Edição 94

A fala do mestre

Escola das emoções

Nildo Lage

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No século em que a tecnologia compactou o planeta, pulverizou valores, permutou culturas e afirma piamente que dominará o humano, para nós – pais, educadores, sistema, governo – é imperioso puxarmos o freio, estacionarmos para reavaliarmos ações, conteúdos, conceitos, excepcionalmente, de formação…

O colapso é um convite para interrompermos a cadência, olharmos para dentro de nós, checarmos conteúdos e não termos receio de perguntar: qual o estado do nosso HD? Abarrotado de parafernálias ou um vácuo? Infestado de arquivos ocultos ou de programas revolucionários? Dados inutilizáveis ou conteúdos inovadores? Ou, simplesmente, futilidades? O que fazer para expandir o espaço? O que é preciso para inovar, atrair o novo? Deletar arquivos suplantados? Ou uma varredura com potente antivírus para aniquilar violência, ranços… Uma formatação completa, se necessário!

Vamos deixar a ficha cair, encarar a realidade e termos um papo cabeça… Somos âncora dos nossos filhos, dos nossos alunos e, como âncora, podemos ser mais: ROTA. Não podemos atracar o destino daqueles por quem somos responsáveis por formar, inserir valores e conteúdos que transformem comportamentos em embarcações à deriva e, com o mínimo de sensibilidade, apreciá-las serem instigadas por um vento oriental e arremessadas contra o iceberg! Reflita, pois chegamos ao almejado… Ao EU… Focamos no aluno, apontamos a família como ponto de desequilíbrio… E você, educador, em qual rota navega as suas emoções?

Os caminhos trilhados pela escola

Como é difícil o educador formar com amor, pelo exemplo. Como é difícil para a escola, o sistema e o governo cumprirem obrigações para proporcionarem o sucesso daqueles que adentram no espaço da sala de aula – educandos – proporcionando-lhes o básico dos básicos: Condições de estudo, respeito, reconhecimento. Esse básico é fundamental, pois oferecer suporte é ser parceiro, e ser parceiro é cumprir metas, é ter respeito aos que necessitam dos serviços públicos para ser alguém.

A desordem acionou o alerta máximo. Os guardiões do sistema entraram em cena para idealizar a Escola das Emoções e, assim, impeliram as unidades de ensino a quebrarem protocolos na expectativa de suplantarem traumas.

Há escolas que, de tanto serem bombardeadas, deliberaram arquitetar suas trincheiras de defesa para resguardarem o emocional do educando. Algumas abordaram a sapiente ilação de que o educando não pode tirar menos de cinco nas avaliações para não desmotivá-lo.

É indiscutível. É preciso amparo. Todavia, determinar que o educando encontre em si a saída é desengrenar um automóvel à beira de um abismo e alertá-lo antes de se afastar: “– A autoestrada é ali! Manobre, enverede por ela e siga em frente que encontrará a resposta para suas dúvidas!”

Assim como o automóvel, a criança depende de um condutor para não perder a direção. Alguém tem que estabelecer regras, impor limites, ser exemplo, transmitir valores, respeito aos direitos e ao olhar do outro… Assim, como o automóvel, a criança depende de comandos, de um condutor que o guie pelo sinuoso caminho na busca do conhecimento, de suas ambições, para assim crescer e amadurecer proporcionalmente.

Responda-me, Emocional: qual a sua influência na vida, no desempenho escolar do educando?professora_mulher_livro_opt

Uma simples parada à porta da sala, e nos deparamos com uma realidade que se tornou arquétipo da educação brasileira: educador estressado, gestor abordando o limite para cumprir as metas do sistema e educandos perdidos. Tudo que não resiste a esse ambiente invasivo é emocional, pois acercar-se do Eu — do educando — para trabalhar um ponto que é a haste do equilíbrio, esbarra com o primeiro impedimento: dificuldades para educar de dentro para fora, para que as pedras de tropeço — violência doméstica, pedofilia, meretrício, drogas — sejam retiradas.

O humano é imprevisível. De tão inconstante, nós nos desconhecemos. Muitos mal administram os próprios impulsos. Para coexistirem na selva social, uns são hábeis, conseguem driblar a si mesmos para ostentarem a trincheira de defesa pessoal e, assim, sobrepujarem os tremores instigados pelos fantasmas que oferecem guarida. Por acreditarem que é mais simples se esquivar que romper barreiras. Assim, não interrompem a caminhada para refletirem sobre o que os intimidam: suas fraquezas. Outros adotam o estilo concha e simplesmente se fecham, para não se tornarem vítimas da sensibilidade, da fragilidade, da insegurança, da própria carência efetiva.

