Edição 45

Escorpião, o dançarino: Vivenciando a dança na Educação Infantil

Klenya Pinheiro Gurgel de Freitas e Rutilene Meio

escorpiao01

Este trabalho é um relato da vivência da dança na Educação Infantil e tem como principal objetivo promover o desenvolvimento da consciência rítmica aliada aos interesses das crianças, tornando essa vivência significativa para o grupo. Acreditamos que este relato proporcionará uma melhor compreensão dos trabalhos que envolvem a dança, tornando-se uma fonte importante de pesquisa para aqueles que se interessam pela Educação Infantil. Com a demonstração da nossa prática, acreditamos que poderemos auxiliar outros educadores a compreenderem a motivação demonstrada pelas crianças ao realizarem atividades contextualizadas com a própria experiência de vida. Para a realização dessa experiência com a dança, buscamos aprofundar nossos conhecimentos embasando-nos teoricamente em alguns autores, como Aline Nogueira Hass e Ângela Garcia.

1 INTRODUÇÃO

O referente trabalho é uma demonstração da nossa experiência com a dança no contexto escolar. Desenvolvemos esta pesquisa com crianças de 4 a 5 anos, da turma 4 da Educação Infantil, no Núcleo de Educação Infantil (NEI) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), situado na cidade de Natal/RN. O objetivo deste trabalho é introduzir a dança na Educação Infantil, partindo de algo que seja realmente significativo para as crianças. Iniciamos, portanto, o nosso estudo com a dança a partir do tema de pesquisa Escorpião, o dançarino, trabalhado com a turma no primeiro semestre do ano de 2007, quando as crianças manifestaram interesse em conhecer e demonstrar a dança do acasalamento dos escorpiões.

De acordo com Hass e Garcia (2006), a dança também é uma manifestação coletiva, e diversos objetivos que podem ser detalhadamente trabalhados com as crianças estão atribuídos a ela. Um dos principais é a observação e o reconhecimento dos movimentos nos corpos presentes no meio circundante, distinguindo as qualidades desses movimentos e as combinações das características individuais.

Enfatizamos para as crianças, no decorrer da nossa pesquisa, a importância de elas experimentarem a movimentação do corpo considerando as mudanças de velocidade, de tempo, de ritmo e a forma de movimentar o corpo no espaço. Buscamos sempre tornar essa vivência com a dança algo prazeroso, para que as crianças possam compreender que dançar vai muito além de um aperfeiçoamento das qualidades físicas ou da expressão artística, tratando-se, portanto, de uma gama de conhecimentos e experimentações que deve proporcionar a nós, seres humanos, um autoconhecimento, um conhecimento do espaço, do tempo, do outro e de vários outros fatores que interagem nessa manifestação harmoniosa que é a dança.

2 ESCORPIÃO, O DANÇARINO: VIVENCIANDO A DANÇA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

2.1 Tema de pesquisa: Escorpião, o dançarino

Esse tema de pesquisa¹ surgiu quando a mãe de uma das crianças do grupo trouxe para a escola um escorpião dentro de um vidro. Sua presença mobilizou a atenção do grupo pelo fato de o animal estar vivo e ser venenoso. Logo o associaram às ideias de morte e perigo, principalmente porque, diante da empolgação das crianças para vê-Io mais de perto, o recipiente caiu no chão, deixando que o escorpião escapasse do frasco.

— Será que ele pica?
— Ah! Se ele picar, a gente morre, eu acho!

Diante de tantas excitações e indagações, não poderíamos deixar de eleger o escorpião como tema de pesquisa, pois acreditamos que o trabalho pedagógico deve estar constantemente entrelaçado com o interesse do educando. Para considerarmos algo significativo para as crianças, devemos buscar conhecer o contexto no qual elas estão inseridas e as vivências que demonstram no cotidiano, pois, de acordo com Fontana e Cruz (1997, p. 110):

escorpiao02

Possibilitar à criança situações em que ela possa agir e ouvi-Ia expressar suas elaborações passam a ser princípios básicos da atuação do professor. Apoiado nesse referencial teórico, o professor não vê como desinformação ou falta de compreensão a diferença entre os significados elaborados pela criança e o conceito sistematizado.

