Edição 65

A fala do mestre

Individualismo…

Nildo Lage

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O planeta entrou num célere processo de compressão e atravessa um período extraordinário da sua história graças ao indomável poder de ramificação dos meios de comunicação, principalmente a Internet, que conecta pessoas, determina o ritmo e cronometra o tempo, fazendo com que o mundo se veja pelo avesso em tempo real, exigindo do homem cautela que precipite os passos para arquitetar a própria plataforma, construir o universo pessoal e o blindar para bloquear acessos indesejáveis ou uma incursão de hackers, pois, num mundo onde não há privacidade, há o desequilíbrio de cabeças que navegam entre o existencialismo e o capitalismo, avivando cada vez mais a religião do isolamento.

Essa ampliação de mundos sem raias despertou no homem o maior de todos os sentimentos: o de liberdade. Gerou uma ultratransformação social. Com espaço de sobra e tantos conflitos, cada um se posicionou no seu quadrado, e, mesmo com as proximidades exigidas pelo cotidiano, o “Sou mais importante do que você” é lei na constituição da sociedade contemporânea.

No disputado jogo em busca do protagonismo, muitos transcendem, abdicam de coisas e pessoas para cumprirem a desafiante missão de “ser evidência” e, para tanto, recorrem ao alter ego. Esse distúrbio de personalidade impele muitos a se converterem em inabitados Batmans ao assumirem dupla personalidade e, nessa dissuasão de estilos, adquirem coragem e poderes para enfrentarem o maquiavélico Maskara. Afinal, quando o alter ego entra em ação, seus poderes criam legiões de heróis, pois, na mesma cadência, Homens-aranha tecem teias em torno de si para se protegerem, Super-homens e Tochas Humanas despontam em meio a fracassos e decepções para defenderem as vítimas dos caprichos do Eu e formam a invencível “Liga do eu sou, eu posso, eu quero…”, dando início à guerra de conflitos entre identidade e alteridade, pois, em meio aos ataques, o alter ego confunde, enleia-se num universo onde “eu sou o protagonista e vilão” da minha própria história, pois sou capaz de contracenar comigo mesmo para que o mocinho não cresça na trama e inverta o curso de minhas ambições pessoais.

Esse egocentrismo se torna tão consistente que “super-heróis” se autoprojetam com tamanha audácia que acreditam reter poderes para edificarem planetas pessoais, onde o existir é condicionado à vontade, que controla a rotação, determina o clima, os habitantes, e, sem que ninguém os detenha, arrebatam-se nessa aventura, acreditando que a camuflagem proporciona meios para lutar contra tudo e contra todos; voam alto, observam o mundo de cima, com ares de Superman, que nem mesmo a criptonita da razão absorve seus poderes, pois o ego não admite que, nessa trajetória, o mínimo que pode acontecer é uma dissimulada “Liga da Justiça”, onde nem as chamas ardentes do Tocha Humana resistem ao seu poder.

Jose-AS-Reyes-_shutter_opt1Dessa forma, cada vez mais o homem se foca no próprio umbigo e entoa uma canção que se tornou o hino de multidões: “Eu me amo, eu me amo… não posso mais viver sem mim!”. Esse sentimento ganha consistência à medida que o meio de comunicação mais popular do planeta — a televisão — insere na sua grade de programação o cardápio que atende à cadeia alimentar de todas as tribos, e, por ter como alvo o ego, a identidade se fortalece e a desagregação social é inevitável.

Assim, a identidade se compacta para provar ao sedutor alteridade, que se dobra em dois e confunde o ego, salientando que retém habilidades para acariciá-lo, dominá-lo, pois a alteridade, que equilibra pela sabedoria e pela justiça, passa a obedecer a impulsos e reações, a jogar charme e a não demonstrar as verdadeiras intenções, dando início ao intrigante triângulo amoroso identidade-alter ego-alteridade.

Nessa dança, a identidade é graciosa. Exibe-se em ritmos, letras, artes, poesias… Canções que retratam sentimentos, valores, exaltam sensibilidade, vulnerabilidade, salientando ao pretendente alteridade, que, mesmo com o seu alto poder de sedução, não se renderá em nome da plenitude da sua dignidade, pois, nesse jogo de quem domina quem, o Quociente de Inteligência (QI) perde a força e se rende à sensibilidade do Quociente Emocional (QE), salientando que escolhas definirão o futuro, principalmente quando o galã Alter Ego, o Duas Caras, entra no páreo.

