Edição 130
A fala do mestre
LETRA CURSIVA, EIS A QUESTÃO!
Rosangela Nieto de Albuquerque
Na verdade, há uma linha de pesquisadores e profissionais que é contra o ensino da letra cursiva e apresenta várias justificativas: “Quando se fica adulto, nem se usa mais essa letra”, “Com o uso da tecnologia, não há necessidade de aprendê-la”, “Jornais, revistas, sites usam letra de imprensa, então não tem sentido ensinar letra cursiva”.
E os professores? O que pensam? Os professores enfatizam que é trabalhoso ensinar a letra cursiva, pois a escola, ao longo da última década, tem trabalhado pouco o desenvolvimento da coordenação motora fina da criança. O desafio é grande para o professor, pois como ensinar a criança que não desenvolveu a destreza motora fina, tão necessária para utilizar letra cursiva? Percebe-se que vivenciamos um limbo educacional, em que a letra cursiva passou a ser considerada obsoleta.
Se refletirmos acerca da teoria pedagógica de Jean Piaget, que se baseia na aprendizagem pelo método de investigação, na qual o estudante é estimulado a resolver problemas, a encontrar respostas a partir dos conhecimentos já adquiridos, que participa na interação com o outro (colegas e pessoas) na realidade vivida e que essas circunstâncias norteiam o cotidiano do estudante, isto é, o uso do celular, as teclas do computador, os livros, a televisão, entendemos, então, que esse estudante vivencia a letra de forma. Certamente, nesse processo de interação com a realidade em que se encontra inserido, o estudante tende a se identificar profundamente com aquilo que vivencia. Dessa forma, em se tratando da letra de forma, há que se constatar sua recorrência nas mais diversas experiências.
Em contrapartida, a BNCC estabelece que, no 1o ano, o estudante deve conhecer, relacionar e diferenciar todos os tipos de letra para, no 2o ano, aprender a escrever efetivamente a letra cursiva.
As competências e diretrizes do Ensino Fundamental estão contempladas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que elenca diferentes áreas de conhecimento e, dentro da área de Linguagens, referencia o processo de alfabetização, e uma das habilidades descritas é a aprendizagem da letra cursiva.
Então, letra cursiva, eis a questão.
Os estudos comprovam que, mesmo na atualidade, com mensagens de voz, redes sociais, tweets, e-mails, é fundamental que o estudante aprenda a usar a letra cursiva. Os resultados de exames de avaliação (Pisa), num quadro comparativo entre estudantes que escrevem somente com letra de forma e os que escrevem com letra de forma e cursiva, comprovam uma piora no item interpretação de textos dos estudantes que só escrevem com letra de forma.
O ato de escrever em letra cursiva aumenta a compreensão e produção de textos, a interpretação dos textos de quem lê e escreve. A escrita cursiva estimula o desenvolvimento de áreas no cérebro responsáveis pelo pensamento, pela linguagem e pela memória de trabalho.
O ensino e o uso da letra cursiva na alfabetização são vitais para que o estudante estimule novas conexões e sinapses no cérebro, pois a aprendizagem dela promoverá uma amplitude de interpretações, desenvolverá o pensamento crítico, facilitará a expressão escrita e, consequentemente, a expressão falada (oralidade). É importante que o estudante, no período de alfabetização, tenha acesso à letra cursiva, e não há problema algum se ele, mais tarde, deixar de usá-la.
O ato de escrever em letra cursiva aumenta a compreensão e produção de textos, a interpretação dos textos de quem lê e escreve.
Portanto, independentemente das concepções pedagógicas, tem-se um documento legal que estabelece que a escrita cursiva deve ser ensinada.
POR QUE ESCRITA CURSIVA ATUALMENTE?
A escrita cursiva surgiu na Idade Média para a comunicação sigilosa entre a nobreza e o clero, sendo praticamente indecifrável às outras pessoas (SCHWARTZ, 2010). Atualmente, a escrita das palavras grafadas de forma inteira, popularmente chamada de escrita emendada, sem separações, apresenta traçados mais fáceis de serem escritos, mais simples.
Durante muito tempo, na Antiguidade, quem possuía um bom traçado de letra cursiva era considerado culto. Destinava-se muito tempo à prática de caligrafia, com repetições das letras, com a técnica de não levantar o lápis do papel enquanto se escrevia. Durante o século XX, até mesmo a personalidade de uma pessoa era verificada mediante a análise da sua assinatura, da sua escrita cursiva. E até na busca por um emprego analisava-se a escrita cursiva.
Até a década de 1980, as crianças do nosso país e de muitos outros só podiam escrever com a letra cursiva (MORAIS, 2012).