Como a vida não para como decorrência do próprio ciclo de viver, cada passo é um impacto; cada impacto, novas batalhas íntimas. Cada batalha, um duelo contra si mesmo. Pois, nesse estágio, o íntimo, a mente… estão em perfeita sintonia e ambos atentos aos mínimos detalhes a sua volta. Uma palavra, um gesto, um singelo contratempo podem acarretar num descompasso.

Abordarmos esse território tão vulnerável para desenvolvermos o paralelo entre o emocional e a aprendizagem, para, assim, compreendermos a influência do emocional no processo. É imprescindível a investigação, recorrer aos titãs, como a neuropsicologia que assinala um ambiente propício ao emocional para sobrevir uma aprendizagem satisfatória.

A deficiência é espantosa… É deficiência de tudo: amor, carinho, afeto, respeito… cuidados pessoais… A autoestima está no nível mínimo ou, para alguns, nem existe… Como é o caso de A, de oito anos. Chega à escola suja e repousa. Simplesmente, apaga. Ninguém consegue despertá-la. Os colegas a chamam de “Bela Adormecida”; o intrigante é que é dócil, pacífica, comportamento exemplar, e o seu rendimento escolar não é ruim.

Esse fator chamou a atenção da educadora, que acionou o especialista, e este decidiu averiguar o que ocorria. Quinze dias de investigação, e a descoberta surpreendente: a criança desperta às três da manhã para levar o pai de bicicleta ao ponto para embarcar no ônibus da empresa, regressa com o “camelo“, pois necessita dele para levar os dois irmãos mais novos à escola e, entre três e seis e meia, faz esses movimentos, para regressar, no mínimo, às seis e quarenta para a mãe ir trabalhar. Todavia, não podia dormir, pois tem que cuidar do irmão com menos de dois anos.

Novas investigações, e o especialista descobre que A nunca havia brincado, pois tem que cuidar dos irmãos até às onze horas, quando a mãe regressa, prepara o almoço e volta para o trabalho.

Um educador, sensibilizado com a situação, pegou a bicicleta da própria filha e doou à educanda. O resultado foi impressionante, pois passou a ser destaque, uma vez que despertava três horas mais tarde e, como a gestora conseguiu uma vaga para o irmão na creche, ao regressar, dormia até o momento de buscar os irmãos na escola, tomava banho e a carência de sono, que provocava o descontrole emocional que a deixava em constante estado de tensão, foi superado.

mulher_criancca_abrac_optAnte a descoberta, a escola passou a observar e principiou pelo mapeamento das situações críticas, como crianças que eram assíduas por causa da merenda. Para muitos, a merenda é a única refeição do dia. Casos críticos vieram à tona, como crianças que choravam na sala. Ao serem abordadas, revelaram: “— Estou com fome!”.

Mesmo não podendo fazer muito, educadores e especialistas decidiram abraçar a causa por meio do projeto Cuida do Meu EU, cujo primeiro momento alarmou a equipe: o alto índice de violência doméstica, abandono… Eram casos pequenos ante estupros por parte de pais e padrastos, como o caso de uma menina de nove anos grávida — e abusada desde os cinco anos; outra de treze, mãe de um bebê de sete meses; exploração pelo tráfico, prostituição, trabalho infantil, mendicância…

O projeto transformou comportamentos, pois valores como honestidade, respeito e gentileza tornaram propósitos, salientando que a ação justa transforma realidades, a exemplo do ocorrido no clássico Corinthians e São Paulo.

Num lance de ataque do Corinthians, o goleiro do São Paulo caiu e alguém o pisou. O juiz foi preciso no lance e aplicou cartão amarelo ao atacante do Corinthians. Agindo com nobreza, Rodrigo Caio — zagueiro do São Paulo — deixou o juiz petrificado, quando o abordou e disse: “Quem pisou fui eu! Tira o cartão do atacante!”. Apenas um ato… Todavia, gerou justiça, acendeu admiração… Impediu uma sentença injusta… Mudou o jogo.

