Edição 37

Matérias Especiais

Modos de fazer escola e a flexibilização curricular

Carlinda Leite

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Nestes últimos tempos, a flexibilização curricular tem constituído um tema de interesse não só para as escolas que têm estado envolvidas no projeto designado por gestão flexível do currículo, como também para todos os que desejam refletir a educação escolar e os caminhos que se vão construindo para a adequação dessa educação ao que são os desafios dos dias de hoje.

É no sentido de apoiar essa reflexão que desafio quem me lê a refletir comigo a partir de uma caracterização de três modos distintos de orientar o ensino e de fazer escola, de forma a pensarmos qual deve ser o caminho a seguir na educação escolar. E esses três modelos de fazer escola estruturam-se, evidentemente, em concepções curriculares distintas:

Um primeiro está orientado apenas para a transmissão de uma informação e para a aquisição de um conhecimento.

Um segundo orienta-se pelo desejo de estimular um aprender a fazer e uma aquisição de comportamentos técnicos e normalizados.

Um terceiro concebe a educação como um ato social, orienta-se para uma formação global e para a criação de condições que propiciem não apenas a aquisição de um conhecimento, mas também a realização de uma escola inclusiva e o desenvolvimento de um conjunto de competências inerentes ao exercício de uma cidadania ativa.

Considero que essa reflexão é importante quando se fala do currículo e dos processos de o gerir, porque as opções que orientam esses procedimentos para a sua configuração e o seu desenvolvimento estão intimamente relacionadas com os conceitos de educação que nos orientam e com os papéis que atribuímos à escola e aos professores, ou seja, com os diversos modos de fazer a escola.

A escola transmissora

Admitamos um primeiro modelo de escola que lhe atribui apenas o papel de transmitir um saber que se foi acumulando e de inculcar nas novas gerações os valores e as crenças em que se assentam os modelos de raciocínio e de comportamento clássicos e que dos professores espera apenas que transmitam esse saber, de forma que ele seja adquirido e reproduzido. Em síntese, uma escola que tem como meta fazer com que os alunos tenham o domínio da informação e do conhecimento que lhes são passados, de modo já organizado, esperando que eles sejam arquivados, à laia do que acontece com um depósito bancário, como nos diz Paulo Freire quando desenvolve o conceito de “educação bancária”, pois não são estabelecidas relações com o mundo e não se questionam as realidades que o configuram. E, reforçando essa forma de ensinar, atribui-se à avaliação a finalidade de medir a quantidade da aquisição da informação passada e o nível da sua reprodução.

Compreende-se, portanto, que, nesse modelo curricular clássico, se circunscreva o currículo ao conjunto de matérias a ensinar e à estrutura organizativa dessa transmissão. E que se preconizem instrumentos e procedimentos de ensino normalizados e iguais para todas as escolas e para todos os professores, pois o importante é o que se ensina, e não a quem se ensina, como se ensina, e por que e para que se ensina e se aprende. E compreende-se também que se atribua aos professores o papel de meros transmissores desses conhecimentos organizados em informações e que se lhes peça, essencialmente, que tenham o domínio das técnicas da exposição e dos procedimentos que levem à aquisição das informações fornecidas, de forma que os alunos obtenham esse conhecimento de maneira semelhante à que lhes foi transmitida. Por isso se recorre à repetição, que conduz à memorização e à reprodução.

A Figura 1 pretende representar a finalidade dessa escola transmissora e os processos que nela são seguidos.

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A escola tecnicista

Numa concepção de escola e de educação orientada por uma postura mais técnica, que tem por fim adestrar e fazer com que os alunos adquiram comportamentos de um saber técnico — ou seja, numa escola que se preocupe não com o que ensinar, mas sim com o como ensinar o que outros dizem ou querem que se ensine, por forma a que se prepare os alunos para um fim determinado e para o exercício de um papel na sociedade, que é para cada um prescrito —, o currículo é sinônimo dos objetivos a atingir e é estruturado de modo que os professores tenham pouca possibilidade de o alterar, desejando-se que assumam um papel de consumidores desse currículo concebido em nível nacional. E, para isso, os currículos estruturados nessa lógica são feitos à prova dos professores, isto é, são construídos de tal forma que pormenorizam todos os elementos e processos, deixando aos professores e aos alunos pouca margem de liberdade para tomarem qualquer decisão diferente da que lhes é imposta.

