Edição 67

Matérias Especiais

Homofobia: um problema complexo de se resolver

Mariana Branco

Blend Images_shutterst_fmtEstudos revelam despreparo de gestores ao enfrentarem a discriminação contra homossexuais no ambiente escolar

Em uma escola pública de Uberlândia (MG), um professor homossexual era frequentemente agredido pelos alunos, que o chamavam de boiola e de bicha. A direção não tomou providências, provavelmente por medo de revides, uma vez que a instituição localizava-se num bairro com alto índice de criminalidade. O relato, que faz parte do estudo Docências que Transitam pelas Fronteiras das Sexualidades e do Gênero: a Escola como Espaço de Imposição de Poderes e Resistências, do educador Neil Franco Pereira de Almeida, evidencia a discriminação contra homossexuais nas escolas brasileiras. Embora muitos gestores ainda prefiram não discutir o assunto ou até negar a sua existência, a homofobia faz vítimas, seja os professores, que acabam saindo da escola, seja os estudantes homossexuais, que terminam entrando para as estatísticas de evasão escolar.

O estudo de Almeida analisa relatos de professores e professoras gays, travestis e lésbicas, e suas análises são parte de uma pesquisa de mestrado em Educação realizada nos anos de 2007 e 2008. Na visão do docente, a homofobia está relacionada à construção social que diz que a sociedade é construída por dois gêneros — masculino ou feminino — e que uma dessas duas identidades, que seria a masculina, tem um valor social superior à outra. “O estereótipo gay estaria transitando para o gênero feminino e desobedecendo a regra de que o masculino é a identidade máxima. A homofobia vai denunciar o sexismo que existe socialmente e que envolve professores, professoras, alunos e alunas”, explica Almeida, que também é professor do curso de Educação Física da Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac), de Minas Gerais.

O educador ainda destaca as consequências do preconceito, como a baixa autoestima de docentes homossexuais. “Às vezes, ele [o professor homossexual] pode se sentir na obrigação de alimentar essa homofobia dentro da escola, achando que talvez não tenha o valor social que lhe é devido, que deveria ter. Lá no fundo, ele pode acreditar que a desvalorização da homossexualidade é uma coisa legítima, legal. Na minha pesquisa, percebi que eles têm um pouco de dificuldade de administrar isso”, analisa.

michaeljung_shuttersto_fmtÉ aí que entra o papel do gestor escolar no combate à homofobia. Mas, para especialistas no assunto, o que mais se vê são profissionais despreparados diante de situações discriminatórias, e, não sabendo lidar com a situação, muitos preferem ignorá-la. “O discurso da diversidade é muito frágil, fica muito no papel. Na hora de botar em prática mesmo, é outra história, porque na verdade o discurso é uma coisa, mas a prática é outra”, afirma o professor.

Para o deputado estadual José Rodrigues Lemos (PT-PR), o Professor Lemos, a escola brasileira, situada em uma sociedade que é preconceituosa, reproduz essa realidade. “Diante de pesquisas, observamos que é grande o número de estudantes que rejeitam a presença de colegas homossexuais. Dados mostram que há uma exclusão nas escolas dos alunos que não são heterossexuais, e a maioria acaba abandonando a escola”, afirma, lembrando que o Brasil já foi considerado o país mais homofóbico do mundo. Ele se refere ao Relatório Anual do Grupo Gay da Bahia (GGB), que lista desde 1980 os assassinatos de homossexuais no País — em 2008, o Brasil registrou o maior número de crimes do gênero (190 casos), seguido pelo México (35) e pelos Estados Unidos (25).

Segundo o deputado, quando acontece uma situação de discriminação, é importante que os docentes estejam preparados para atender a uma demanda como essa. “Mas, evidentemente, eles precisam contar com uma equipe pedagógica preparada, com a direção e com o Conselho Escolar, que, na área pública, é o órgão de maior deliberação da escola.” Lemos propõe a sensibilização de gestores de escolas públicas e privadas para a promoção de um debate sobre o assunto e a inclusão desses conteúdos no interior das escolas. “Se avançarmos com os gestores, nós vamos mais rapidamente combater a homofobia nas instituições de ensino. Estamos propondo abrir esse debate levando toda a comunidade escolar a refletir”, afirma. No final do ano passado, ele promoveu, na Assembleia Legislativa do Paraná, a audiência pública sob o tema Escola sem Homofobia: Toda Discriminação Deve Ser Reprovada!. Uma das propostas aprovadas na audiência pública pelas entidades presentes — instituições integrantes do Fórum Paranaense de Gênero e Diversidade Sexual, como a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Dom da Terra, o Grupo de Gênero da Universidade Tecnológica do Paraná (UTFPR) e o Grupo Dignidade — foi a criação de um projeto de lei que tornaria obrigatória a inserção de conteúdos curriculares sobre as relações entre os gêneros e a diversidade sexual nos estabelecimentos de ensino do Estado, medida que seria aplicada em instituições públicas e privadas, da Educação Básica ao Ensino Superior.

