Edição 100

Matérias Especiais

O LÚDICO NA CONSTRUÇÃO INTERDISCIPLINAR DA APRENDIZAGEM: UMA PEDAGOGIA DO AFETO E DA CRIATIVIDADE NA ESCOLA

Juciara Rojas

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O sentido da formação profissional implica em entender a aprendizagem interdisciplinar como um processo contínuo e requer uma análise cuidadosa desse aprender em suas etapas, evoluções, avanços e concretizações. Requer redimensionamento dos conceitos que alicerçam tal possibilidade na busca e na compreensão de novas ideias e valores.

A formação de professores é, hoje, uma preocupação constante para aqueles que acreditam na necessidade de transformar o quadro educacional presente, pois da forma como ele se apresenta fica evidente que não condiz com as reais necessidades dos que procuram a escola com o intuito de aprender o saber, para que, de posse dele, tenham condição de reivindicar seus direitos e cumprir seus deveres na sociedade.

O professor é a peça-chave desse processo, devendo ser encarado como um elemento essencial e fundamental. Quanto maior e mais rica for sua história de vida e profissional, maiores serão as possibilidades de ele desempenhar uma prática educacional consistente e significativa. Sobre esse assunto, Nóvoa (1991) afirma que não é possível construir um conhecimento pedagógico para além dos professores, isto é, que ignore as dimensões pessoais e profissionais do trabalho docente. Não se quer dizer, com isso, que o professor seja o único responsável pelo sucesso ou insucesso do processo educativo. No entanto, é de suma importância sua ação como pessoa e como profissional.

Educar não se limita a repassar informações ou mostrar apenas um caminho, aquele caminho que o professor considera o mais correto, mas é ajudar a pessoa a tomar consciência de si mesma, dos outros e da sociedade. É saber aceitar-se como pessoa e saber aceitar os outros. É oferecer várias ferramentas para que a pessoa possa escolher, entre muitos caminhos, aquele que for compatível com seus valores, sua visão de mundo e com circunstâncias adversas que cada um irá encontrar.

imagem_9O paradigma científico emergente (pós-moderno) não se apoia mais sobre certezas, sobre leis determinísticas, em ciências exatas, mas antes sobre possibilidades; procura recuperar a totalidade da realidade natural e social através de abordagens diversas: multi-inter-transdisciplinares (incluindo as ciências da natureza, ciências sociais, as disciplinas humanísticas e artísticas); multi-inter-transparadigmáticas (diversas correntes ou perspectivas teóricas dentro de cada ciência); multi-inter-transculturais, feministas e do senso comum; e multi-inter-transdimensionais, integrando conhecimentos de caráter cognitivo, sensitivo, afetivo, ético, estético (Prigogine & Stengers, 1996; Popper, 1989 e 1991; Arsac, 1995; Morin, 1994, 1995, 1996, 1999; Morin e Prigogine, 1998; Gleick, 1998; Durr, 1999; Nicolescu, 1999; Thuan, 1999; Sousa Santos, 1987, 1989 e 2000). Neste domínio, permito-me destacar os contributos de Prigogine, Morin, Nicolescu Sousa Santos e Paulo Freire.

Ilya Prigogine defende que a ciência clássica atingiu os seus limites e que deverá sair dos laboratórios e dialogar não só com as ciências humanas, a filosofia, a arte, mas também com os saberes preexistentes, respeitantes a situações familiares de cada indivíduo. A metamorfose das ciências contemporâneas não é de ruptura com o senso comum, mas, sim, de respeito com os conhecimentos tradicionais, designadamente dos marinheiros e dos camponeses (Prigogine & Stengers, 1986).