Acreditando nessa troca e na construção de conhecimentos entre professor e aluno, partimos do pressuposto de que o tema a ser pesquisado deve sugerir algo interessante que as crianças almejam descobrir, tendo como ponto de partida seus conhecimentos prévios e o desejo de conhecer profundamente o que, para elas, é significativo.

A princípio, questionamos os alunos sobre o que eles conheciam a respeito do escorpião. As respostas foram bem variadas, e cada criança tinha uma história já vivenciada para contar. Começamos a listar coletivamente tudo o que elas diziam em um painel que ficou exposto na parede da sala.

Dando continuidade à nossa temática, perguntamos às crianças o que gostariam de saber com relação ao escorpião. Os questionamentos eram os mais diversificados possíveis, e, entre as variadas perguntas, estava a forma como esse animal se reproduz.

Levando em consideração a importância da família na Educação Infantil e a prática já institucionalizada da escola2, elaboramos um bilhete, juntamente com as crianças, para que os pais pudessem nos ajudar a enriquecer a nossa pesquisa enviando-nos materiais, sondando também a existência ou não de pais biólogos para contribuírem na busca de respostas às dúvidas das crianças. No decorrer dos dias, com o envolvimento dos familiares das crianças, fomos descobrindo que escorpiões estavam surgindo com relativa frequência dentro das casas, fato que aumentou ainda mais a curiosidade do grupo.

A participação dos pais trouxe ricas contribuições para o estudo. Muitos pesquisaram junto às crianças e enviaram resumos para fundamentar ainda mais nossa pesquisa. Outros colaboraram mandando livros e enciclopédias que tratavam do assunto.

A mãe de uma das crianças da turma é bióloga e organizou uma aula-passeio ao Centro de Biociências, localizado na UFRN, para que um dos seus colegas biólogos pudesse esclarecer e mostrar alguns aspectos do que as crianças queriam descobrir sobre os escorpiões. Foi bastante significativo para todos.

Em outro momento, recebemos, na nossa turma, a visita de outra mãe bióloga, Bianca, que se propôs a responder novas indagações sobre o tema estudado. Muitos questionamentos foram feitos, e ela buscou responder a todos.

2.2 A dança do acasalamento dos escorpiões

Percebemos, a partir das perguntas feitas a Bianca e na aula-passeio ao Centro de Biociências, que o que predominava entre as curiosidades das crianças era a forma como os escorpiões se reproduzem. As informações de que eles realizam uma “estranha dança” no ato do acasalamento e que, no final desse ato, a fêmea tenta comer o macho causaram grande impacto. Tendo em vista esse foco de interesse das crianças, sugerimos que tentássemos imaginar como seria essa “estranha dança”. Em meio a risos, gracejos e brincadeiras, conversamos sobre o ato considerado: a “dança dos escorpiões” no processo de reprodução e o ato intencional humano de dançar.

Assim, surgiu a proposta de organizarmos a dança do acasalamento dos escorpiões e a apresentarmos aos pais e às turmas que estudam de manhã no NEI como forma de fechamento da pesquisa.

Combinamos também de, na ocasião dessa apresentação, organizar uma exposição com os trabalhos de arte que realizamos, bem como entregar um fôlder3 elaborado pelo grupo para esclarecer a comunidade escolar sobre a presença frequente dos escorpiões no período chuvoso e as providências a serem tomadas em caso de picada. Conversamos com as crianças sobre o que vinha a ser coreografia na dança. Então, sugerimos que pensassem nos movimentos que faríamos na composição da dança, sempre a relacionando ao tema de pesquisa e ao processo de reprodução dos escorpiões.

As crianças foram sugerindo alguns movimentos como:

Mexer os pés de um lado para o outro.
Cruzar as pernas.
Arrastar os pés como se limpassem o chão, imitando os escorpiões machos no ato do acasalamento.
Mexer as mãos de um lado para o outro como se fossem as pinças dos escorpiões.
O menino abaixar e deixar um balão com “as sementinhas”, depois a menina abaixar, pegando o balão e guardando-o.
A menina tentar prender o menino, e ele tentar fugir.
Na manhã seguinte, reunimos o grupo e fomos intervindo em cada etapa de construção da dança, relembrando, primeiramente, o conhecimento que já havíamos elaborado em relação ao processo de reprodução dos escorpiões. Depois, questionamos sobre o que era necessário para se dançar. Disseram então:

— Tem que ter música!
— Que tipo de música?