A Figura 2 ilustra esse modo de fazer a escola, que a associa a uma linha de montagem na qual os professores e os alunos apenas têm de cumprir mecanicamente o que lhes foi prescrito.flexib_curricular02

Tentando caracterizar um pouco mais esse estilo de fazer escola, que, como se percebe, é enformado por correntes behavioristas e comportamentalistas, em que não há lugar para o pensamento divergente e para a diversificação das aprendizagens, os processos de ensino–aprendizagem são de ordem instrumental e decorrem em função de objetivos comportamentais a se atingir, objetivos estes que estruturam procedimentos e ações que ignoram o aluno, enquanto pessoa, e o mundo, enquanto realidade social a analisar e onde cada um tem de intervir. Por isso, nessa concepção de educação, ou, melhor dizendo, de instrução, toda a dimensão relacional é desvalorizada, tal como todas as atuais concepções de inteligência que a reclamam não apenas como algo de cognitivo, mas também de emocional (lembre-se do que diz Damásio e Coleman e das teses que têm contrariado o que defendeu Skinner).

Não havendo lugar para os porquês para o desenvolvimento de competências de análise crítica, o enfoque da ação dos professores, nessa concepção curricular, é o programa e o plano concebido e a estrutura por e para objetivos comportamentais e uniformizantes a atingir a curto prazo. No que diz respeito à avaliação, esse modelo curricular tecnicista recorre a procedimentos do que se pode chamar uma avaliação instrumental e compartimentada, que não estimula os alunos a visões globais e do todo nem ao reconhecimento da importância do “aprender a ser”, “aprendendo a viver juntos e a viver com os outros”.

A escola sociocrítica

Contrariamente aos dois modelos curriculares que acabaram de ser caracterizados, numa concepção de escola e de educação que se reconhece enquanto ato social e que se orienta para o aluno, na sua dimensão total (portanto, enquanto sujeito individual e membro de uma sociedade), e que pensa a escola como uma instrução que pode ter e deverá ter um papel ativo na mudança positiva dessa sociedade, interessa não só o que ensinar, o como fazer, mas também, e sobretudo, o porquê e o para que ensinar e fazer.

Nessa concepção curricular, questiona-se o sentido de uma formação e de um trabalho que é desenvolvido no isolamento da sala de aula e de um grupo apenas constituído por um professor e os seus alunos, esquecendo os outros professores, os recursos locais e o envolvimento de diferentes parceiros educativos; questiona-se a dificuldade de um sistema centralizado ter em conta as diversas realidades e, positivamente, responder ao desafio de uma “escola para todos”; questiona-se a qualidade de um currículo que é construído à prova dos professores, isto é, que define todos os elementos e pormenores, deixando àqueles que o vão pôr em prática o mero papel de funcionarem como correias de transmissão do que é prescrito de forma universal e que se dirige ao aluno médio-tipo, o aluno abstrato que se pensa que existe, mas que não é o aluno real: questiona-se a possibilidade de uma inovação curricular que não parta da escola e dos professores ou que, pelo menos, não os tenha como parceiros no reconhecimento do interesse e da legitimidade das ações.

Por isso, nesse modelo curricular, reconhece-se que os professores são protagonistas importantes tanto na organização como no desenvolvimento do currículo, de forma a configurarem opções adequadas aos contextos reais e a mobilizarem experiências e situações dessas realidades.

Por outro lado, nesse modelo curricular, ou nesse terceiro modo de fazer escola, é importante a participação ativa dos educadores e educandos em reflexões sobre os valores presentes na sociedade e nas diversas atuações, pois considera-se que, através dessa reflexão, se desenvolvam competências para decidir e intervir conscientemente nas situações reais.

No quadro dessas idéias, propõe-se que os currículos se centrem na pessoa, no sentido de contribuírem para reconstruir a própria pessoa e a sociedade, e que, para isso, se recorra a conteúdos facilitadores do desenvolvimento pessoal e a processos que permitam aos estudantes aprenderem a lidar com as questões sociais. Inclusivamente, propõe-se que a avaliação dos alunos reflita as situações que encontrarão no mundo exterior à escola, e não apenas as de um saber escolar fechado ao mundo e às realidades.