De volta ao fato, é fundamental que a escola eleve o seu ponto de observação para vislumbrar injustiças — principalmente as praticadas pelo educador que acossa e lesa alunos, simplesmente, por não gostar do seu jeito — para que seus especialistas gerenciem ações que salientam a honestidade e promovam o suporte, o aporte, para que o educando supere as barreiras emocionais que interferem no processo de aprendizagem.

Em meio ao fogo cruzado, a âncora educador.

Caro sistema, seja coerente. A comunidade escolar entrou em colapso emocional. Sem estrutura, o educador parte para o ataque, mesmo consciente de que gritos, ameaças, pressão psicológica, castigos, saída forçada da sala de aula afetam o desenvolvimento do educando… Mas a quem recorrer? Em que estado emocional se encontra a família, o gestor, para lhe proporcionar subsídios? Sem amparo, valorização, reconhecimento, o educador — humano vulnerável — vem sofrendo agressões, e, cada vez mais, o emocional se estilhaça ante as incessantes investidas.

É chocante a agressividade, nomeadamente a infantil. É arrepiante como a sexualidade se manifesta cada vez mais cedo. A família consentiu que o carinho, o amor, o afeto, a inocência se esvaíssem. A família abafou o pudor — assistem a programas eróticos diante das crianças, e muitas apreciam os pais praticarem atos sexuais. A família submergiu no mar das turbulências domésticas, perdeu o senso de limites… E o fruto dessas metamorfoses são exibidos nas dependências da escola.

Esse desequilíbrio decompõe o híbrido espaço familiar num moderno laboratório que opera em alta rotatividade para aniquilar valores, suprimir limites, eliminar amor, estilhaçar respeito… Suplantar sentimentos, emoções… O Eu para produzir delinquentes que inundam presídios.

Se nos posicionarmos no portão de uma escola, excepcionalmente, a que tem turma de quatro a cinco anos, visualizaremos horrores, como o desequilíbrio de pais que, simplesmente, aterrorizam com adjetivos que provocam calafrios: “Você é um monstrinho, nunca vai ser nada na vida!”. Muitos choram e são agredidos; outros se calam, se submetem… Cruzam os braços para apreciar a troca de farpas dos pais, e há os que já estão armados e descarregam nos colegas a violência recebida.

Sem comando, o educador deixa-se levar e toca o barco da turma adiante, navegando entre dificuldades, desaprendizagens e fracassos discentes, sob o olhar de um sistema que se detém nas dificuldades para identificar os fatores emocionais que interferem num processo, assentando aprendente e ensinante no mesmo paralelo. Paralelo que salienta o diferencial entre educar e ensinar, e a resposta emana de lá — da fonte família.

A parcela da famíliafamilia_shutterstock__opt1

Pais, a paradinha é a seguinte: educar com limites e valores não tem segredo! Tampouco, determina atrativos, sortilégios, moldes… Brindes… Por mais que a vida nos impulsione a correr, podemos cumprir obrigações para que nossos filhos sofram menos. Temos consciência de que agir com coerência pode resgatar vidas submergidas no caos social e familiar, pois crianças chegam à escola repletas de dificuldades: separação dos pais, pedofilia, violência doméstica, drogas, prostituição… ­— e isso exige de nós tempo e atenção… Essa chamada é o alerta para refletirmos sobre atos, ações e atitudes que deseducam.

Os pequenos gestos que se negam hoje podem ser a diferença no amanhã daqueles a quem devemos fornecer o mínimo de subsídios, valores… Pois quando esses gestos afetam o ponto mais vulnerável do humano, o emocional desequilibra, impele por veredas ameaçadoras, e, como não conseguimos vigiar, a tecnologia abre um leque de veredas, como o jogo Baleia Azul. Um jogo cruel, cujo troféu é a própria vida do jogador. E muitos, alvejados nocivamente nesse ponto — problemas depressivos —, mudam de direção, alteram o quadro físico, como cortes, que são camuflados com a mudança de estilo.

Essas ações são marchas rumo a um abismo, onde recuar para recomeçar é impossível. Sem sensatez, arremessam-se pelos entrelaçados caminhos à caça do ingrediente que induza ao ponto mais almejado: a superação. Superar a falta de afeto, suplantar conflitos, fracassos, depressão… Fracassam.