As metas do individualista

Para atingir suas metas, o individualista torna-se um obcecado, a ponto de pagar altos preços. E são exatamente esses elevados investimentos que o desvirtuam, impelindo-o a afastar-se da rota e certificar-se que confiar no próximo é se expor ao holocausto, cientificando-se de que sozinho pode ser forte o suficiente para formar o invencível “Exército de um homem só”.

Nesse poderoso batalhão do EU, comandado por MIM, sobressai um ser com a audácia de desafiar o outro, romper as fronteiras do mundo para acatar os caprichos do comandante ID, que, COMIGO, está sempre preparado para qualquer eventualidade, inclusive estabelecer o seu implacável preceito: “Sou mais EU!”

Contudo, quando o individualismo envereda por caminhos paralelos chega a um terreno em que o indivíduo perde a ciência, o comando, e prossegue impelido pelo imprescindível desejo de ir além para obedecer aos impulsos do ego, e este o desafia a atingir o ponto mais alto, chegar à plenitude, para satisfazer o ser maior SI MESMO, enveredando pelos atalhos da individualização, que, segundo o fundador da psicologia analítica, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, é

[…] o processo pelo qual o ser humano chega ao autoconhecimento e é levado a estabelecer o contato com o seu inconsciente, não só com o inconsciente pessoal (integrando as sombras), mas também como o seu inconsciente coletivo.

E como domina o consciente por uma força que deixa o EU livre — mas temeroso, dependente —, batalhas são travadas, íntimo e mente se transformam em campos de guerras incessantes.

Ao final de cada combate, as vitórias não superam as perdas e os individualistas encaram esse sentimento com pânico, desespero, e muitos — já dominados por esse sentimento — não se arriscam ao chegar ao self — centro da personalidade — para, assim, voltarem a existir no seio de uma sociedade como indivíduo socialmente integrado.

Meu mundo e nada mais…

No fantástico universo do individualista, só cabe o EU, “meus desejos”, e, quando o egocentrismo entra em ação, o clima sofre bruscas transformações e passa a ser governado pelo rigoroso sistema EU SOU, auxiliado pela Carta Magna, que rege EU POSSO, amparada por leis rigorosas que determinam como regra EU FAÇO, pois a religião “individualismo” tem como doutrina a satisfação do EU. O ego passa a ser o centro operacional que origina a força para coexistir na competitiva sociedade contemporânea, onde o direito de ser do outro sobrepõe-se à sua vontade de ter.

O fato é que o individualismo é mais do que “sou mais e não preciso de ninguém”. O individualismo confunde pessoas, enleia personalidades a ponto de renúncia e personalismo estarem em constante conflito, perpetrando no outro o caminho mais próximo para chegar ao semelhante, que, simplesmente, pode até ser irmão, mas com a sutil diferença de que usá-lo como atalho para alcançar os próprios objetivos é o propósito.

Para o individualista, despótico, é simplesmente uma ação involuntária para ressaltar os desejos insaciáveis do ego, que exige júbilo, obedecendo aos manifestos do querer, que despontam cada vez que a necessidade de sentir-se superior surge. Estar no centro das atenções é a meta, mesmo que para isso seja necessário dominar, impor condições, atropelar valores sociais, étnicos, religiosos… Enfim, o bem maior do individualista é o próprio EU, e este, a todo custo, tem que sobressair entre os demais e, para tal, não mede esforços, não poupa sacrifícios… O extraordinário é simplesmente ser mais, mesmo por meros instantes, mas tem que ser mais. Mais inteligente, mais importante… Mais… E é essa ambição de ser mais que robotiza, intensificando o grau de insensibilidade ao ponto de essa vontade provocar satisfação e prazer, pois essas reações são a mais genuína essência do individualismo que leva as suas vítimas à “orgasmomania”, deixam-nas extasiadas, impedindo-as de sentir o êxtase maior, que é dividir, compartilhar com o outro uma sensação tão louca que nem mesmo a “orgasmolatria”, com seus padrões estereotipados, seria o suficiente para satisfazê-las.

sinicak_shutterstock_60_optO desejo de ser é insaciável e, por não refletir em obstáculos e desafios nem contabilizar perdas, os individualistas autoconfinam-se em planetas idealizados pela necessidade de existir, permanecendo como não identificados na órbita do universo SOCIEDADE e partem à procura de algo que os identifique, que os conduza pelas sinuosas trilhas do SER e os levem à essência da própria existência: a exaltação pessoal.