Morin é o grande intelectual da complexidade, transgredindo e ultrapassando domínios da sociologia, em particular, e das ciências sociais, em geral. Sociólogo, filósofo, epistemólogo, ensaísta. Inter-relaciona, integra e supera as disciplinas científicas (sociais e da natureza) com a poesia e o amor. Afirma que estamos na idade do ferro planetária, caracterizada pela falta de convívio entre culturas, raças, etnias, nações, bem como entre sistemas de ideias e teorias. “A pré-história do espírito humano significa que, no plano do pensamento consciente, ainda estamos no seu início. Estamos ainda submetidos a modos mutiladores e disjuntivos do pensamento e é ainda muito difícil pensar de maneira complexa” (Morin, 1995). É, sem dúvida, um dos expoentes máximos da intelectualidade contemporânea.

Basarab Nicolescu, no livro O Manifesto da Transdisciplinaridade, postula que para a compreensão do mundo é necessário articular o pensamento complexo e a transdisciplinaridade. Salienta ainda que as universidades deviam retomar “o estudo do universal”. “Assim, a universidade poderá transformar-se num local de aprendizagem da atitude transcultural, transreligiosa, transpolítica e transnacional, do diálogo entre arte e ciência, eixo da reunificação entre a cultura científica e a cultura artística. A universidade renovada será o berço de um novo tipo de humanismo” (Nicolescu, 1999).

Boaventura Sousa Santos assume papel de relevo na formulação de um novo paradigma científico. No seu último livro, A Crítica da Razão Indolente – Contra o Desperdício da Experiência, salienta que no limiar do terceiro milênio se vive “um tempo de transição paradigmática (epistemológica e societal)” e designa o paradigma emergente como “paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente”.

Refere ainda que “[…] na transição paradigmática, o pensamento utópico tem um duplo objetivo: reinventar mapas de emancipação social e subjetividades com capacidade e vontade de os usar” (Sousa Santos, 2000). Percebemos que é possível e urgente reencontrar a educação, pensando em sua ludicidade.

A inter-relação entre os sentimentos, os afetos e as intuições na construção do conhecimento tem vindo a ser salientada por diversos autores. Snyders (1986) afirma que, quando se ama o mundo, esse amor ilumina e ajuda a revelá-lo, a descobri-lo. O amor não é o contrário do conhecimento e pode tornar-se lucidez, necessidade de compreender, alegria de compreender. Mauco (1986) refere que a educação afetiva deveria ser a primeira preocupação dos educadores, porque é ela que condiciona o comportamento, o caráter e a atividade cognitiva da criança. Outros autores referem que os atos de sentir, pensar e decidir pressupõem um trabalho conjunto das dimensões cognitivas e emocionais do cérebro. Essa ligação entre os processos emocionais e racionais é salientada, entre outros, por Csikszentmihalyi (1990), Damásio (1998 e 2000), Goleman (1997 e 1999), Best (1996), Filliozat (1997), Martin & Boeck (19997), Miranda (1997), Gottman e DeClaire (1999), Morin (1999).

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Goleman desenvolve o conceito de inteligência emocional e salienta que aprendemos sempre melhor quando se trata de assuntos que nos interessam e nos quais temos prazer. A preparação da criança para a escola passa pelo desenvolvimento de competências emocionais — inteligência emocional ­—, designadamente confiança, curiosidade, intencionalidade, autocontrole, capacidades de relacionamento, de comunicação e de cooperação.

Freire (1997), no livro Professora Sim, Tia Não, reafirma a importância das componentes afetivas e intuitivas na construção do conhecimento:

[…] é necessário que evitemos outros medos que o cientificismo nos inoculou. O medo, por exemplo, de nossos sentimentos, de nossas emoções, de nossos desejos, o medo de que ponham a perder nossa cientificidade. O que eu sei, sei com o meu corpo inteiro: com minha mente crítica, mas também com os meus sentimentos, com minhas intuições, com minhas emoções. O que eu não posso é parar satisfeito ao nível dos sentimentos, das emoções, das intuições. Devo submeter os objetos de minhas intuições a um tratamento sério, rigoroso, mas nunca desprezá-los.