A partir de então, iniciam-se as dores: mudanças de comportamento, isolamento, automutilação… Até chegar ao produto final, a vida, que se entrega à destruição total com o suicídio.

Salvo engano, pais em franco desespero buscam vislumbrar onde erraram na formação. Com um simples olhar de lado, a resposta: faltou o acompanhamento do dia a dia; faltou o laço do afeto que não foi enlaçado; faltou irrigar a sementinha da confiança, fortalecer a base da amizade… para assim, prepararem os filhos para enfrentarem os tremores de uma sociedade repleta de armadilhas, cuja decomposição de valores foram compactados, diluídos pela máquina da globalização, convertendo cidadãos, em espólios; e o espaço escolar, num ambiente cada vez mais hostil, onde crianças, jovens e adolescentes não abrem mão de estarem conectados e que, sem orientação, monitoramento, contaminam-se com jogos que incitam à violência.

Pais e educadores, ainda há tempo para correrem em busca de retornos. Conhecem a parábola do semeador? É bom que conheçam… Quando Cristo falou a seus discípulos em parábolas, foi para que somente os que estavam com Ele compreendessem a Sua mensagem… Pois muitos que o seguiam, entreviam, nas situações, oportunidades para se darem bem… Como o alvo era tão somente, os próprios interesses, viam e não enxergavam; ouviam e não escutavam…

Assim é na escola… Quantas vezes falamos e não somos ouvidos, muitos estão nela, mas não tiram proveito do que ouvem e veem para a vida… Essa parábola é o alerta de que colhemos tão somente o que plantamos e onde plantamos… A fase que atravessam é a época mais propícia do humano para semear.

Você, educador, o que está disseminando? Trigo para alimentar e fortalecer ou joio para desequilibrar? Preparou o solo para o tipo de cultura que seus educandos almejam cultivar? O que semeou? Onde semeou? À beira do caminho para as aves do céu devorarem? Entre espinhos? Num terreno pedregoso? Ou teve zelo no tratamento, na recuperação do solo? Irrigou? Escolheu uma semente de qualidade?

Assim é na escola… A semente pode ser de qualidade, todavia se o terreno não for propício, dificilmente teremos uma boa safra… Não existem solos com a mesma proporção de acidez e fertilidade. Assim como não há pessoas iguais… Quando falo igual, não me refiro à aparência física, ao estilo de vida, de ser, vestir… cultural ou social… Contudo, ao Eu… É esse Eu que nos faz únicos… O que plantamos ou permitimos ser plantado no solo do nosso Eu fará a diferença, pois, na trajetória viver, muitas espécies são semeadas à beira do caminho… Esse terreno é o point para as aves se alimentarem; outras entre as pedras e mesmo lutando para existir não resistem à ausência de nutrientes e água… Algumas entre espinhos, germinam, crescem, conseguem se adaptar… Contudo, não chegam à fase adulta, pois são asfixiadas e mortas no meio da trajetória… As que caem em terreno fértil, crescem, produzem… Pois o primeiro semeador — a família — teve o cuidado de preparar o solo, escolher uma semente de qualidade, o fertilizante adequado.

O que faltou? Faltou um olhar, para vislumbrar aquela vida que muitas vezes não vale nada para o próprio educador; faltou sensibilidade para degustar a experiência de compartilhar sonhos e projetos, e a mesma flecha que atingiu o seu educando pode alterar a direção e acertá-lo… Olhar, sentir, entender, compartilhar, amparar… Podem ser ações simples, mas que farão total diferença na vida daqueles que necessitam tão somente de que o seu Eu seja notado, estimulado e respeitado para não se perder dentro de si mesmo.

ATENÇÃO! Carinho educa por meio dos reflexos, porque a dedicação pela profissão promove situações que acolhem, atos e atitudes que transformam vidas.

ATENÇÃO! Falácias exaltam, todavia, não mudam; falácias excitam, contudo, não fecundam, tampouco geram expectativas, alimentam a esperança e muito menos estimulam a luta…

ATENÇÃO! A maturidade ensina, guia com prudência, aprende com valores, advertindo que a palavra mais sábia é aquela que não foi falada para magoar, ferir… fazer sofrer… Ou desviar seu cliente do intento maior: ser feliz. Afinal, o que doamos ao outro, exclusivamente, o que exala de nós pode abrir feridas, acender ódio ou contentar o íntimo a ponto de transformar vidas.

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