Edição 57

A LEI Nº 11.645/08

História da África – Para quê?

Mais que a rejeição da cor da pele de um povo, o racismo se constituiu na negação da história e da civilização desse povo, na rejeição do seu éthos, de seu ser total. A diversidade, contudo, e a riqueza da experiência humana fundam-se, em grande parte da interpretação, na intercomunicação e no intercâmbio entre culturas específicas. O objetivo verdadeiramente revolucionário não é erradicar as diferenças, mas, antes, evitar que elas sejam transformadas em pedras fundamentais da opressão, da desigualdade de oportunidades ou da estratificação social.
Abdias do Nascimento e Elisa Larkin

O tempo histórico vivenciado pela sociedade contemporânea, que deseja e reivindica uma educação democrática e impõe à escola novos posicionamentos, e a implantação de um novo paradigma educacional de valorização da diversidade garantindo respeito às diferenças e visualização positiva da cultura afro-brasileira são imperativos da educação antirracista que se deseja construir.

Nesse sentido, com a inclusão do ensino de História da África e da Cultura Africana e Afro-brasileira nos currículos oficiais, exigida pela Lei Federal nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, a escola brasileira terá a oportunidade de contribuir para a ampliação do conceito de democracia, colocando em nível de igualdade de informações os conteúdos trabalhados no currículo escolar sobre os continentes e as diversas culturas mundiais.

É inegável que a escola tem priorizado um currículo totalmente voltado para uma concepção de mundo eurocêntrica. Tal posicionamento segue no rumo contrário à concretização de uma proposta de currículo vinculado à realidade brasileira, com base na diversidade e no pluralismo. O contar da história, tanto da humanidade quanto do Brasil, estaria fatalmente prejudicado sem a história africana como fundamento.

Reflexões do professor Henrique Cunha Júnior (2002), explicitando as justificativas para o ensino de História da África, apontam-nos questionamentos: “Como entender a história econômica do capitalismo, ou mesmo do colonizador português, sem uma base historiográfica africana?”.

A falta de informação e/ou as informações equivocadas sobre a África e sua cultura fazem prevalecer, no Brasil, um imaginário precário e preconceituoso sobre as origens africanas e sua influência na formação do nosso país.

Com essas prerrogativas, a identidade brasileira se constituirá de forma fragmentada. Poderá, a memória social brasileira, efetivar-se de forma positiva e crítica sem reproduzir o sentimento de inferioridade resultante da condição de país colonizado? Portanto, a construção efetiva da identidade brasileira implica, necessariamente, no reconhecimento e na aceitação da representação dos grupos étnicos que compõem este país. Os segmentos negro e indígena vêm sendo historicamente discriminados pela historiografia oficial. Hierarquizar ou produzir a eliminação simbólica da história das raízes desses povos é uma demonstração explícita de racismo. Em relação a esse aspecto, assim afirma o professor Carlos Moore:

Ou o Brasil do futuro será um país governado por negros e brancos e indígenas americanos, uma nação administrada em função da alocação equitativa dos recursos para cada um dos componentes sociorraciais da sociedade, ou fracassará como nação (Moore, 2008, p. 142).

Portanto, inserir o ensino de História da África nos diversos currículos nacionais, nas modalidades e nos níveis de ensino contribuirá para a desconstrução e eliminação de estereótipos construídos sobre esse continente, seu povo e sua cultura, valorando-os positivamente. Como aponta Moore, Converter-se-á num fator de suma importância estratégica na pretensão do Brasil de se erguer, no século XXI, ao status de potência mundial. O caráter multiétnico e multirracial do Brasil torna-se, assim, uma potencialidade política no marco de uma estratégia de advocacy de um mundo multipolar que concilia vias alternativas de desenvolvimento humano (Moore, 2008, p.139).

Portanto, o desvelamento dessa história é urgente se, de fato, as autoridades brasileiras desejam pleitear um lugar diferenciado entre as nações, com possibilidade de evoluir de modo sustentável e de forma autônoma.