Acerca do papel da intuição na produção de novos conhecimentos, Freire salienta no livro A Educação na Cidade:

[…] Para mim, é impossível conhecer rigorosamente com desprezo à intuição, aos sentimentos, aos sonhos, aos desejos. É o meu corpo inteiro que, socialmente, conhece. Não posso, em nome da exatidão e do rigor, negar meu corpo, minhas emoções, meus sentimentos. Sei bem que conhecer não é adivinhar, mas conhecer passa também por adivinhar. O que não tenho direito a fazer, se sou rigoroso, sério, é ficar satisfeito com a minha intuição. Devo submeter o objeto dela ao crivo rigoroso que merece, mas jamais desprezá-lo. Para mim, a intuição faz parte da natureza do processo do fazer e do pensar criticamente o que se faz (FREIRE, 1995).

Nessa abordagem do processo educativo, a afetividade ganha destaque, pois acreditamos que a interação afetiva ajuda mais a compreender e modificar as pessoas do que um raciocínio brilhante repassado mecanicamente. Essa ideia ganha adeptos ao colocar as atividades lúdicas no processo do desenvolvimento humano.

Enquanto educadora, damos ênfase às metodologias que se alicerçam no “brincar”, no facilitar as coisas do aprender através do jogo, da brincadeira, da fantasia, do encantamento. A arte-magia do ensinar-aprender (Rojas, 1998) permite que o outro construa por meio da alegria e do prazer de querer fazer.

O jogo e a brincadeira estão presentes em todas as fases da vida dos seres humanos, tornando especial a sua existência. De alguma forma, o lúdico se faz presente e acrescenta um ingrediente indispensável no relacionamento entre as pessoas, possibilitando que a criatividade aflore.

Defendemos neste estudo uma metodologia em que o brincar é a ludicidade do aprender. A criança aprende enquanto brinca. Fazem parte desta pesquisa três momentos que alicerçam o interdisciplinar dos sujeitos envolvidos: o faz de conta, que é o momento de ênfase à imaginação, vivenciando ideias por meio da literatura infantil. Dramatizar, contar, viver e elaborar histórias criando seu espaço lúdico por meio do livro de pano. No momento dois, damos ênfase ao brinquedo, ao brincar com outras pessoas e ao brincar em grupo. No brincar com outras pessoas, a criança aprende a viver socialmente, respeitando regras, cumprindo normas, esperando a sua vez e interagindo de uma forma mais organizada. No grupo, aprende a partilhar e a fazer um movimento rotativo tão importante para a socialização e o diálogo. No terceiro momento, evidenciamos o brincar, o jogar e o aprender no movimento multi-inter-transdimensional: informação conceitual, comunicação, troca e parceria, interface teórico-prática.

Por meio da brincadeira, a criança envolve-se no jogo e sente a necessidade de partilhar com o outro. Ainda que em postura de adversário, a parceria é um estabelecimento de relação. Essa relação expõe as potencialidades dos participantes, afeta as emoções e põe à prova as aptidões testando limites. Brincando e jogando, a criança terá oportunidade de desenvolver capacidades indispensáveis à sua futura atuação profissional, tais como atenção, afetividade, hábito de permanecer concentrada e outras habilidades perceptuais psicomotoras. Brincando, a criança torna-se operativa.

O brinquedo como suporte da brincadeira tem papel estimulante para a criança no momento da ação lúdica. Tanto o brinquedo quanto a brincadeira permitem a exploração do seu potencial criativo numa sequência de ações libertas e naturais em que a imaginação se apresenta como atração principal. Por meio do brinquedo, a criança reinventa o mundo e libera suas atividades e fantasias. Através da magia do faz de conta, explora os limites e parte para uma aventura que a leva ao encontro do outro Eu.

A entrada da criança no mundo do faz de conta marca uma nova fase de sua capacidade de lidar com a realidade, com os simbolismos e com as representações. Com o brinquedo, a criança satisfaz certas curiosidades e traduz o mundo dos adultos para a dimensão de suas possibilidades e necessidades.

