Edição 124

Espaço pedagógico

Gratos

Anselm Grun

“A ingratidão é o pagamento que recebemos do mundo”, diz um antigo provérbio. É o que sentem muitas pessoas que ajudam o próximo. Não esperam sempre gratidão, mas ficam magoadas quando recebem ingratidão e, pior ainda, reclamações. Alguns pilotos que resgatam vidas contam que são frequentemente insultados pelas pessoas que querem ajudar. Embora arrisquem sua própria vida, recebem, às vezes, ingratidão e injúrias, em vez de agradecimentos. Isso nos mostra como hoje se faz premente a necessidade da gratidão. Ela nos faz um profundo bem, e existem muitas oportunidades para demonstrá-la a outras pessoas.gratidao

Uma das ocasiões é o fim do ano. Quando recapitulamos o ano findo, devemos fazê-lo em atitude de gratidão; precisamos agradecer a Deus por tudo o que Ele nos deu no ano que passou. Porém, não basta aproveitar as inúmeras ocasiões para agradecer a Deus ou a alguma pessoa; também é necessário praticar a gratidão como uma atitude. Ela torna as pessoas agradáveis. A palavra alemã danken (agradecer) deriva de denken (pensar); somente quem pensa pode ser agradecido. Para Raymond Saint-Jean, a gratidão é a memória do coração; a pessoa agradecida pensa com o coração, toma consciência do que lhe é presenteado a cada dia. O ingrato não se porta como um ser humano, não pensa no que lhe é dado diariamente. Cícero, orador e filósofo romano, entendia a ingratidão como esquecimento. Eu me esqueço das dádivas de Deus em minha vida; eu me esqueço do que Ele me concede diariamente por sua palavra, pelas pessoas que encontro e pelas dádivas da Criação. A pessoa agradecida pensa em sua vida e reflete corretamente sobre Deus e o mundo.

Para a filosofia estoica, a gratidão é a qualidade mais importante do ser humano; somente as pessoas agradecidas são capazes de fazer amigos e viver realmente em comunidade. Já as pessoas ingratas são desagradáveis, ninguém aprecia o convívio com elas. Não nos sentimos bem junto de pessoas ingratas, pois temos a impressão de que nunca poderemos contentá-las. Afastamo-nos dessas pessoas, que irradiam uma aura negativa e destrutiva.

A gratidão torna uma pessoa verdadeiramente humana, sendo remédio contra pensamentos e sentimentos destrutivos e depressivos. Era o que sentia Albert Schweitzer, que deu este conselho: “Quando você se sentir fraco, abatido e infeliz, comece a agradecer para se sentir melhor”. Quando olho com gratidão para a minha vida, o que é sombrio se ilumina, e o que é amargo fica saboroso. A gratidão me protege da pusilanimidade e da amargura, aproximando-me de Deus; aprendo com ela a serenidade e a alegria de viver. Algo dessa alegria de viver com humor se reflete na oração vespertina de São Felipe Néri: “Senhor, eu te dou graças porque hoje as coisas não correram como eu queria, mas como tu quiseste”. Quem olha com essa atitude para o dia que passou não fica irritado, porque tudo se torna para ele uma fonte de alegria e de paz.

gratoDiariamente existem várias ocasiões para agradecer. Muitos agradecem a Deus, pela manhã, por se levantarem com saúde. Esta breve ação de graças transforma o começo do dia; não me deixo determinar pela agenda que me aguarda, mas me pauto por uma atitude de gratidão, que me proporciona alegria interior. Alegro-me pelo dia de hoje e o vivo de uma forma diferente quando o aceito de maneira agradecida, como uma oportunidade e uma dádiva que Deus me concede. Cada noite também oferece oportunidade para que o dia termine ao som da gratidão. Estendo a Deus minhas mãos em forma de concha e dou-lhe graças por tudo o que Ele colocou hoje em minhas mãos; pelos encontros que me deram força, pelas palavras que me aqueceram o coração, pelos olhares que iluminaram a minha escuridão. Agradeço-lhe pelo trabalho de minhas mãos, pelo que hoje elas conseguiram fazer bem, pelo que fizeram nascer. Também agradeço a Deus porque hoje minhas mãos distribuíram bênçãos e tocaram pessoas com amor. Quando encerro o meu dia nessa atitude de gratidão, fico internamente em paz; deixo de julgar o meu dia e o contemplo pela ótica da gratidão. Ela muda o meu olhar, ela me faz devolver agradecido o meu dia às mãos de Deus. Com isso, posso descansar em suas boas mãos, sentindo-me protegido.