Entre algumas sugestões e discussões, prevaleceu:

— Música instrumental! Aquela que só tem o som dos instrumentos!
— E o ritmo?

De acordo com o conhecimento acerca do que era ritmo, prevaleceu:

— Ritmo lento!

Conversamos também com o grupo sobre o que era figurino. Mediante respostas diversas, propomos que pensassem que tipo de figurino seria adequado. Sugeriram, então, representar, na dança, o escorpião comum na Região Nordeste: o escorpião-amarelo.

escorpiao03

Todas essas construções foram sendo registradas em um quadro que se apresentava dividido em cenário, música, ritmo, figurino e coreografia.

escorpiao04

As crianças descreveram o cenário como se fosse o hábitat do escorpião, e nele haveria pedras, folhas e areia espalhadas pelo chão. A música escolhida foi instrumental em ritmo lento. Para o figurino, as crianças sugeriram uma blusa amarela, com um bolso para colocar um balão cheio de água representando o esperma do escorpião, denominado por elas de sementes. Na roupa, também deveria haver pernas, pinças e a cauda do escorpião, e o rosto deveria ser pintado de amarelo.

A coreografia ficou bem incrementada e deveria ser feita com um menino e uma menina — segundo eles, para representar o macho e a fêmea dos escorpiões. Os passos representavam com detalhe os movimentos do acasalamento. Os pés dos meninos mexeriam de um lado para o outro, como se o macho estivesse limpando o chão, e as meninas movimentariam as mãos como se fossem as pinças abrindo e fechando.

Haveria um momento em que o menino se abaixaria para colocar o balão no chão, e, em seguida, a menina também se abaixaria para colocar o balão no bolso da roupa, assim como a fêmea do escorpião faz para fecundar as “sementes”. Por fim, a menina dançaria em volta do menino e lhe daria um abraço por trás, representando o momento em que a fêmea mata o macho, por se sentir sem energia, e o come. Em seguida, combinamos de esperar a aula de Educação Física para mostrar à professora nossas ideias e solicitar a colaboração dela com os conhecimentos de que dispõe sobre corpo e movimento e, assim, ajudar-nos a realizar essa dança.

De acordo com Vieira (2001), como ato educativo, a Educação Física compreende o homem como um ser corpóreo e motriz e abrange as formas de atividades físicas, como a ginástica, o jogo, a dança e o desporto.

De fato, a professora nos ajudou muito: trouxe algumas músicas instrumentais, sendo escolhida por todo o grupo a música Dança da Fertilidade; e também nos ajudou na organização da coreografia sugerindo alguns passos e movimentos corporais. Nesse sentido, Vieira (2001, p. 23) afirma que:

É papel da Educação Física cultivar e cultuar a corporeidade, mas, para isso, é necessário apreender a realidade corporal humana em todos os seus sentidos, não devendo compreender o corpo apenas pelos elementos que vêm de fora. É preciso considerar a sensibilidade afetiva, as emoções, os sentimentos, os impulsos sensíveis, o senso estético, etc.

Os ensaios continuaram semanalmente, e, cada vez mais, as crianças se empolgavam com a apresentação que estava por vir. Todos participavam e ajudavam uns aos outros, pois o interesse para tudo sair o mais benfeito possível era geral. Gradativamente, fomos dando continuidade à construção dessa dança que tanto despertou o interesse das crianças. Concomitantemente aos ensaios, iniciamos a organização do figurino. Com a fantasia de escorpião já confeccionada, faltava o trabalho artístico das próprias crianças, ou seja, pintar a fantasia caracterizando-a como escorpião-amarelo, enfatizando as articulações do corpo do animal com listras em um tom alaranjado.

O segundo passo para a confecção do figurino era encher as pernas e a cauda da fantasia do escorpião com o acrilon (material usado na confecção de edredom). Dessa forma, o figurino ficaria cada vez mais próximo da aparência do escorpião. As crianças realizaram esse trabalho em duplas para que um pudesse auxiliar o outro, pois concluir essa etapa demandava paciência e tempo. Após a confecção da fantasia, estava tudo pronto para o grande dia.