A criança precisa vivenciar ideias em nível simbólico para compreender o significado na vida real. O pensamento da criança evolui a partir de suas ações, razão pela qual as atividades são tão importantes para o desenvolvimento do pensamento infantil. Mesmo que conheça determinados objetos ou que já tenha vivido determinadas situações, a compreensão das experiências ficam mais claras quando as representam em seu faz de conta. Nesse tipo de brincadeira, têm também oportunidade de expressar e elaborar, de forma simbólica, desejos, conflitos e frustrações.

Observamos que, quando existe representação de uma determinada situação (especialmente se houver verbalização), a imaginação é desafiada pela busca de solução para problemas criados pela vivência dos papéis assumidos. As situações imaginárias estimulam a inteligência e desenvolvem a criatividade.

Defendemos neste estudo uma metodologia em que o brincar é a ludicidade do aprender. A criança aprende enquanto brinca.

O ato de criar permite uma Pedagogia do Afeto na escola. Permite um ato de amor, de afetividade, cujo território é o dos sentimentos, das paixões, das emoções, por onde transitam medos, sofrimentos, interesses e alegrias. Uma relação educativa que pressupõe o conhecimento de sentimentos próprios e alheios que requerem do educador infantil a disponibilidade corporal e os envolvimentos afetivo e cognitivo em todo o processo de criatividade que envolve o sujeito-ser-criança.

A afetividade é estimulada por meio da vivência, na qual o educador estabelece um vínculo de afeto com o educando. A criança necessita de estabilidade emocional para se envolver com a aprendizagem. O afeto pode ser uma maneira eficaz de se chegar perto do sujeito; e a ludicidade, em parceria, um caminho estimulador e enriquecedor para se atingir uma totalidade no processo do aprender.

A ludicidade tem conquistado um espaço no panorama da Educação Infantil. O brinquedo é a essência da infância, e seu uso permite um trabalho pedagógico que possibilita a produção do conhecimento e também a estimulação da afetividade na criança. A criança estabelece com o brinquedo uma relação natural e consegue extravasar suas angústias e paixões, suas alegrias e tristezas, suas agressividades e passividades.

Independentemente de época, cultura e classe social, os jogos e os brinquedos fazem parte da vida da criança, pois elas vivem num mundo de fantasia, de encantamento, de alegria, de sonhos, onde realidade e faz de conta se confundem (Kishimoto, 1999). O jogo está na gênese do pensamento, da descoberta de si mesmo, da possibilidade de experimentar, de criar e de transformar o mundo.

A palavra lúdico vem do latim ludus e significa brincar. Neste brincar estão incluídos os jogos, brinquedos e divertimentos, e a ele é relativa também a conduta daquele que joga, que brinca e que se diverte. Por sua vez, a função educativa do jogo oportuniza a aprendizagem do indivíduo, seu saber, seu conhecimento e sua compreensão de mundo.

Percebemos em Machado (1966) o ressaltar do jogo como não sendo qualquer tipo de interação, mas, sim, uma atividade que tem como traço fundamental os papéis sociais e as ações destes derivadas em estreita ligação funcional com as motivações e o aspecto propriamente técnico-operativo da atividade. Dessa forma, destaca o papel fundamental das relações humanas que envolvem os jogos infantis.

Entender o papel do jogo nessa relação afetivo-emocional e também de aprendizagem requer que percebamos estudos de caráter psicológico, de mecanismos mais complexos, típicos do ser humano, como a memória, a linguagem, a atenção, a percepção e a aprendizagem. Elegendo a aprendizagem como processo principal do desenvolvimento humano, enfocamos Vygotsky (1984), que afirma:

A zona de desenvolvimento proximal é o encontro do individual com o social, sendo a concepção de desenvolvimento abordada não como processo interno da criança, mas como resultante da sua inserção em atividades socialmente compartilhadas com outros. Atividades interdisciplinares que permitem a troca e a parceria. Ser parceiro é sê-lo por inteiro. Nesse sentido, o conhecimento é construído pelas relações interpessoais e pelas trocas recíprocas que se estabelecem durante toda a vida formativa do indivíduo.