O clímax acelera o processo do individualismo e abre tantos caminhos que a personalidade se perde, a identidade se esvaece, transpõe a razão e atinge a sofisticada individualização. Nesse estágio, público e privado se desvirtuam, provocando subversões de caráter, sentimentos que afetam, principalmente, as relações afetivas, pois os frutos da cultura contemporânea já são colhidos em solos adversos, como consequência do “aquecimento” no planeta familiar, fazendo com que experiências amorosas e relações afetivas saiam do campo privado, enveredem para o público e prossigam para o das banalidades.

Nessa transição, afeto e intimidade perdem o teor, porque o frasco que continha essas essências — a família — despedaçou-se pelo descompromisso emocional, sentimental e humano, fazendo dessa entidade um aglomerado de indivíduos onde o individual não existe e o individualismo impera.

Transitar nessa zona de conflitos e desentendimentos é rotina… Discórdias são momentos que aproximam seus membros para “lavarem roupas sujas”; e violência, a veia de escape para desfecharem rancores, mágoas e carências afetivas.

Mas, como todo produto do meio, o homem se resumiu num corpo corrompido no próprio seio — a família —, que o submete ao torturante processo de individualização. Metodologia em que pais, filhos, irmãos… são demudados em peças genuínas que não se encaixam. Para contrafazerem, catam respostas na base da psicologia — a filosofia —, que responde em meias palavras que, quando o foco é o humano, teorias se chocam, conflitam com a metafísica, cuja teoria afirma que “Os opostos se atraem”, mas esse magnetismo não é garantia de uma conexão.

Sem acoplamento para montar o mapa de valores, a entidade que fortalece a sociedade é apenas um termo para indicar aquele indivíduo como membro originário de tal tronco, mesmo a família sendo o hábitat que concentra a cadeia alimentar, que propicia o alimento do crescimento humano. Mas, por estar num contínuo processo de desinstitucionalização, a tendência é intensificar o fortalecimento da individualização como autodefesa, exterminando os significados de valores como respeito, amor e carinho pelo outro.

Mas… Quem é você quando se recolhe com o seu EU?

Há pessoas que são autênticas arquitetas, levam uma vida edificando máscaras para se esconderem de ninguém além de si mesmas. Acreditando que disfarçarão fracassos e decepções, ensaiam sorrisos, verbalizam sentimentos, fabricam trejeitos graciosos e adotam comportamentos que se tornam referências para muitos… Apenas dramas, coreografias que exigem espaços específicos para serem apresentadas… Pois, nessa passarela de farisaísmos, muitos bem que conseguem desenvolver personagens atraentes, fazer shows fabulosos a ponto de brilharem como astros. Afinal, quanto mais distante a encenação se posicionar do seu universo de realidade, maior será o sucesso e o engano a si mesmo.

Porém, poucos ousam responder uma pergunta que inquieta: Quem é você quando ninguém o vê? O ex-presidente americano Abraham Lincoln rompeu esse silêncio quando declarou: “Você consegue enganar a todos por certo tempo; consegue enganar alguns por todo o tempo; mas não consegue enganar todo mundo o tempo todo”.

Para a maioria, essa desmassificação confunde e é nesse instante que o homem se confronta com o seu íntimo, que habita um sujeito muitas vezes imaturo ou um indivíduo inconsequente. Para simular, converte-se em ator e nas múltiplas personalidades, uma vez mocinho, em outra vilão, particular e privado se embaraçam, pois real e irreal o colocam num paralelo que se torna palco de constantes conflitos — psicológicos, emocionais, existenciais —, exigindo que novas personalidades — intimistas — surjam para não refrear os impulsos do ego.

Entre fugas e conflitos, a imagem se torna tudo, e esta é resguardada por ser o escudo, mas, quando se recolhe no seu revestido universo de medos e temores — onde ninguém o observa —, a máscara cai, e a imagem refletida no espelho assusta, por ressaltar uma personalidade disforme, um caráter pervertido, um ego estilhaçado. E, somente então, percebe que não é ninguém, é simplesmente um ser solitário em meio à multidão, e, sem que perceba, valores já foram consumidos para alimentar esse desejo de romper as barreiras do mundo sozinho.