Pautado em estudos do construtivismo e da psicogênese da língua escrita, nos quais a fundamentação teórica se volta para o aluno no centro do processo de aprendizagem, tem-se a proposta de que, no início da alfabetização, deve-se usar a letra de imprensa maiúscula. Assim, a letra cursiva foi ficando em segundo plano, e docentes e especialistas passaram a ter dúvida quanto à importância do seu ensino.
Apesar da incerteza entre os educadores, a BNCC, promulgada em 2017, faz referência ao processo de alfabetização da criança e estabelece que “[…] é nos anos iniciais (1o e 2o anos) do Ensino Fundamental que se espera que ela se alfabetize” (BNCC, p. 87). Desse modo, elenca “[…] o conhecimento do alfabeto do português do Brasil em seus vários formatos (letras de imprensa e cursiva, maiúsculas e minúsculas)” (BNCC, p. 90).
Portanto, independentemente das concepções pedagógicas, tem-se um documento legal que estabelece que a escrita cursiva deve ser ensinada.
É difícil aprender letra cursiva? Os professores têm dificuldade de ensiná-la?
Sim, é complexo para a criança aprender a letra cursiva, o traçado, o movimento psicomotor, a construção simbólica e a elaboração com significados que remetem ao desenvolvimento cognitivo. O treinamento da escrita cursiva exige também concentração do estudante.
O ideal é que os educadores explorem o primeiro estágio da criança voltado para as linhas retas (também chamada de letra bastão), por serem traçados mais simples.
O movimento da letra cursiva faz com que o cérebro seja estimulado nas áreas simbólicas e motoras, e certamente haverá um desenvolvimento na área das linguagens e compreensão de mundo.
No entanto, sabe-se que, entre os docentes, em sua práxis pedagógica, há várias teorias de abordagem que muitas vezes diferem entre si. Embora haja um documento legal estabelecendo que se ensine a letra cursiva, pode haver certa resistência por parte de alguns docentes. É um grande desafio para os professores a aquisição da escrita pela criança, este momento é fundamental para as fases de aprendizagem.
A criança, desde o nascimento, vai sendo preparada para a aquisição da escrita, nos movimentos lúdicos ela vai maturando os músculos e promovendo a prontidão para a escrita, assim como o movimento de pinça, que começa a se desenvolver na criança a partir dos 9 meses; com o movimento de segurar objetos, oportunizará a pega do lápis. O desenvolvimento da mão se inicia nos 3 primeiros anos de vida, o manuseio com massinhas e os desenhos, no início ainda em garatuja, vão evoluindo e passam a tomar forma celular, e, entre 3 e 4 anos, percebe-se a facilidade da construção das linhas horizontais e verticais. Posteriormente, os desenhos se apresentam com contornos mais definidos. O trabalho com o pontilhado, em torno dos 5 anos, já é a preparação para a letra cursiva, e, aos 6 anos, o estudante já pode iniciar a letra cursiva.
As pesquisas enfatizam que a criança na idade da alfabetização tem melhor memória motora; assim, ao escrever com letra cursiva ela erra menos na questão ortográfica. Há divergências entre os especialistas acerca do ensino da letra cursiva, e a grande educadora Magda Soares (2015, p. 73), Professora Emérita da Faculdade de Educação da UFMG, enfatiza que:
Apesar de os estudos da neurociência terem avançado significativamente, ainda há dualidade entre os pesquisadores. Embora os estudos enfatizem a importância da letra cursiva, por desenvolver a integração entre as áreas simbólicas e motoras do cérebro, há outra linha de pesquisa que afirma que, se a letra cursiva for extinta, as habilidades cognitivas serão substituídas por novas, sem nenhum prejuízo.
Segundo Cagliari (2009), para aprender a ler e escrever, a grafia da letra de imprensa maiúscula certamente é mais simples e fácil, mas a escrita cursiva continua sendo fundamental e necessária; inclusive, é importante o uso da caligrafia: “Deve-se ensinar a caligrafia da escrita cursiva. Não cuidar da arte de escrever é um equívoco, um erro da escola, que diz ser moderna” (CAGLIARI, 2009, p. 84).
E quando aprender a letra cursiva? Camini (2013) contrapõe os estudos de Ferreiro e Teberosky, afirmando que, desde o início da alfabetização, a escrita deve ser simultânea, isto é, ter o ensino com as duas apresentações: letra de forma e letra cursiva. Certamente porque a letra cursiva também é um indicador de leitura de mundo. A representação dos dois tipos de letra simultaneamente é fundamental: “O uso simultâneo dos dois tipos concretiza o fato de que os símbolos podem ser múltiplos, enquanto aquilo que é simbolizado é sempre único” (CAMINI, 2013, p. 172).