Machado (1966) salienta que a interação social implica transformação e contatos com instrumentos físicos e/ou simbólicos mediadores do processo de ação. Essa concepção reconhece o papel do jogo para a formação do sujeito, atribuindo-lhe um espaço importante no desenvolvimento das estruturas psicológicas. De acordo com Vygotsky (1984), é com o brinquedo que a criança aprende a agir numa esfera cognitiva. Segundo o autor, a criança se comporta de forma mais avançada do que nas atividades da vida real, tanto pela vivência de uma situação imaginária quanto pela capacidade de subordinação às regras.

A ludicidade é uma necessidade do ser humano em qualquer idade e não pode ser vista apenas como diversão. O desenvolvimento do aspecto lúdico facilita a aprendizagem, o desenvolvimento pessoal, social e cultural, colabora para uma boa saúde mental, prepara para um estado interior fértil e facilita os processos de socialização, comunicação, expressão e construção do conhecimento. Observamos isso quando damos ênfase à formação lúdica no curso de Pedagogia. Duas dimensões nos preocupam nessa formação: a formação do educador e a formação lúdica do educador. A primeira envolve o aspecto geral teórico-prático do acadêmico do curso de Pedagogia em sua prática pedagógica. A segunda envolve o acadêmico e os professores que já atuam na Educação Infantil e se encontram na realidade escolar, bem como os aspectos metodológicos que envolvem a criança-sujeito do conhecimento em construção.

A formação lúdica interdisciplinar se assenta em propostas que valorizam a criatividade, o cultivo da sensibilidade, a busca da afetividade, a nutrição da alma, proporcionando aos futuros educadores vivências lúdicas, experiências corporais que se utilizam da ação do pensamento e da linguagem, tendo no jogo sua fonte dinamizadora.

Quanto mais o adulto vivenciar sua ludicidade, maior será a chance de esse profissional trabalhar com a criança de forma prazerosa, enquanto atitude de abertura às práticas inovadoras. Tal formação permite ao educador saber de suas possibilidades e limitações, desbloquear resistências e ter uma visão clara sobre a importância do jogo e do brinquedo para a vida da criança.

Portanto, esse trabalho propõe uma prática de ensino com possibilidade de aproveitamento do lúdico na metodologia do fazer docente dos acadêmicos (estágio supervisionado), dando ênfase, portanto, à formação lúdica que o sujeito possa desenvolver junto às crianças, permitindo assim um trabalho pedagógico mais envolvente.

Propõe, ainda, explorar novas práticas que se utilizam do lúdico para a construção da aprendizagem no ambiente escolar. Percebemos com isso que, se o professor tiver conhecimento e prazer, mais probabilidade existirá de que os professores-aprendizes se utilizem desse “modelo” na sua sala de aula. Nóvoa (1991) afirma que “O sucesso ou insucesso de certas experiências marcam a nossa postura pedagógica, fazendo-nos sentir bem ou mal com esta ou aquela maneira de trabalhar na sala de aula”.

Quanto mais o adulto vivenciar sua ludicidade, maior será a chance de esse profissional trabalhar com a criança de forma prazerosa.

Ao sentir que as vivências lúdicas podem resgatar a sensibilidade, até então adormecida, ao se perceber vivo e pulsante, o professor-aprendiz faz brotar o inesperado, o novo, e deixa cair por terra que a lógica da racionalidade extingue o calor das paixões, que a matemática substitui a arte e que o humano dá lugar ao técnico (Santin, 1990), permitindo o construir alicerçado no afeto, no poder fazer, sentir e viver.