Almeida lembra em seu estudo que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), do Ministério da Educação (MEC), apresentam a orientação sexual como um de seus temas transversais, ou seja, os conteúdos relacionados à temática da sexualidade devem atravessar e ser contemplados por todas as séries e por todas as áreas do conhecimento. Mas ele acrescenta: “São dez anos de uma proposta que pouco se conseguiu instituir como forma de desenvolver esse conhecimento”.

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Formação

Se o projeto de lei do Paraná fosse aprovado e colocado em prática, poderia ser um caminho para preparar futuros docentes e gestores do Estado. “A escola não está só para ensinar Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia; ela está para contribuir para a construção de uma sociedade justa. Então, a gente não pode permitir que discriminações sejam feitas, percebidas, e a escola não tome providências”, analisa o deputado.

O professor de História e coordenador pedagógico de Ensino Fundamental (séries finais) do Colégio de Aplicação João XXIII, de Juiz de Fora (MG), Anderson Ferrari, alerta para a necessidade de os educadores também estarem preparados para situações de homofobia. “A escola não quer discutir conscientemente e tem dificuldade efetiva de discutir, por várias questões. Uma delas se refere às nossas formações, sobretudo às licenciaturas, que são extremamente conteudistas. As pessoas entram na graduação e vão ser professores achando que sala de aula é só conteúdo”, opina Ferrari, que também é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado/doutorado) na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Para ele, a sala de aula exige uma série de outras coisas e, dentre elas, as construções das identidades. “O que o professor não sabe é exatamente trabalhar essas questões.”

Ferrari acrescenta que alguns professores não tomam nenhuma atitude ao presenciar a discriminação porque, muitas vezes, não sabem como agir. “Se lida mal com isso fora da escola, ele vai lidar da mesma forma na instituição. A graduação não foi capaz de mudar essa postura dele, porque não discutiu isso. Basta a gente pensar: qual faculdade discute sexualidade? Você não tem na História, por exemplo, a história da sexualidade. Você não tem nenhum momento em que se discute a sexualidade, muito menos a homossexualidade”, alerta.

Recomendações

Os especialistas sugerem que o gestor aborde a diversidade sexual e o respeito à orientação sexual não apenas com o corpo docente, mas com todos os colaboradores da instituição de ensino. “Esses funcionários recebem o aluno no portão, fazem a merenda, estão na biblioteca, na secretaria e andando pelo pátio. E os estudantes têm confiança e conversam muito com eles. Então, esses profissionais precisam estar incluídos no debate”, analisa Lemos.

Outra orientação é que as instituições de ensino estabeleçam regras claras para evitar confusões. Ferrari relembra uma situação em que um aluno queria ir para a escola com a camisa do arco-íris durante a semana de comemoração do Rainbow Fest — evento organizado pelo Movimento Gay de Minas (MGM). Quando isso foi negado a ele, o estudante achou que a escola estava agindo de forma discriminatória. “Isso é uma regra da escola que cabe a todo mundo. A fronteira é muito tênue. Não quer dizer que não haja homofobia; ela existe de fato e muitas vezes é sutil.”

Religião

Um professor entrevistado por Almeida (para o estudo citado no início deste artigo) apontou a religiosidade como uma das principais barreiras na construção de um trabalho representativo que discuta a homossexualidade nas escolas. E essa questão afeta não apenas as instituições brasileiras. Nos Estados Unidos, por exemplo, a aprovação em maio de 2009 de um currículo que visava evitar a homofobia em escolas de Alameda, na Califórnia, está provocando muita polêmica. A Lição 9, como é chamada, gerou um processo judicial, acusações de que famílias religiosas estão sendo discriminadas e ameaça de afastamento dos três membros do Conselho Educacional da cidade que aprovaram a medida. Ela se resume ao ensino sobre o tema uma vez ao ano, durante 45 minutos, para todas as séries a partir da Educação Infantil. Lá, existe uma tensão entre pais gays, que querem ter seus filhos protegidos contra possíveis discriminações, e pais que acreditam que é muito cedo abordar homossexualidade com alunos de Ensino Fundamental.

