escola.

O “Tribunal” foi substituído por uma “Comissão de Ajuda” (por decisão da Assembleia!) com composição e funções muito diferentes. O velho e ineficaz “castigo” foi substituído pelo “ficar a refletir” e pela ajuda de “fadas orianas” (quem já leu o livrinho da Sophia de Mello Breyner saberá ao que as crianças se referem). Como o objetivo dos objetivos é fazer das crianças pessoas felizes, foi instituída uma ”caixinha dos segredos”. É aí que a pesquisa das almas inquietas (indisciplinadas?) começa. Na caixa de papelão, os alunos deixam recados, cartas, pedidos de ajuda. A “caixinha dos segredos” ensina os professores a reaprenderem. É que nem sempre o que parece ser “indisciplina” o é. Sabemos de crianças que dão lições de autodisciplina na sua escola. Sei de crianças que não entendem a indisciplina do gritar mais alto que o próximo, nas assembleias de adultos, porque na sua assembleia semanal erguem o braço quando pretendem intervir. Sei de crianças de seis, sete anos, que sabem falar e calar, propor e acatar decisões. São crianças capazes de expor, com serenidade, conflitos e de, serenamente, encontrar soluções. São cidadãos de tenra idade que, no exercício de uma liberdade responsavelmente assumida, instituíram regras que fazem cumprir no seu quotidiano. Poderão continuar a chamar-lhes alunos “utópicos”, que nem por isso eles deixarão de existir.

menina-caixa_shuttersto_optA concepção e o desenvolvimento de um projeto educativo de escola é um ato coletivo e só tem sentido no quadro de um projeto local de desenvolvimento. Um projeto consubstanciado numa lógica comunitária pressupõe ainda uma profunda transformação cultural. O sucesso dos alunos depende da solidariedade exercida no seio de equipes educativas, que facilita a compreensão e a resolução de problemas comuns.

Em 1976, os pais não apareciam na escola, mas acreditávamos que seria possível estabelecer comunicação com as famílias dos alunos, se os pais não fossem chamados apenas para escutarem queixas ou contribuírem para reparações urgentes. Questionávamo-nos por que razão eles iam à igreja, ao estádio, ao café… e não vinham à escola. Quando encontramos resposta, ajudamos os pais dos alunos a fundarem uma associação num tempo em que ainda não havia leis para as regular. A associação de pais é hoje um interlocutor sempre disponível, um parceiro indispensável. Mas a colaboração dos pais não se restringe às atividades promovidas pela sua associação. No início de cada ano, todos os encarregados de educação participam num encontro de apresentação do Plano Anual. Mensalmente, num sábado de tarde, os projetos são avaliados com o seu contributo. E há sempre um professor disponível para o atendimento diário, se algum pai o solicita. A prática diz-nos, ainda hoje, que os pais têm dificuldade em conceber uma escola diferente daquela que frequentaram quando alunos, mas que, quando esclarecidos e conscientes, aderem e colaboram.

Escolas são pessoas e inspiração multirreferencial. A Ponte é herdeira de Pestalozzi, Ferrer, Dewey, Freinet, Montessori, Neill, Vygotsky, Piaget, Krishnamurti, Steiner, Rogers, Morin… A lista não acaba. Inevitavelmente, de portugueses e de… brasileiros: Agostinho da Silva, Paulo Freire, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Azevedo, Lourenço Filho, Lauro Lima… Para cada interrogação, uma “resposta” criticamente incorporada na prática. Para concretizar um projeto que procura assegurar uma efetiva diversificação das aprendizagens, tendo por referência uma política de direitos humanos, que garanta as mesmas oportunidades educacionais e de realização pessoal a todos os cidadãos, diferentes ou não, para que o bem-estar de uns não se realize em detrimento do de outros.

A prática diz-nos, ainda hoje, que os pais têm dificuldade em conceber uma escola diferente daquela que frequentaram quando alunos, mas que, quando esclarecidos e conscientes, aderem e colaboram

Os processos de mudança não se desenvolveram a partir de pressões externas, administrativas, decisões políticas ou de intervenções pontuais, técnicas. A mudança partiu de interrogações, da insatisfação, da… solidão. E foi acontecendo persistentemente, obra de um grupo obstinado. Um grupo, que se constituiu em equipe de projeto e construiu um referencial axiológico, exercendo autonomia, agindo como autores, consolidando uma identidade profissional assente no trabalho colaborativo. Como diriam a Mônica e o Perrenoud, a mudança em educação depende daquilo que os professores pensarem dela e dela fizerem e da maneira como eles a conseguirem construir ativamente. Ao longo de quase quarenta anos, a partir da iniciativa e da reflexão na ação, a Ponte transformou-se num lugar e tempo de imaginação e antecipação. A necessidade de reinventar uma escola que respeitasse o capital cultural dos seus alunos, de forma a contribuir para a construção de uma cultura, onde todos, na diversidade, se reconhecessem na unidade, originou uma ruptura total com o modelo “tradicional”. Emergiu um novo conceito, uma nova organização de escola, de espaço, tempo e de conhecimento, rompendo com o conceito de homogeneidade, introduzindo o trabalho em equipe.

A comunidade é o currículo. As decisões sobre as questões curriculares são da equipe, bem como as decisões, num processo interpessoal, político, social, de colaboração e participação. Não se pratica uma educação para a cidadania, mas uma educação na cidadania. Falar de liberdade só faz sentido a par da responsabilidade, uma vez que os alunos compreendem que direitos individuais são assumidos através do cumprimento de deveres e direitos aprovados pelo coletivo. Ser livre na Escola da Ponte é, acima de tudo, corresponsabilizar-se pelo próprio processo de construção de conhecimento e ser individualmente responsável pelos atos do coletivo.

A ação educativa na Ponte, foi-se revelando de uma grande complexidade e até mesmo de imprevisibilidade, própria das práticas pedagógicas. Ao olharmos para a história dessa escola, não conseguimos precisar qual o momento de viragem, no entanto percebemos que a pobreza das práticas existentes na época levou a muitas interrogações e conduziu à alteração da organização da escola a uma forma diferente de entender a aprendizagem e, consequentemente, a uma abordagem curricular diferente, concedendo-lhe um lugar privilegiado, um campo de intervenção; de mudança. Não se tratou de uma mera reorganização de competências ou redefinição de métodos, mas, sim, de uma outra forma de definir as bases de fundamentação para o desenvolvimento do currículo. Entende-se a escola como espaço-tempo de transformação social, cuja organização corresponde a uma intervenção sistêmica, que se vai desenvolvendo em rede pelos diferentes ecossistemas — uma “comunidade de aprendizagem”.

José Pacheco é Mestre em Educação da Criança. Foi o iniciador e coordenou por mais de 30 anos o projeto da Escola da Ponte, em Portugal. Autor do livro A avaliação da aprendizagem na Escola da Ponte, em parceria com Maria de Fátima Pacheco e Inclusão não rima com solidão. Ambos pela Wak Editora.

 

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