Com esse intento é que propomos tal trabalho. Poder vivenciar o processo do aprender se colocando no lugar da criança, permitindo que a criatividade e a imaginação aflorem através da interdisciplinaridade enquanto atitude. Que a intersubjetividade se mostre por meio do afeto e da alegria de poder liberar o que cada sujeito (professor) traz consigo mesmo e o quanto pode contribuir com o outro. Também alicerça tal trabalho o contato que tivemos com a comunidade na extensão de nossas ações. No Projeto Livro de Pano, Escola Espaço Livre, pudemos desenvolver dinâmicas que oferecem caminhos positivos à questão do lúdico na aprendizagem. Durante 6 meses, de julho a dezembro de 2000, tivemos a oportunidade de acompanhar trabalhos realizados na Educação Infantil (níveis I, II, III e IV) que, por meio de projetos específicos, utilizam-se do lúdico para construir o conhecimento e também, durante o desenrolar dos projetos/planos, tinham o intuito de construir um livro de pano sobre o que ficou assimilado de cada temática.

Podemos dizer que esse processo passa por várias etapas: de organização e conhecimento da metodologia Livro de Pano; da teoria embasadora que permite os esclarecimentos conceituais; da montagem dos projetos (planos específicos de cada disciplina e nível); da aplicabilidade do projeto com ênfase à ludicidade e afetividade; da construção do livro de pano propriamente dito sobre as temáticas trabalhadas; e da apresentação dos livros à comunidade.

Dessa atividade, temos como resultado vinte livros de pano que se organizam com um trabalho inspirado na ludicidade e na possibilidade de construir o conhecimento, dando ênfase a uma Pedagogia do Afeto. Trabalho que requer do professor dedicação extrema, envolvimento e parceria constantes, fazendo exercer o seu lado interdisciplinar.

Essa experiência vivida nos permite defender a formação lúdica do profissional em Educação Infantil e também nos propiciar a condição de propor tal pesquisa, avançando na possibilidade de o lúdico permitir a construção de uma Pedagogia do Afeto, tão necessária no ambiente escolar e imprescindível ao educador infantil.

imagem_8Outro momento em que a ludicidade impera e que também justifica o avanço do nosso trabalho é o Projeto Recriança: Interdisciplinaridade, Afeto e Ação no Quintal, em que tivemos a oportunidade de trabalhar a autonomia da criança. Atividade realizada com alunos do 5o ano do Ensino Fundamental que explora o tema literatura infantil. Eles constroem a história explorando a ludicidade em sua metodologia. Entendem o tema sobre a literatura João e Maria e conseguem montar um livro da história com suas próprias características. Livro este que se apresenta como instrumento de aprendizagem — Livro de Pano João e Maria. Tal livro é aplicado à construção do conhecimento para as crianças do Jardim III, com um porém: as próprias crianças do 5o ano são os professores aplicadores.

A formação do sujeito não é um quebra-cabeça com recortes definidos, depende da concepção que cada profissional tem sobre a criança, homem, sociedade, educação, escola, conteúdo, currículo. Nesse contexto, as peças do quebra-cabeça se diferenciam, possibilitando diversos encaixes. Negrine (1994) sugere três pilares que sustentariam uma boa formação profissional, com os quais concordamos: a formação teórica, a prática e a pessoal, que, no nosso entendimento, a esta última preferimos chamar de formação lúdica interdisciplinar. Esse tipo de formação é inexistente nos currículos oficiais dos cursos de formação do educador, entretanto algumas experiências têm nos mostrado sua validade, e não são poucos os educadores que têm afirmado ser a ludicidade a alavanca da educação para o terceiro milênio.

O que pretendemos, então, é especificar mais o caráter epistemológico do lúdico e do afeto como metodologias em sala de aula. Para isso, voltamos às escolas em que atuamos, enfocando o fazer do professor, demonstrando os passos da metodologia empreendida. O professor constrói um portfólio de suas ações (registro contínuo da ação: proposta/plano, etapas, desenvolvimento e resultados) juntamente com o depoimento final do docente.

Os sujeitos (acadêmicos do curso de Pedagogia, em suas docências, e os professores das escolas infantis) vivenciam aspectos ricos na construção de uma Pedagogia do Afeto. A faixa etária das crianças, de zero a seis anos, faz o contexto do sujeito aprendiz. O presente estudo permite fundamentar e analisar o trabalho do professor-aprendiz na sala de aula, alicerçado na interdisciplinaridade com ênfase no lúdico como metodologia de ação.