Para Rogério Diniz Junqueira, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a principal consequência de as escolas não implementarem políticas de enfrentamento à violência e ao preconceito motivado por orientação sexual e identidade de gênero é a construção de um ambiente escolar menos pedagógico e seguro. “As pesquisas do Inep mostram que, quanto mais preconceituoso é o ambiente escolar, menor é o rendimento escolar de todos os estudantes; a média cai” (veja dados a seguir).

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Preconceito nas escolas

Uma recente pesquisa nacional, resultado de uma parceria entre o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), analisou ações discriminatórias em 501 escolas. Participaram 501 diretores, 1.005 professores, 1.004 funcionários, 15.087 alunos e 1.002 pais/mães de alunos. Veja alguns resultados:

99,3% afirmaram possuir algum nível de preconceito, sendo que 87,3% indicaram o preconceito em relação à orientação sexual.

98,5% apresentaram predisposição a manter algum grau de distância em relação aos homossexuais.

O índice de conhecimento de situações discriminatórias pelo fato de o aluno ser homossexual foi de 17,4% e pelo fato de o professor ser homossexual foi de 8,1%.

Escolas em que se observaram atitudes mais preconceituosas entre os alunos apresentaram avaliações mais baixas na Prova Brasil 2007 (em Matemática e Português).

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Estados de negação

Enquanto trabalhava na implementação do Programa Brasil Sem Homofobia, do Governo Federal, Rogério Diniz Junqueira, hoje pesquisador do Inep, ouvia discursos de agentes públicos e dirigentes escolares que deixavam transparecer um estado de negação em relação à homofobia e à diversidade sexual. Em um estudo, ele agrupou e problematizou argumentos colhidos entre 2005 e 2008:

• Negação literal: nega-se de forma direta e categórica. Exemplos: “A homofobia não é um problema” ou “As coisas não são assim. Nessa escola, não temos gays nem lésbicas”.

• Negação implícita: são negadas as suas implicações psicológicas, físicas, morais e políticas, e, em geral, o interlocutor utiliza justificativas evasivas. Não raro, essa negação se dá por meio de afirmações que parecem justificáveis: “Por que eu deveria me arriscar? Em outros países é pior do que aqui”.

• Negação interpretativa: mais do que refutar diretamente o fenômeno, procura-se atribuir a ele um significado ou um contorno diverso: “Será que é assim mesmo? Afinal, faltam dados, indicadores que comprovem que essa violência seja fruto da homofobia”.

• Hierarquização: aqui, a homofobia não é simplesmente negada, mas denegada por meio do estabelecimento de níveis de prioridade que nos obrigariam a adiar o seu enfrentamento: “Devemos primeiro enfrentar o analfabetismo”.

• Diversionismo: o interlocutor, ao admitir a homofobia, exibe aqui maior preocupação em introduzir novos problemas, apresentar argumentos fantasiosos e discutir aspectos nitidamente escapistas ou pouco relevantes: “Isso é muito complexo. A escola não está preparada” ou “Isso é coisa para o pessoal da saúde”.

• Apelo ao senso de oportunidade: “Ainda é cedo” ou “Não há clima neste momento”.

• Antecipação fatalista: ressaltam-se dimensões negativas das ações de reconhecimento da diversidade e de crítica da homofobia. “Não vai adiantar”, “Nossa contribuição não fará nenhuma diferença” ou “Sempre foi assim e continuará sendo em todo o mundo”.

Fonte: Estudo Não Temos que Lidar com Isso. Aqui Não Há Gays nem Lésbicas! Estados de Negação da Homofobia nas Escolas.

Mariana Branco é jornalista.
Endereço eletrônico: mariana@humanaeditorial.com.br

Revista Gestão Educacional. Ano 05. nº 57. Curitiba:
Humana Editorial, fevereiro de 2010.

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