Edição 124
Matéria Âncora
Literacia e numeracia na educação
Renata Araújo Jatobá de Oliveira
Não existe nada mais importante para os estágios de desenvolvimento humano do que a educação materializada nas experiências de leitura e em situações que envolvam a resolução de problemas e a capacidade de refletir sobre eles. Esse aspecto favorece a elaboração do pensamento na infância a partir das experiências estabelecidas socialmente e das práticas sistemáticas da educação escolar e do lar. Assim, os aprendizados construídos na família, atrelados à educação formal, são ações que muitas vezes estão diretamente associadas às aprendizagens da literacia e da numeracia no ambiente escolar e no cotidiano das famílias. Ambas as práticas precisam ser compostas e relacionadas para favorecer a integralidade do sujeito humano nas compreensões que são inicialmente básicas do cotidiano, bem como, no decorrer da vida, nas ações complexas, como refletir, estabelecer previsões e conclusões das diferentes situações experienciadas, para que possamos elaborar a partir das habilidades que envolvem letras e números, nas suas funções mais simples até as construções formais do pensamento leitor e matemático.
A literacia possui nomes diferenciados em outros países, como foi apresentado nos estudos dos anos de 1980, são eles: 1) literacy, em inglês; 2) letramento, no Brasil; 3) literacia, em Portugal. Essas nomenclaturas serviram para nomear fenômenos que são distintos daquele denominado alfabetização, alphabétisation. Para o processo de aquisição da língua, a literacia possui importante função e precisa ser desenvolvida de forma concomitante à prática docente, mas são processos distintos. Enquanto o primeiro se constitui de um planejamento sistemático de desafios para os sons da língua e da escrita, o segundo se apresenta nas atividades de leitura no cotidiano e na escola. Para tanto, a literacia é apresentada universalmente pela necessidade da construção dos eventos de leitura pelo indivíduo socialmente constituído. No Brasil, os termos letramento e literacia possuem o mesmo significado, ou seja, constituem-se desde as práticas de leitura que antecedem a ação escolar e se consolidam como aprendizado intencional ao se relacionarem aos eventos de literacia/letramento escolar e social (familiar). O termo literacia chegou aos documentos oficiais brasileiros com a Política Nacional de Alfabetização (PNA). Assim como podemos apresentar essas situações de literacia na vivência infantil e adulta, estabelecemos elos com a língua de comunicação utilizada. Podemos mencionar o caso da leitura de músicas infantis para as crianças e o trato com a leitura acadêmica para adultos; sendo realizado de maneira significativa, esse aprendizado possuirá sentido, e cada vez mais será despertado o desejo de realizar novas leituras e se desenvolver com maior autonomia nas exigências de cada momento específico da leitura e da escrita.
A alfabetização matemática, ou numeracia, amplia o conhecimento para além de simples cálculos. Para tanto, a numeracia possui o mesmo aspecto fundamental de elaboração anterior e durante a escolarização. As competências vinculadas aos números (numeracia) surgem de práticas anteriores ao ensino sistemático da escola. Toda e qualquer realização que envolve contagem, relações de número-numeral, a brincadeira de ter grupos de diferentes animais, reflexões de situações-problema, entre outros, são os fundamentos para o aprendizado da matemática. Essas experiências individuais das crianças da Educação Infantil em relação a esses conceitos e competências produzem o sucesso escolar nos primeiros anos do Ensino Fundamental e na continuidade dos estudos. A ideia do pensamento reflexivo matemático nos aponta que a rotina da criança atrelada a uma escolarização planejada em ações — que vão desde relações número-numeral, de maneira lúdica, na organização da fila na escola, até as famílias nos seus lares, nas ações que se estabeleçam as situações-problema — faz dela um sujeito ativo para o pensamento autônomo reflexivo e matemático, que contribui significativamente para as elaborações da literacia e numeracia. São relações que se integram e se complementam antes e durante a escola; na e para a educação individual e coletiva. Além do papel social da matemática em ações cotidianas, os indivíduos precisam ter atividades de numeracia interessantes, desafiadoras e divertidas, por isso ela deve ser vinculada a um ambiente propício, que seja um espaço de real reflexão matemática envolvendo a ludicidade.
