Edição 65

Profissionalismo

O perigo do individualismo na formação do sujeito: o que eu tenho a ver com isso?

Rosângela Nieto de Albuquerque

Digital-Storm_shutterst_opt

A vida nada mais é do que um suceder de escolhas racionais, em que pensamos em nós, em nossas famílias, e não somente em entes concretos, mas também em conceitos abstratos, como a “comunidade”; e vamos, assim, construindo, virtude a virtude, erro a erro, acerto a acerto, escolha a escolha, vício a vício, nossa própria história. Não somos abelhas nem cupins; somos homens revestidos de dignidade, e isso não significa que somos inexoravelmente egoístas (como muitos gostam de enfatizar), mas simplesmente individualistas. Reconhecer isso significa que o que separa o individualismo do egoísmo são apenas prescrições de natureza ética e moral.
Ubiratan Ioro

Certamente, vivenciamos um paradoxo entre o desejo de ser diferente e particularizado e a massificação da moda do “igual”. Vivemos num mundo de influência existencialista e capitalista, onde a maioria dos programas de televisão defende a afirmação do indivíduo contra a força do grupo. Nessa estrutura econômica de consumo, que fortalece no indivíduo a ânsia por produtos personalizados, o homem é cada vez mais visto como indivíduo isolado. Essa ênfase na liberdade individual corrobora a construção do “Eu me amo e vivo meu eu”. Portanto, o sujeito perde a visão de interdependência social e crê-se inatingível. O perigo do individualismo está nessa construção da ilusão de independência, gerando o egoísmo e a insensibilidade.

O Eu e o Nós na cultura moderna

O individualismo assumiu um papel de fundamental importância no desenvolvimento da cultura ocidental. O processo de individualização ganha forças com o Renascimento através do Humanismo, e o homem configura-se como lugar central de suas ações. Portanto, essa mudança afetou não somente o homem, mas a própria cultura.

Temos, na verdade, diversas reflexões acerca dessa mudança, o próprio discurso da globalização tem influência direta nos processos culturais, favorecendo o aumento dos choques interétnicos, das ressignificações e até das autoafirmações culturais.

Jason-Stitt_shutterstoc_opt

Dumont enfatiza que “Com o predomínio do individualismo contra o holismo, o social, nesse sentido, foi substituído pelo jurídico, pelo político e, mais tarde, pelo econômico”.

A questão do valor econômico, papel decisivo no sistema capitalista, nos remete às mudanças que o indivíduo sofre nos grupos sociais, nos quais o objeto de poder é “quanto eu ganho”. E, quando o indivíduo não consegue adaptar-se às mudanças decorrentes desse processo de individualização, as consequências de uma “derrota” ou “vitória”, nos padrões individualistas, são bem complexas.

Simmel enfatiza o valor do dinheiro na sociedade, que se apresenta redesenhada por relações de autonomia e independência pessoal. O dinheiro protagoniza-se como mediador das relações. Ou seja, ele seria um meio de relacionamento universal, dando ao homem a mesma liberdade e personalidade em todos os lugares do mundo.

O dinheiro abriu, para o homem singular, a chance à satisfação plena dos seus desejos, numa distância muito mais próxima e mais cheia de tentações. Existe a possibilidade de ganhar, quase com um golpe só, tudo que é desejável (SIMMEL, 1998, p. 35).

Hoje, a não inclusão dos padrões impostos pelo individualismo contribui para a aquisição de doenças que se tornam individuais, doenças que surgem do olhar individual, as doenças psíquicas. As crises de identidade, os transtornos obsessivos compulsivos, a síndrome do pânico, a ansiedade, a depressão, etc., certamente são sintomas desse processo de individualização. O indivíduo, quando não consegue atingir padrões que o próprio individualismo impõe, passa a entrar em choque com o próprio individualismo contido em si.

Sabemos que o próprio homem não aceita o afastamento do seu eu-coletivo, pois, sozinho, não conseguiria sobreviver; entretanto, é necessário se interligar de tal modo que não perca a sua característica própria. Portanto, o equilíbrio dessa dicotomia é importante para uma caminhada individualizada com base coletivista. Mas como formar indivíduos sadios coletivamente?

O Eu e o Nós na família: o que eu tenho a ver com isso?