As crianças demonstravam ansiedade para essa apresentação tão importante para elas, afinal se empenharam ao máximo para tudo sair bem.

O grande dia finalmente chegou. As crianças estavam bementusiasmadas, pois já haviam feito um bilhete convidandoos pais e as outras turmas para assistirem à Maravilhosa Dança do Acasalamento dos Escorpiões (título que a turma atribuía à dança). Faltava organizar o cenário para que todos percebessem o hábitat dos escorpiões. As crianças procuraram folhas, areia e pedras pela escola para a arrumação edecoraram todo o solário (local onde aconteceria a dança). Concluída a arrumação do cenário, era a hora de colocar o figurino para a apresentação. Alguns pais, juntamente com as professoras, ajudaram as crianças a se vestirem e se maquiarem.

A plateia já estava formada esperando a apresentação das em um contexto significativo e instigante, são capazes de crianças. O grande momento havia chegado. Ao entrarem elaborações complexas acerca desse mundo. De acordo com no cenário, as crianças se organizaram sentadas em círculo, Hass e Garcia (2006), as atividades rítmicas e expressivas pocada qual com seu par, esperando a música começar. dem reforçar a aprendizagem em questão bem como outras aprendizagens, pois tendem a se relacionar com diferentes

Quando a música começou a tocar, todos iniciaram a apresentação conforme haviam ensaiado, sem deixar nada a desejar, fechando, assim, o tema de pesquisa estudado: Escorpião, o dançarino.

No final da apresentação, as crianças entregaram, entusiasmadas,um fôlder para cada pessoa que havia assistido à dança do acasalamento dos escorpiões, como forma de demonstrar seus conhecimentos sobre a prevenção de picadas.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de construção de conhecimento acerca desse tema de pesquisa proporcionou a nós, professores, a superação de limites em relação à nossa corporeidade e mostrou o quanto a criança desse contexto de Educação Infantil constrói saberes de corpo inteiro.

Constatamos, mais uma vez, o quanto elas interagem e questionam o mundo que as cerca. Quando são desafiadas em um contexto significativo e instigante, são capazes de elaborações complexas acerca desse mundo. De acordo com Hass e Garcia (2006), as atividades rítmicas e expressivas podem reforçar a aprendizagem em questão bem como outras aprendizagens, pois tendem a se relacionar com diferentes áreas específicas do saber através de um processo de interdisciplinaridade. Através desse estudo envolvendo a dança de maneira significativa,as crianças tiveram oportunidade de estimular o potencial criativo, assim como o de improvisação.

¹ Tema de pesquisa é a metodologia utilizada pelo NEI, na qual existe um tema central significativo para as crianças que fará uma interdisciplinaridade com todas as áreas do conhecimento.

² No NEI, a cada tema de pesquisa estudado, a família é chamada a participar, seja enviando material (livros, revistas, pesquisa na Internet,imagens), seja vindo à sala para ser entrevistada pelo grupo.

³ A produção desse fôlder possibilitou colocar em evidência o conhecimento elaborado pelo grupo — principalmente em relação ao escorpião-amarelo, tão comum na nossa região — e também a função social desse suporte textual e o modo como se organiza.

Klenya Pinheiro Gurgel de Freitas
klenyagurgel83@hotmail.com

Rutilene Meio
ruti@ig.com.br

Núcleo de Educação Infantil da Universidade Federal do Rio Grande Norte – NEI/UFRN.

Referências Bibliográficas

NEI. Entrelaçando Vivências e Saberes na Educação Infantil. Natal: UFRN/NEI, 2006. 140 p. (Coleção Faça e Conte.)

FERREIRO, Emília. A interpretação da escrita antes da leitura convencional. In: Alfabetização em Processo. Tradução por Sara Cunha Lima e Marisa do Nascimento Paro. São Paulo: Cortez, 1998.

FONTANA, Roseli; CRUZ, Nazaré. Psicologia e Trabalho Pedagógico. São Paulo: Atual, 1997.

HASS, Aline Nogueira; GARCIA, Ângela. Ritmo e Dança. Canoas: Ulbra, 2006.

VIEIRA, A. L. X. A Dança na Escola Infantil: Alternativa e Desafio. 2001. Monografia (Especialização em Educação Infantil) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2001.

cubos