Para tanto, a literacia e a numeracia se apresentam na educação e possuem o papel, em uma perspectiva social, de ser o fio condutor para a construção do indivíduo como sujeito autônomo, ativo, crítico e de compreensão política. Nesse aspecto, a Unesco apresenta um novo resumo de política do Instituto de Aprendizagem ao Longo da Vida, ou seja, consta no documento que o investimento na aprendizagem é sustentado na reelaboração das competências anteriormente construídas. Por conseguinte, existe a ideia da continuidade do aprendizado da literacia e da numeracia para todos os níveis de leitura, para as diferentes idades e em diferentes estágios de progressão e complexidade das ações. Essas duas habilidades também se estabelecem pelo percurso na educação. Assim, é preciso verificar aspectos complementares do antes e durante a escola para construir o real elemento, que é um indivíduo sujeito do seu papel de estudante ativo e conhecedor do seu aspecto crítico e de posicionamento ativo nas ações de uma sociedade.
Na prática docente, podemos evidenciar a importância da Educação Infantil para o desenvolvimento da criança. Logo nos primeiro momentos de vida, a família já deve pensar nos melhores momentos antes de a criança entrar na escola; destacamos alguns: 1) brincar com os números oralmente e com a contagem em diferentes brincadeiras, ou seja, pais que sempre contam mostrando a relação de quantidades atrelam isso à escrita, o que caracteriza uma construção ajustada para a necessidade do ensino sistemático; 2) distinguir cores, formas e texturas sempre relacionando a uma leitura literária; e, por fim, 3) saber lidar com as escolhas que poderão favorecer a elaboração da memória afetiva das crianças que iniciam na Educação Infantil.
Como ponto de reflexão sistemática da literacia e da numeracia, vamos mencionar três elementos fundamentais para que os professores possam compreender melhor a importância da escolha consciente dessas práticas, sendo complementares às que foram sugeridas aos pais, para a melhor ação docente que envolve esse momento. Esses elementos irão ajudar na prática docente, em qualquer unidade educacional, a contemplar de forma abrangente o ambiente da leitura e o aprendizado da língua e dos números e suas reflexões matemáticas. Dessa maneira, podemos facilitar as interações. O primeiro deles, e o mais importante, é a frequência de histórias lidas e os gêneros escolhidos, que devem ser significativos para as crianças.
Assim, é preciso verificar aspectos complementares do antes e durante a escola para construir o real elemento, que é um indivíduo sujeito do seu papel de estudante ativo e conhecedor do seu aspecto crítico e de posicionamento ativo nas ações de uma sociedade.
No momento do primeiro contato da criança com o gênero, a família deve ser incluída para mencionar informações desse texto e trabalhar a quantidade de personagens, as características dos personagens, a possibilidade de criação de grupos de personagens por segmentos, com ordenação de grupos partindo do tamanho ou do tipo de personagem, além da idade das crianças, etc. O coletivo de profissionais que constituem o espaço escolar é partícipe da proposta pedagógica, que só será amplamente efetivada a partir do sentimento de pertencimento dos envolvidos no ambiente educacional. No trabalho com essas duas habilidades, é preciso observar os detalhes da rotina das crianças para verificar como lidam com esses conhecimentos construídos nas suas aplicabilidades.
É preciso visualizar se a equipe possui a orientação relacionada aos conceitos, aos procedimentos e às atitudes, para saber do propósito e da intencionalidade da ação coletiva que será vivida no espaço escolar.
O segundo elemento diz respeito a escrever listas. Envolve amplamente as relações comuns das habilidades, como, por exemplo: a do supermercado ou da feira, nomes dos amigos, presentes que desejaria ganhar, uma receita com todas as medidas envolvidas. Portanto, aproveitando um situação didática integrada nas áreas do conhecimento, com a participação dos profissionais da escola, independentemente do cargo, o sentido de educação se torna abrangente e significativo na sua função. É preciso visualizar se a equipe possui a orientação relacionada aos conceitos, aos procedimentos e às atitudes, para saber do propósito e da intencionalidade da ação coletiva que será vivida no espaço escolar.
O terceiro e último elemento se refere ao trabalho constante da oralidade para literacia e numeracia, ou seja, conversar sobre os temas do cotidiano, do recreio, de um filme assistido pela turma, para que a criança se expresse de forma espontânea, mencionando e argumentando a respeito do que ela achou da história, dos personagens, dos lugares em que acontecem as cenas. Nesse momento, o professor deve motivar e servir de modelo, conversar e comentar sobre situações vividas ou filmes ficcionais. É significativo que o familiar explore sensações e emoções das crianças, como em uma cena triste ou feliz, ativando, assim, as competências socioemocionais, para que elas identifiquem o que estão sentindo e comecem a aprender a lidar com situações difíceis ou que precisam de uma solução.