Essa pesquisa em andamento procura contribuir com a melhoria da formação do professor-aprendiz, no sentido de fazer do processo de ensino e do processo de aprendizagem uma ação que vê o homem como unidade, como um ser-no-mundo com o outro (Heidegger, 1997 apud Critelli, 1996), como uma forma de resgatar o humano no sistema educacional ou, segundo Santin (1994), o ser sensível do homem. Outra contribuição prestada pelo estudo está relacionada ao próprio estágio supervisionado, que conquista um espaço importante no processo enfatizado.

Este estudo justifica-se ainda pelo momento histórico em que se vive, em que há bastante inquietação por parte dos estudiosos sobre os rumos da educação, em que as capacidades metafóricas do sentir e do imaginar (Ricoeur, 1992) são evocadas para balizarem a edificação do conhecimento. A metáfora do brincar, do brinquedo, faz o contexto do aprender. Por meio do seu sentido de similaridade, podemos dizer o mesmo pelo diferente.

A pretensão é contribuir para a reflexão, analisando algumas práticas pedagógicas nas quais o elemento lúdico é concebido como fio condutor do resgate da sensibilidade do homem, sufocada pelas relações desumanizantes do sistema capitalista.

Segundo Snyders (1988), o despertar para o valor dos conteúdos das temáticas trabalhadas é que faz com que o sujeito aprendiz tenha prazer em aprender. Conteúdos estes despertados pelo prazer de querer saber e conhecer. Devemos despertá-los para, com sabedoria, podermos exteriorizá-los na nossa vida diária. A alegria, a fé, a paz, a beleza e o prazer das coisas estão dentro de nós.

Por entender e concordar com o autor, percebemos que, se o professor não aprende com prazer, não poderá ensinar com prazer. É isso que procuramos fazer em nossa prática pedagógica, dando ênfase à formação lúdica: ensinar e sensibilizar o professor-aprendiz para que, através de atividades dinâmicas e desafiadoras, desperte no sujeito-aprendiz o gosto e a curiosidade pelo conhecimento. Curiosidade que, segundo Freire (1997), é natural e cabe ao educador torná-la epistemológica. Para a realização, alguns pressupostos básicos conceituais nortearam o caminho metodológico da assessoria estabelecida, necessária para a reflexão dos dados obtidos:

Ser-no-mundo-com-os-outros. Movimento de realização do fenômeno em análise ideográfica e nomotética dos registros (Critelli,1999; Bicudo Cappeletti, 1995; Martins e Bicudo, 1989).

Tudo se decide no processo de reflexão que o professor leva a cabo sobre sua própria ação (Nóvoa, 1995).

O homem da ciência e da técnica perdeu a felicidade e a alegria de viver, perdeu a capacidade de brincar, perdeu a fertilidade da fantasia e da imaginação guiadas pelo impulso lúdico (Santin, 1994).

Que a sala de aula seja um ambiente em que o autoritarismo seja trocado pela livre expressão da atitude interdisciplinar (Fazenda, 1994).

Que as aulas sejam vivas e num ambiente de inter-relação e convivência (Masseto, 1992).

A formação lúdica possibilita ao educador conhecer-se como pessoa, saber de suas possibilidades, desbloquear resistências e ter uma visão clara sobre a importância do jogo e do brinquedo para a vida da criança, do jovem e do adulto (Santos, 1997; Kishimoto, 1999).

A afetividade como sustentáculo significativo e fundamental de uma pedagogia que se alicerça na arte-magia interdisciplinar do ensinar-aprender (Rojas, 1998).

O brinquedo supõe uma relação íntima com o sujeito, uma indeterminação quanto ao uso, ausência de regras. O jogo pode ser visto como um sistema linguístico que funciona dentro de um contexto social; um sistema de regras, um objeto (Kishimoto, 1999).

Como relevância científica, há nos planos o valor da autonomia da criança na possibilidade de ser-no-mundo-com-os-outros, extravasando suas curiosidades na busca do equilíbrio e da maturidade educativa.