Portanto, se considerarmos que é esse terceiro estilo de educação que se justifica nos dias de hoje — porque ele permite que os alunos aprendam através de um processo de construção pessoal que aproxima as aprendizagens às realidades vividas, onde todos têm voz e se sentem incluídos, e que, para além disso, favorece o desenvolvimento, nos alunos, de competências metacognitivas (aprender a aprender e aprender a analisar o próprio processo de aprendizagem) e o desenvolvimento de uma consciência crítica e de respeito pelos outros —, então, temos também de desenvolver uma nova cultura curricular e de estar de acordo com os princípios que matriciam uma flexibilização curricular.

Por que adiro à forma de fazer escola que incorpora a flexibilização curricular

É evidente, pelo que até agora disse, que a adesão ao modo de fazer escola que concebe a flexibilidade como uma característica do currículo não ocorre por apenas ser uma fórmula diferente de educar. Ocorre, sim, por ser uma fórmula que se estrutura em princípios que muitos de nós, professores e educadores, há muito reclamamos quando criticávamos a escola e a formação que um ensino tradicional e um currículo uniforme ofereciam.

E que princípios são esses?

Podemos apontar como princípios do modelo curricular que incorpora as idéias da flexibilização os seguintes:

O princípio da autonomia: expresso na idéia de que o desenvolvimento de um projeto educativo que responda às especificidades locais, isto é, que tenha em conta as características da população de uma dada escola e do meio em que ela se situa, os recursos existentes (e também as suas limitações) e que mobilize esse conhecimento de forma a construir uma educação de qualidade — implica o exercício da autonomia escolar.

O princípio da participação local: expresso na crença de que o exercício, por parte dos professores, de um ensino gerador de aprendizagens mais significativas é facilitado se estes tiverem um papel ativo nesse currículo, isto é, se forem configuradores do currículo, e não meros consumidores deste.

O princípio da diversidade curricular: expresso no reconhecimento de que, numa escola que é composta de diferentes realidades, freqüentada por alunos diferentes entre si, e que deseja criar as mesmas condições de sucesso para todos esses alunos, é inadequado um currículo centralizado e igual para todo o território nacional (isto é, o tal currículo de tamanho único e pronto a vestir, de que falava J. Formosinho no princípio dos anos 1980).

O princípio da educação e da escola enquanto instituição educadora, e não apenas de instrução, ou seja, o reconhecimento de que a escola tem de criar condições para que cada aluno e aluna, ao mesmo tempo que adquire conhecimentos nos domínios das várias ciências, se forme do ponto de vista pessoal e social, se forme numa dimensão cívica e aprenda a “ser”, a “formar-se” e a “transformar-se”.

O princípio da articulação e da funcionalidade do currículo, ou seja, o reconhecimento de que existem vantagens para a formação dos alunos (e não apenas para a aquisição de uma informação) quando o currículo se desenvolve de uma forma integrada, numa relação estreita entre as diversas áreas do saber, e não numa lógica meramente monodisciplinar e desligada das situações reais. As aprendizagens têm de ser funcionais.

O princípio que reconhece a importância da organização curricular, isto é, que concebe que a forma como se organiza e se desenvolve o currículo é um dos fatores que está na base desigual do sucesso escolar dos alunos. De fato, quando selecionamos conteúdos não familiares a determinados alunos e quando recorremos a procedimentos de ensino afastados das suas experiências de vida, forçosamente estamos a colocá-los em situação de desvantagem e estamos a contribuir para que estes criem de si uma imagem negativa, pois aprenderão que a sua vida (e até a de seus familiares) e o que sabem não têm lugar nem valor na escola.

O princípio do não-isolacionismo da escola, ou seja, o reconhecimento da importância de a escola não se fechar numa ilha, mas, sim, de se abrir o mais possível ao meio, estabelecendo com ele relações. De fato, já há muito que vem sendo, por alguns, lembrado que a escola não é, nem pode ser, a única instituição que educa. E, nesse sentido, como atrás disse, vem sendo sustentado que a escola, juntamente com as outras instituições da comunidade, deve trabalhar em conjunto a “cidade educativa”.

Fonte: Para uma escola curricularmente inteligente – Carlinda Leite – Edições ASA – 2003 – Págs. 146–154.

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