Por isso, o combate ao racismo e a toda forma de discriminação e exclusão socioeconômica deverá ser o foco das políticas e das ações da sociedade civil. Ou seja, a adequada compreensão da história da África e dos afrodescendentes será estratégia indispensável ao desapoderamento do Brasil, que poderá colocar-se na luta por uma comunidade sustentável, onde o reconhecimento e o respeito à memória, à história, às produções socioculturais e às identidades pessoal e coletiva de cada um dos grupos sociais da comunidade planetária sejam considerados.

História da África no currículo escolar para:

Desconstruir o imaginário preconceituoso e restrito sobre a África, seus povos e suas culturas, ressignificando e construindo novos raciocínios.
Estabelecer o elo entre a história do Brasil e a história da África.
Reconhecer a importância do continente africano na construção da história geral da humanidade.
Promovendo:

O reconhecimento e a valorização das africanidades na cultura brasileira.
A desconstrução de equívocos e o preenchimento dos vazios deixados pela historiografia oficial sobre o continente africano e suas gentes.
O reconhecimento e a visualização dos povos africanos como protagonistas de suas respectivas civilizações.
Através de:

Atividades significativas, envolvendo a história de vida e a realidade sociocultural dos estudantes.
Pesquisa, produção e divulgação de conhecimentos sobre história e cultura africana, relacionando o tema aos conteúdos escolares.
Para a assunção dos seguintes propósitos:

Combater o racismo, as discriminações e preconceitos.
Promover a educação das relações etnorraciais.
Desenvolver atitudes, valores e respeito aos direitos humanos e à pluralidade etnorracial brasileira.

Superioridade europeia?
Inferioridade africana?

Instala-se a proposta de revisar a história do Brasil por meio do estudo da história da África, a fim de ampliar os incipientes conhecimentos sobre a historiografia desse continente, bem como de fragmentar e reduzir o olhar pejorativo e discriminatório sobre ele lançado durante séculos. Pouco se sabe sobre o continente africano, raiz do mundo, e, muitas vezes, o que se sabe está impregnado de ideologias racistas. Muito desse conjunto de imagens constituídas equivocadamente se deve a viajantes, historiadores, pesquisadores e pensadores europeus que percorreram o continente africano e sobre ele lançaram seus olhares, tendo como referência a cultura europeia, tida como hegemônica. Retratavam o continente elaborando interpretações comparativas, em que a superioridade era europeia; e a inferioridade, atribuída ao continente africano e suas gentes. Um imaginário ocidental preconceituoso foi gestado sobre a África e os africanos em função de representações deturpadas, simplificações e generalizações inconsequentes, principalmente a partir do século XIX.

As representações sobre a África como continente sem história, onde os homens viviam na barbárie e em estado de selvageria, incapazes de construir cultura e história, foram jogadas por terra através de dados científicos e de provas documentais da inveracidade dessas informações. Mas as imagens e informações equivocadas ainda estão presentes no nosso imaginário, constantemente alimentado pela mídia e pelos livros didáticos, que ainda apresentam o continente africano apenas como um continente marcado pelas misérias, pelos conflitos étnicos, pela instabilidade política e econômica, Aids e fome, como se essas fossem prerrogativas únicas e exclusivas da África. Historiadores e estudiosos advertem sobre a alta complexidade de que se reveste o ensino da História da África e de seus povos, como bem o faz o professor Carlos Moore: No contexto da história geral da humanidade, a África apresenta, em planos diversos, um conjunto impressionante de singularidades que remetem a interpretações preconceituosas e, muitas vezes, contraditórias. É provável que nenhuma das regiões habitadas do planeta apresente uma abordagem histórica tão complexa e problemática quanto a África.

E isso se deve a muitos fatores, entre os quais podemos destacar:

A sua extensão territorial.
Uma topografia extremamente variada.
A existência e interação de mais de 2 mil povos com diferentes modos de organização.
A mais longa ocupação humana de que se tem conhecimento (2 a 3 milhões de anos até o presente). Portanto, no processo de ensino-aprendizagem da História da África, é necessário reconhecer que o continente foi alvo de mitos raciais, ressignificar, reconstruir e eliminar tais estereótipos, historicamente construídos sobre o continente e seus povos.

ROCHA, Rosa Margarida de Carvalho. A História da África na Educação Básica: Almanaque Pedagógico – Referenciais para uma Proposta de Trabalho. Belo Horizonte: Nandyala, 2009.

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