Na comunidade educacional, o contributo deste trabalho prima em valorizar a construção do comportamento infantil, dando ênfase à atividade interdisciplinar, à postura do educador em favorecer atividades que propiciam o prazer, a alegria, a inter-relação, a parceria, gerando um clima afetuoso no sujeito-criança, permitindo ao processo de aprendizagem uma efetivação satisfatória e realizadora.

Enquanto pesquisadora, verificamos o sentido significativo da formação contínua do educador em outras vertentes, principalmente a interdisciplinar, e também demos ênfase à formação lúdica como sustentáculo para novas metodologias em sala de aula.

Construindo o comportamento infantil, buscando a autonomia da criança e valorizando a afetividade que envolve o processo do aprender, investimos na formação lúdica do educador e trazemos, portanto, para a academia uma nova visão de educação, defendendo a presença do ser-criança na realidade universitária com evidência a uma Pedagogia do Afeto.

O trabalho resulta na criação de um espaço lúdico na academia, em que a Pedagogia do Afeto possa se fazer presente em uma brinquedoteca, que chamamos Espaçoteca no campus da Universidade, possibilitando, com isso, o desenvolver de atividades metafóricas enriquecidas pela presença do ser-criança e/ou que servem de laboratório aos nossos professores, aos alunos e à comunidade, a exemplo de tantas outras instituições universitárias que já exercem com sucesso tal ação pedagógica.

A Espaçoteca prima por desenvolver oficinas que priorizam os conceitos que envolvem metodologias lúdicas, com ênfase no processo prático, de acordo com o sujeito professor de Educação Infantil. Desenvolvemos momentos semanais de atividades que fortalecem a formação desse profissional. As oficinas buscam ainda defender a ideia de Wajskop (1990) de que a brincadeira deve ser vista como um princípio que contribui para o exercício da cidadania, ou seja, a criança deve ter o direito de brincar como forma particular de expressão, pensamento, interação e comunicação infantil. Ela coloca que, através da brincadeira, ocorre o desenvolvimento das capacidades cognitivas (imitação, imaginação, regras, transformação da realidade, acesso e ampliação dos conhecimentos prévios); afetivas e emocionais (escolha de papéis, parceiros e objetos, vínculos afetivos, expressão de sentimentos); interpessoais (negociação de regras e convivências social); físicas (imagem e expressão corporal); éticas e estéticas (negociação e uso de modelos socioculturais); desenvolvimento da autonomia (pensamento e ação centrados na vontade e nos desejos).

O mais importante é que nossas oficinas são direcionadas aos professores de Educação Infantil que procuram fortalecer e enriquecer a sua formação na ludicidade de suas práticas. Procuramos vivenciar e demonstrar que a criança, na brincadeira, experiencia papéis (re)construindo sua realidade, vivenciando sentimentos, comportamentos e fazendo representações do mundo exterior. Fazemos do brinquedo uma situação social em que aspectos como a imitação de condutas sociais, novas explorações e relacionamentos interpessoais tornam-se presentes.

Através do jogo de papéis, a criança lida com experiências que ainda não consegue realizar de imediato no mundo real; vivencia comportamentos e papéis num espaço imaginário em que a satisfação de seus desejos pode ocorrer.

Outra importante consideração nessa vertente é que a atividade lúdica apresenta dois elementos-chave como definidores de jogo infantil: as regras e o imaginário. Tanto no jogo simbólico (faz de conta/jogo de papéis) como no de regras, essas duas características estão presentes. O que muda é a intensidade e a forma como elas aparecem: no jogo simbólico, o que predomina é a situação imaginária, mas as regras estão presentes, porém de forma implícita; no jogo de regras, o imaginário está presente, mas de forma latente.

Portanto, percebemos que brincar é coisa séria. É o grande desafio para o educador infantil em sua formação lúdica e na construção interdisciplinar do processo aprendizagem, com ênfase na Pedagogia do Afeto, no ambiente escolar.

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