É necessário pensarmos na literacia e na numeracia na e para a educação realizando a tríade família-escola-criança. Dessa forma, a educação do século XXI, com uma proposta pedagógica planejada, avaliada nas ações cotidianas e significativa na sua origem de construção, favorece a intermediação desses envolvidos na contribuição de um ensino eficiente. Em se tratando da prática docente, temos dois conceitos fundamentais para esse trabalho das habilidades, são eles: Gestão da Avaliação, que conduz à Gestão do Ensino (OLIVEIRA, 2019), que possuem papel fundamental na prática do professor. Toda a relação dessas habilidades são elaboradas pelo professor, que realiza a Gestão do Ensino e a Gestão da Avaliação para a intermediação-planejada.
A escola precisa centrar a sua atenção na criança, nos seus interesses e movimentos, disponibilizando a experimentação dos conteúdos da vida que parta da literacia e da numeracia. Assim, deve-se deixar a criança descobrir, tentar, investigar, observar e se expressar, além de intervir de maneira planejada. Era o que defendia Freinet (pedagogo francês, importante referência da pedagogia (1896–1966)) tempos atrás. Essa é a nossa base, ou seja, aquela com teorias construtivistas, interacionistas, sociointeracionistas, porque a escola é o lugar onde a criança constrói seus próprios brinquedos, suas próprias atividades, seu próprio dia a dia. A escola é o lugar onde se faz amigos, brinca-se de forma direcionada e livremente, faz-se o que é preciso e o que se deseja; onde se parte do contexto da criança e dos seus conhecimentos prévios e, muitas vezes, chega-se à sua própria realidade.
A escola da Educação Infantil deve ter uma proposta que trata as elaborações e as atividades considerando os direitos de aprendizagem — 1) conviver, 2) brincar, 3) participar, 4) explorar, 5) expressar, 6) conhecer-se —, os cinco campos de experiências — o eu, o outro e o nós; corpo, gestos e movimentos; traços, sons, cores e formas; espaços, tempos, quantidades, relações e transformações; escuta, fala, pensamento e imaginação — e, de acordo com os eixos estruturantes da Educação Infantil, interações e brincadeiras, conforme o documento oficial da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017). Assim, as crianças podem aprender e se desenvolver a partir dos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento e da integração dos campos de experiência. A organização das práticas deve estar planejada para ter o protagonismo, a criatividade, a autonomia e a construção investigadora da criança, que devem estar presentes desde a contação de histórias e a leitura de textos do mundo infantil até as possibilidades que envolvem práticas do conhecimento matemático na busca pela educação para todos, com o desenvolvimento claro e integrado, entre família e escola, das práticas possíveis de literacia e numeracia.
Renata Araújo Jatobá de Oliveira é Investigadora de Pós-doutoramento em Educação pela Universidade de Lisboa/Portugal; Doutora em Ciências da Educação pela Université Lumière Lyon 2 – França; Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – Brasil; Especialista em Éducation Pédagogique et Culture(s) de l’Altérité pela Université Claude Bernard Lyon 1 – França; professora de Ensino Superior; membro/formadora do Centro de Estudos em Educação e Linguagem da Universidade Federal de Pernambuco (Ceel/UFPE); consultora educacional com os programas Alfagestar (@alfagestar) e Criative-Lar (@criativelar); palestrante; mentora para orientação dos estudos e seleções de mestrado e doutorado; e pesquisadora de Educação e Linguagem; autora de materiais didáticos e pedagógicos para a Educação Infantil e o Ciclo de Alfabetização. Atua como Técnica Pedagógica na Secretaria de Educação do Recife e do Estado de Pernambuco. Possui o canal do Papo Educa (@papo_educa) para trabalhar com formação de professores envolvendo prática pedagógica, didática, metodologias do ensino com aulas remotas e ensino híbrido, entre outras temáticas.
E-mail: renata_jatoba@hotmail.com
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Proposta completa. Terceira versão revista. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/pdf/0_BNCC-Final_Apresentacao.pdf. Acesso em: 23 out. 2017.
OLIVEIRA, R. A. J. Saberes e práticas pedagógicas dos professores alfabetizadores nos contextos escolares no Brasil e na França: gestão da avaliação através da intermediação-planejada no ciclo de alfabetização. 412 f. : Il Tese (Doutorado em Educação) – Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2019.