O desafio das relações familiares é enfático na sociedade contemporânea. Percebemos o “jogo” acerca da busca de responsabilidade na formação das crianças. As famílias “sem tempo” interpretam que a responsabilidade da formação integral do sujeito é da escola, ou de terceiros, cuidadores dos filhos, pois pautam-se nesse novo paradigma individualista.

Apesar de tantas possibilidades de interação entre os indivíduos na sociedade contemporânea, o reflexo do individualismo nas relações familiares é perceptível quando as ações, que antes eram decididas com certo grau de interferência familiar, passam a ser tomadas a partir de uma visão de si próprio. É comum observarmos pais que passam a semana toda chegando tarde do trabalho, com pouca interação com o filho devido aos horários, e, no final de semana, momento em que poderiam dar mais atenção aos filhos, vão passear ou descansar porque estão “saturados” pelo exercício profissional. Certamente, uma postura individualista voltada somente para o seu Eu.

Pautados numa lógica de que precisam trabalhar muito para “dar o melhor”, as famílias ressignificam o antigo paradigma e desenham uma nova postura do Eu, e não do Nós… É o que chamamos de ideologia do status. Portanto, instalado o perigo do individualismo…

O avanço da família nuclear incitou o processo de independência dos indivíduos em relação às suas respectivas famílias, porém nota-se hoje uma fragmentação também dessa família nuclear em virtude da própria mobilidade social, que oportuniza o afastamento desse núcleo de forma gradativamente acelerada.

É fundamental que os pais se incluam nesse processo de formação do sujeito e, juntamente com a escola, esforcem-se para formar filhos coletivamente sociais, sociáveis e saudáveis, sem deixar de desenvolver a individualidade de sua personalidade e singularidade.

O que a escola tem a ver com isso?

Crianças individualistas: como fomentar a partilha?

imageegami_shutterstock_optFröebel foi o criador dos jardins de infância e defendia um ensino sem obrigações, porque o aprendizado depende dos interesses de cada um e se faz por meio da prática. Diante da importância dada às atividades espontâneas de seus alunos, os jogos e as brincadeiras são fundamentais no desenvolvimento da criança, que, certamente, ao jogar e brincar irá interagir com o outro e, assim, socializar-se. Nesse mecanismo de jogar com o outro, a criança vai se apropriando das noções de partilha, que, futuramente contribuirão para a formação de adultos solidários e que consigam estabelecer boas relações sociais.

É natural observarmos “atitudes egoístas” da criança nos primeiros anos de vida, quando ainda não conseguiu apreender as questões de divisão e reversibilidade. Nessa fase, ainda perdura a construção da separação (do cordão umbilical), da perda (desmame), há um comportamento do “eu”, “meu”.

Posteriormente, a criança vai estabelecendo um equilíbrio emocional entre perdas e ganhos, que irá estabelecer avanços emocionais, e esse “egoísmo” vai se desvanecendo até desaparecer. A criança ainda está voltada para seus interesses, suas vontades, seus desejos e suas necessidades, e a escola e os agentes educadores têm um papel fundamental nesse processo de “egoísmo”, que, mais adiante, dará origem ao egocentrismo, que é uma tendência pessoal exagerada em valorizar só o seu ponto de vista, isto é, um comportamento voltado para o centro das atenções.

O sentimento de partilha nas crianças é muito problemático. Ainda na fase dos 7 ou 8 anos, as crianças têm dificuldades em partilhar, é comum o desejo de posse pelas suas coisas, bem como pelos pertences dos outros. Cabe à escola buscar ações didático-pedagógicas para trabalhar essa socialização. Jogos e brincadeiras com diversidade de objetivos, ora jogos em grupos, ora com brinquedo individualmente, o perde e ganha nas brincadeiras, são, certamente, ações que facilitarão o processo de desenvolvimento da criança.

Na fase posterior, após os 8 anos, a criança começa a desenvolver uma estrutura sustentável no aspecto cognitivo, emocional e social, então passa a compreender a importância de partilhar e se instaura a compreensão dos sentimentos dos outros.

A questão entre o individualismo e o egoísmo na formação do sujeito nos remete à construção cultural e social, que, aos poucos, vai sendo solidificada através da família e da escola. O ambiente e o meio social em que a criança se desenvolve são fatores primordiais para a construção desse sujeito e responsáveis também pela inserção dessa criança num grupo social. Quando família e escola buscam formar na criança o espírito de cooperação, a postura solidária, a partilha e o respeito ao outro, a formação da cidadania se constrói naturalmente. É importante ressaltar que a atitude dos pais se configura como exemplo aos filhos. Infelizmente, percebemos que as famílias muitas vezes criticam a postura individualista ou egoísta da criança, mas o comportamento dos pais é igualmente egoísta.