Por outro lado, regular o egocentrismo numa sociedade que educa para o “Sou mais importante do que você” é um apelo ao individualismo… Pois as famílias designam os seus filhos à individualidade; e, quando não se ensina a dividir em casa, na sociedade a dor, os problemas do outro são “pepinos que cada um descasca, o seu não me interessa” e, quando o relativismo impera, outra lei ainda mais implacável passa a vigorar: “Sou o que desejar ser”, pois a sentença dessa lei é a vontade pessoal e é nesse terreno que se inicia a trajetória de tropeços, com mínimas chances de recomeços.

Muitos abrem caminhos paralelos, não permitem orientações e chegam ao extremo de abdicar do querer pessoal para se submeter às vontades do ego, que, orgulhoso, não admite fracassos. Simplesmente se perde e se defende com desculpas esfarrapadas: “Não foi desejo. Nem vontade, nem curiosidade, nem nada disso. Foi um choque elétrico meio que de surpresa, desses que te deixam com o corpo arrepiado, coração batendo acelerado e cabelo em pé. Foi sentimento. Não foi planejado nem premeditado. Foi só um querer estar perto e cuidar, tomar todas as dores e lágrimas como se fossem suas. A vontade e o desejo vieram depois, bem depois. Não foi um lance de corpo, foi um lance de alma. Não foram os olhos, nem os sorrisos, nem o jeito de andar ou de se vestir, foram as palavras. Uma saudade e uma urgência daquilo que nunca se teve, mas era como se já tivesse tido antes”.

Quando esses tremores provocam a queda da máscara, muitos têm a oportunidade de conhecer aquele político “gente boa” que elegeu para representá-lo, crente de que votou no candidato certo; reconhece o colega que tantas vezes quebrou o seu galho no trabalho, quando, na verdade, queria tão somente aprender o ofício para pleitear a sua vaga; o cristão que reprime o adultério, condena a adoração de imagens, faz campanha nas periferias contra a prostituição, o uso de drogas e pula sub-repticiamente a cerca e bate os seus tambores nas horas de aperto; sem contar com o histórico “amigo da onça”… sempre presente nas horas difíceis, mas, na verdade, sua verdadeira intenção é realmente estar próximo, aguardando o momento propício para dar a rasteira e, quem diria, aquele camarada alegre e divertido é simplesmente um fracassado, usa as aparências como subterfúgios para ser aceito na turma.

É a partir desse ponto que a individualidade perde consistência por permitir ser sugada pelo contagioso vírus do individualismo, fazendo com que o desejo do EU determine isolamento como reverência. E esse é o instante de buscarmos auxílio, pois a vida é um ciclo ininterrupto, e não um filme que pode ser retroagido, congelado e até reeditado para excluir cenas indesejáveis… No telão do existir, muitas vezes as cenas apresentadas são reescritas por figurantes que se transformam em vilões, e por não termos autonomia para escolhermos o final no enredo “viver e existir”, obedecemos à vontade do ego, permitimos ser conduzidos pelo ID e chegamos ao egocentrismo.

Com uma pitada de vontade própria, podemos assumir o comando da trama do nosso viver e, como eficientes roteiristas e diretores, redirecionarmos o curso cujo pano de fundo “individualidade e individualismo” não transfigure a identidade para deturpar o nosso tesouro maior: a personalidade. Pois essa particularidade do indivíduo é tudo e, quando ganha duplo sentido, se perde o elo com o EU. Pois individualidade é fundamental para o fortalecimento da identidade, mas, se permitirmos que o individualismo sobressaia, perderemos o jogo para satisfazer ao pior de todos os sentimentos, o egoísmo.

No centro das discussões, individualismo e egoísmo se confundem, pois muitos criam verdadeiros universos blindados pelo “bem-me-quer”. O clima é tão propício para romances que o amor paira no ar… Eu me enamoro tanto por MIM que o espaço da coletividade é excluído.

Entre batalhas e derrotas, o individualismo perde a guerra para o egoísmo, que, para muitos, torna-se religião, e quando essa religião se transforma em idolatria, o deus “egoísmo” passa a reinar de forma dominante, interferindo na conduta, no agir, no pensar de tal modo que o indivíduo se converte num radar, onde todas as energias convergem ao seu querer, alargando a estrada de vias duplas, onde não é permitido transitar ninguém além de MIM, pois o egoísmo, quando se alia com o individualismo, espaços são compactados; pessoas, comprimidas por não restar ambiente para opiniões, interesses, vontades, desejos e, muito menos, direitos e necessidades alheias.