David Steindl-Rast desenvolveu uma espiritualidade baseada na gratidão. Para ele, a gratidão do coração é a atitude que convém aos homens, especialmente aos cristãos. “Não sou grato por ser feliz, sou feliz porque sou grato”, afirma ele. A gratidão é a chave da felicidade. Assim o entenderam outros escritores e pensadores. Para o romancista inglês Gilbert Keith Chesterton, “A chave de toda felicidade é a gratidão”. Ida Friederike Görres não acredita que possa ser feliz quem não agradece. Ela considera a gratidão como o pressuposto da verdadeira felicidade, pois quem não é agradecido pelo que recebe jamais será feliz. Também para Jeremias Gotthelf, “Quem não pode agradecer também não pode amar”. A gratidão confere durabilidade ao amor, pois as pessoas que se amam querem se presentear mutuamente. O maior presente que se podem dar é o seu amor recíproco, mas só podem senti-lo quando o recebem com gratidão.

Dietrich Bonhoeffer — teólogo evangélico e combatente da Resistência, executado em 1945 pelos nazistas — via na gratidão a arte de fazer com que o próprio passado frutificasse no presente: “Sem a gratidão, meu passado afunda na escuridão, no enigma, no nada”. Em sua cela, ele frequentemente pensava, agradecido, em tudo o que vivera em sua vida: a gratidão conferiu outro sabor ao seu presente: não o sabor amargo da prisão, mas o sabor da liberdade e do amor, da paz interior e da felicidade. Pensar com gratidão no que temos vivido é uma arte que está sempre ao nosso alcance. A gratidão não detém o passado nem foge do presente, mas recupera o passado no presente, tornando a pessoa capaz de viver de outra maneira o momento atual.

Escrevo esses pensamentos sobre a gratidão justamente após o término de um curso sobre a morte prematura, que ministrei a pais que perderam filhos. Como é possível que pais em luto pela perda de filhos possam estar agradecidos? Seria cínico de minha parte conclamá-los à gratidão. Não possomulher ignorar o luto quando falo de gratidão. Porém, o luto é, na verdade, uma luta entre sentimentos para se ter voz no coração. Pois aí residem dor, raiva, desespero, desesperança e culpa. Mas, às vezes, emerge, desse caos de emoções, um sentimento de gratidão. Alguns pais conseguem, de coração sincero, dizer que agradecem a Deus, apesar de sua dor, por terem podido ter seu filho ou sua filha por cinco, dez ou vinte anos. Quando os pais, no meio da dor, entregam-se à gratidão, seu luto se transforma. Ele continuará voltando à tona. Mas, no meio da dor, também existirá esse outro sentimento que lhes dá apoio e, apesar de toda a escuridão, os enche de júbilo. No meio do luto, a gratidão é um lugar de descanso, onde eles podem se retirar para encontrar finalmente a paz.

A gratidão não é um sentimento como qualquer outro que invade nosso coração, pois precisa de interface; agradecemos alguma pessoa e especialmente a Deus, que é a razão última de toda a gratidão.

A gratidão não é um sentimento como qualquer outro que invade nosso coração, pois precisa de interface; agradecemos a alguma pessoa e especialmente a Deus, que é a razão última de toda a gratidão. Chesterton afirma que o pior momento de um ateu é “[…] quando ele realmente está agradecido, mas não tem a quem agradecer”. Uma anedota judaica ilustra esse fato: “Um rabino foi a um campo de golfe num sábado, embora a lei mosaica o proíba. O prazer falou mais alto do que o mandamento. Embora tenha feito o escore máximo com uma tacada, ele não ficou feliz, porque não poderia contar o fato aos demais, pois todo judeu observante o condenaria por isso”.

O mesmo acontece com a alegria pela vida bem-sucedida. Quando não temos a quem agradecer por ela, a alegria acaba se dissipando. A gratidão diante de Deus mantém essa alegria acesa em nós.

 

Referência

GRUN, Anselm. Atitudes que transformam: como vivemos, como poderíamos viver. Tradução de Newton de Araújo Queiroz. Petrópolis: Vozes, 2017.

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