A teoria pedagógica da escola no processo de construção do sujeito: uma prática de sucesso

A escola, ao trabalhar com a teoria pedagógica da construção do conhecimento, certamente utilizará a metodologia lúdica, que, através de jogos e brincadeiras, socializará as ações e posturas dos educandos. O jogar e brincar é sempre uma dualidade individual-coletiva. Dessa forma, nas ações e intervenções pedagógicas, a criança irá partilhar, emprestar, doar e socializar os brinquedos e, com isso, estabelecer laços de amizade, respeito ao outro, flexibilidade, noções de liderança e, sobretudo, preparação para a vida em sociedade. Nas atividades lúdicas, as questões de ganhos e perdas são trabalhadas de forma natural; assim, saber ganhar e perder fará parte do comportamento social.

Se a escola tem o compromisso de formar cidadãos autônomos e participativos, é preciso desenvolver a autonomia nos alunos, que, através da construção de seu saber operatório, e nunca sozinhos ou isolados, agirão em constante interação com os meios ao seu redor. Nesse enfoque, a Pedagogia de Projetos é uma metodologia de trabalho educacional que tem por objetivo organizar a construção dos conhecimentos em torno de metas previamente definidas, de forma coletiva, entre alunos e professores.

A escola vivencia hoje o desafio de desenvolver nos educandos a sociabilidade e a cidadania. O trabalho em grupo é uma técnica didática que exige respeitar e preservar a individualidade e as produções do outro, com suas características e singularidades e como ser pensante importante para o grupo; compartilhar ideias, informações, reflexões e ações, de forma a compreender que quanto mais divergentes e desafiadoras, mais contribuem para o crescimento do grupo; acolher o outro de modo que ele sinta o sentimento de pertencimento ao grupo; ter autonomia e iniciativa, para que, de modo construtivo, possa emitir opiniões e críticas; estar comprometido, de forma que a participação tem que estar voltada para o coletivo; e avaliar atitudes e ações, com ética e respeito, com diálogo franco e aberto, para crescimento de todos do grupo.

Fusari enfatiza que o trabalho coletivo na escola deve estar voltado para a construção de um perfil de cidadão que, obviamente, não é neutro, mas vinculado a concepções de Educação e de Sociedade. É importante que a escola, através de seus agentes educativos, perceba o grande desafio de formar indivíduos integrados a uma coletividade com características históricas, políticas, econômicas e sociais comuns e que sejam capazes de enxergar a realidade, analisar, produzir, discutir, exigir, propor soluções para problemas da coletividade e atender também à individualidade.

Rosângela Nieto de Albuquerque é doutoranda em Educação, Mestra em Educação, Mestra em Ciências da Linguagem, psicopedagoga, pedagoga e professora universitária.

Referências bibliográficas

DUMONT, Louis. 1985. Do Indivíduo-fora-do-mundo ao Indivíduo-no-Mundo. In: O Individualismo: uma Perspectiva Antropológica da Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: Rocco. Cap. 1.

FUSARI, J.C. O Papel do Planejamento na Formação do Educador. São Paulo,

SE/CENP, 1988.

GEERTZ, Clifford. “Ethos”, Visão de Mundo e a Análise de Símbolos Sagrados. In: A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989, pp. 143–159.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um Conceito Antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

SAHLINS, Marshall. O “Pessimismo Sentimental” e a Experiência Etnográfica: Por Que a Cultura Não É um “Objeto” em Vias de Extinção. Parte I. Mana, v.3, n.1, pp. 41–73, 1997.

SIMMEL, Georg. O Indivíduo e a Liberdade”. In: Jessé Souza e B. Oëlze, orgs. Simmel e a Modernidade. Brasília: UnB, 1998, pp. 109–117.

SIMMEL, Georg. O Dinheiro na Cultura Moderna. In: Jessé Souza e B. Oëlze, orgs. Simmel e a Modernidade. Brasília: Editora UnB, 1998, pp. 23 a 40.

STOLCKE, Verena. Gloria o Maldición del Individualismo Moderno Según Louis Dumont. Revista de Antropologia. v. 44, n. 2, pp. 7 a 37, 2001

cubos