Os perigos do individualismo

vladm-_shutterstock_466_optOs primeiros sinais são refletidos nos lares cujas famílias desfalecem, pois a televisão isola o pai na sala; o computador, o filho no quarto; o celular, a esposa na cozinha. O isolamento é de uma dimensão em que laços sanguíneos e sentimentos não são suficientes para proporcionar uma reaproximação e mostra seus frutos: divórcios, violência, separações… Pois o que impera é a exaltação individual… Se não tiver aqui, desarmo o barraco e vou para outra freguesia.

E, dia após dia, a nossa sociedade se subdivide em tribos distintas, retalha-se em labirintos, onde as pessoas transitam, mas não se tocam. Veem-se, mas não se sentem… E a maioria tem receio de olhar para trás, muito menos ousa questionar o que está fortalecendo a crença do individualismo e o que o acarreta.

Nessa arena, poucos se preocupam com valores morais, princípios religiosos, se o que faz é certo ou errado, justo ou injusto… Porque, no universo pessoal do individualista, os fins só justificam os meios se a maior fatia do bolo ficar com ele. Do contrário, é mais justo que os meios — que uso para atingir os meus objetivos — justifiquem os fins.

Mas os perigos do individualismo não rondam apenas o meio social. Muitos pais criam os filhos para si, e não para enfrentarem os desafios do mundo. E, assim, os educam para ganharem sempre, se darem bem em tudo. Quando o individualismo penetra nos caminhos da escola, ganha proporções que desafiam educadores e especialistas, pois suas consequências no espaço escolar podem acarretar numa cadeia de danos, que se inicia com as acirradas competições e continua gerando conflitos que alteram atitudes, comportamentos, impedindo que o processo educacional siga o seu curso natural para formar cidadãos socialmente inseridos no meio.

Trabalhar a individualidade é fundamental para o fortalecimento da identidade, mas muitos chegam à escola repletos de ranços e, por não termos um ensino inclusivo, o individualismo tem as suas bases fortalecidas, principalmente por docentes que se tornaram discípulos do revolucionário sociointeracionismo e o seguem com tamanha fidelidade que não observam seus equívocos — muitas vezes simbólicos — ao testificar que “A criança é capaz de construir o próprio conhecimento”.

É exatamente essa criança, que chega imatura e centrada no seu universo familiar e social, que depende de atenção, cuidados especiais e, principalmente, de orientação para se conduzir pelos labirintos do aprender e, sem esse suporte, muitos se suicidam ou são executados num espaço que deveria ser o ponto de resgate, pois as propostas do programa apresentam considerações evidentes ao enfocar os termos de behaviorismo:

O ato, e não o trajeto, é o dado fundamental na psicologia social e na psicologia individual quando são concebidas na forma condutista, e tem por sua vez uma fase interna e outra externa, um aspecto interior e outro exterior… nosso ângulo de enfoque é condutista, mas, diferentemente do condutismo watsoniano, reconhece as partes do ato que não aparecem na observação externa e acentua o ato do indivíduo humano em sua situação social natural (MEAD, 1934/1982, p. 55).

Nessa quebra de braço entre Educação Individualista x Educação Coletiva, sobrepõe-se a individualista e, dessa forma, Educação e Cidadania não se conciliam para acontecer o que o francês Jacques Delors, autor e organizador do relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, disse:

A Unesco educação para a cidadania constitui um conjunto complexo que abraça, ao mesmo tempo, a adesão a valores, a aquisição de conhecimentos e a aprendizagem de práticas na vida pública. Não pode, pois, ser considerada como neutra do ponto de vista ideológico.

Mas, no terreno do saber, o individualismo é tão metediço quanto enigmático, pois o educador, ao mesmo tempo que se autoprotege para se resguardar de uma reação violenta impõe, por meio da autoridade, o domínio do território e sem perceber — ou de propósito — expõe o educando ao extremo para atingir os fins do ego e, nesse combinado de idolatria e egocentrismo, depara-se com barreiras para se relacionar numa sociedade fragmentada por tremores que desequilibram: desânimos, angústias… Destruição de valores… Ambições exorbitantes. Muitos não resistem e chegam a desvios de comportamentos: isolamento, uso da ignorância e da violência para extravasar frustrações por perder o domínio dos impulsos que despertam na transição entre o ser e o não ser.