Em toda parte do mundo, com o desenvolvimento da tecnologia, a escrita cursiva foi gradativamente perdendo espaço. Em 2011, o Common Core Stated Standards Initiative (Iniciativa para um Padrão Comum de Currículo), nos Estados Unidos, determinou que as escolas não investissem o tempo escolar com a escrita cursiva, mas se dedicassem à escrita digital. A partir de 2012, as escolas foram autorizadas a abandonar o ensino da escrita cursiva (SCHWARTZ, 2010).
Assim, a discussão sobre a letra cursiva tomou uma dimensão ainda maior, dividindo a opinião dos educadores.
Antes da BNCC, tínhamos os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que não traziam referência ao ensino da letra cursiva.
Na atualidade, com o avanço das tecnologias, com as opiniões divergentes, valoriza-se a comunicação; o importante é comunicar, isto é, digitar se torna mais rápido e prático do que escrever à mão, além de economizar tempo.
Considerações finais
Durante um longo período na educação brasileira, a letra cursiva foi a mais ensinada entre os educadores e a mais praticada entre os educandos. Contudo, com o desenvolvimento tecnológico, ela foi perdendo seu espaço no âmbito escolar. Em alguns países, como nos Estados Unidos e na Finlândia, há um movimento para as escolas deixarem de utilizar o tempo de ensinagem da letra cursiva e ganhar tempo no ensino digital. Entretanto, estudiosos acerca da aprendizagem enfatizam que a letra cursiva não deve ser abandonada. Como enfatizado anteriormente, as pesquisas comprovam os benefícios neurológicos e cognitivos do ensino da escrita cursiva, reforçando que ela é valiosa para o desenvolvimento da criança quando comparada à digitação em um teclado.
Esses estudos reforçam que o ensino da letra cursiva:
Outros pontos também são levantados:
A escrita manual (cursiva) continuará sendo uma habilidade necessária na sociedade, independentemente de disponibilidade de suporte digital. Oportunizar o saber ler em diferentes fontes é tornar nossos estudantes livres para a escolha de leitura.
Rosangela Nieto de Albuquerque é ph.D. em Educação (Universidad Tres de Febrero), pós-doutoranda em Psicologia, Doutora em Psicologia Social, Mestre em Ciências da Linguagem, psicanalista clínica, professora universitária de cursos de graduação e pós-graduação, psicopedagoga clínica e institucional, pedagoga, licenciada em Letras (Português/Espanhol), autora de projetos em Educação e da implantação de uma clínica-escola de Psicopedagogia Clínica como projeto social e autora e organizadora de treze livros nas áreas da Educação e da Psicologia. E-mail: rosangela.nieto@gmail.com
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Educação Infantil e Ensino Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2017.
BRASIL. Resolução CNE/CP nº 2, de 22 de dezembro de 2017. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias= 79631-rcp002- 17-pdf &category_slug=dezembro-2017-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 06 mar. 2023.
BRASIL. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: a apropriação do sistema de escrita alfabética e a consolidação do processo de alfabetização. Brasília: MEC/SEB, 2012.
CAGLIARI, L. C. Alfabetização e linguística. São Paulo: Scipione, 2009.
CAMINI, P. Das ortopedias (cali)gráficas: um estudo sobre modos de disciplinamento e normalização da escrita. 2010. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/27052. Acesso em: 03 mar. 2023.
CAMINI, P. Escrita à mão, letra cursiva e caligrafia. Presença Pedagógica, v. 19, n. 113, p. 26-32, set./out. 2013.
MORAIS, A. G. de. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012.
SCHWARTSMAN, H. Ensino da letra cursiva para crianças em alfabetização divide a opinião de educadores. São Paulo: Folha de S.Paulo, 17 mai. 2010. Disponível em: https://m.folha.uol.com.br/educacao/2010/05/736314-ensino-da-letra-cursiva-para-criancas-emalfabetizacao-divide-a-opiniao-de-educadores.shtml. Acesso em: 03 mar. 2023.
SCHWARTZ, S. Aprender a ler e escrever: é preciso letra cursiva? Não é preciso! Educação e Cidadania, Porto Alegre, n. 12, p. 71-82, 2010.
SOARES, M. Magda Soares responde. Belo Horizonte: UFMG/Ceale/FaE, 2015. Disponível em: http://www.ceale.fae.ufmg.br/pages/view/magda-soares-responde-3.html. Acesso em: 4 mar. 2023.