Pois avaliar o homem no seu estado natural é um processo tão intrigado que leva muitos a desistirem dessa busca com receio de se exporem ao ridículo, pois a necessidade de se artificializarem para, assim, exercer poderes sobre o próximo tornou-se alternativa de vida para os que enveredam por esse universo sem formas e leis definidas.

E como vida é o desafio maior da trajetória existir, a necessidade de sobreviver se sobrepõe à vontade humana, e, quando o humano se depara com a cadeia de paredões erigidos pela sociedade, o alerta vermelho puxa o freio de mão, determinando prudência para não se sentir solitário em meio à multidão. Para evitar essa desintegração com o meio e que os atos não se convertam em entraves, cautela é a regra.

Ante tantas dúvidas, muitos se desnorteiam e ficam os porquês… Por quê?

Por quê? Temos tanto medo de olharmos para nós… Apreciarmos os nossos reflexos e nos conscientizarmos do quanto somos frágeis, indefesos… Dependentes do outro? Covardes que somos, esquivamos o olhar tímido, inseguro… Por não admitirmos que dependemos de alguém… De coisas pequenas para sermos felizes.

Por quê? Receamos parar para refletirmos sobre o que nos intimida? A nossa fraqueza! A sensibilidade, a fragilidade… A carência de fé, de confiança em nós, muitas vezes, nos conduz por caminhos que isolam de coisas, pessoas… do mundo… e nos impele a cometer erros por meio de escolhas irreversíveis… Simplesmente por querermos provar que somos fortes.

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Nessa guerra, não admitimos derrota e travamos uma batalha contra nós. Fechamos os olhos para a razão e atacamos, ferimos… Quase sempre saímos feridos… Fracassamos, dissimulamos, fantasiamos a realidade por não acreditarmos que a vida é feita de recomeços e que a felicidade são raros momentos de paz e reconciliação… Instantes sublimes em que damos um passo à frente, rompemos os limites do isolamento e permitimos que o coração se abra para o amor e a alma deixe-se levar por um sonho.

E quando amamos, aprendemos a relacionar com o tempo… Valorizamos cada instante como último e temos a segunda grande lição: respeitar limites e limitações… Pois aprendemos a ouvir o silêncio e oportunizamos a NÓS a chance de escutarmos o EU sem ignorar o outro, pois o nosso querer passa a ser o querer do outro.

Para encontrar essa saída, é preciso seguir as trilhas da individuação para amenizar tantos conflitos. Individuar, para que esse conceito central da psicologia analítica de Jung se desenvolva para moldar cidadãos com personalidades capazes de separar individualidade de individualismo, para que não aconteça a individualização.

O humano, de tão único entre os seres da Criação, torna-se uma espécie geneticamente equipada a ponto de ninguém ser igual a ninguém. Se a semelhança física confundir, o cérebro é o diferencial — mesmo gêmeos monozigóticos — e, se não for suficiente, o DNA silencia vozes. Portanto, o individualismo é fundamental para que o individual não seja sufocado.

A individuação particulariza o indivíduo sem excluí-lo do seu meio e, mesmo sendo um desafio para o ego — que deverá se desprender de futilidades para superar a dependência —, é o caminho para o autoconhecimento, como Carl Gustav Jung descreve:

Individuação é o processo pelo qual o ser humano chega ao autoconhecimento, e é levado a estabelecer contato com o seu inconsciente, não só com o inconsciente pessoal (integrando as sombras), mas também como o seu inconsciente coletivo.

E, por ser “[…] um processo contínuo de desenvolvimento da personalidade pela diferenciação psicológica do eu”, propicia estruturas para fazermos escolhas ou decidirmos o que queremos: sermos ilha ou arquipélago.

Afinal, individuar é desprender forças para reter qualidades, agir com um querer racional, não impelido por impulsos… Individuar depende de Nós ambicionarmos ser EU… Ou Nós, com identidade única… Depende de Nós optarmos pelo individual, coletivo… Mas sujeito, indivíduo e ator que protagoniza o próprio viver… Pois ser particular, privado ou público é opção… O que importa é ser “self” — si mesmo — ou até ser ilha… Mas num fascinante arquipélago denominado sociedade.

 

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