Edição 120

Matéria Âncora

O Recife acordou. Paulo Freire nasceu!

Targelia de Souza Albuquerque

O Recife acordou.

Paulo Freire nasceu!

Targelia de Souza Albuquerque

Século passado.

Recife, cidade lendária,

cidade dos frevos e dos maracatus.

Seus rios nascem separados,

mas se casam para formar o mar.

Recife das pontes, de tantas travessias.

Acendedores de lampiões!

Lua cheia, praia e casais enamorados.

Recife dos belos casarões.

Homens de casaca e cartola,

mulheres brancas

com brilho nos vestidos

de seda e renda.

Poder dos altos comerciantes.

Caricaturas da nobreza.

Recife das contradições.

Recife das mulheres negras,

serviçais dos ricos.

Herança da escravidão.

Recife das palafitas, dos casebres e mocambos.

Recife das belezas, das dores, dos cantadores.

Recife das convivências e conveniências.

Fantasias e opressão.

Em uma manhã de segunda-feira,

dia 19 de setembro,

o Recife acordou!

Uma estrada – Encanamento.

Um bairro – Casa Amarela.

Uma casa – 724.

Entroncamento de vidas!

Ronda a família,

o adoecimento paterno.

Seu Joaquim, o pai, na cama.

Edeltrudes, dona Tudinha, a mãe,

no parto.

Nova história começa.

Um choro forte;

o menino nasceu!

Seu nome, Paulo Freire.

Vida que gera vida.

A família aumentou.

Dos quintais, a terra, a sombra, o sol.

Brincadeiras dos irmãos,

a observação do menino.

O cheiro das mangas-espada e rosa.

Como uma manga tem nome de flor?

Jacas, pitangas e frutas-pão.

Bananeira e banana assada.

Uma sobremesa preferida!

Os pássaros, o cão Joli e o gato esperto

fazem moradia no quintal.

Memórias de uma meninice feliz.

Mãe, pai, filho caçula,

uma irmã e dois irmãos.

Família e natureza.

Leitura de vida, leitura de mundo.

Da terra, da natureza, da família,

leituras de mundo brotam.

Leituras de mundo

antes da leitura das palavras.

A terra, seu quadro de giz.

Gravetos escrevem palavras,

palavras vividas.

Seu universo vocabular:

palavras – brinquedo,

palavras – natureza,

palavras – sonhos de criança.

Paulo Freire

aos quatro anos, a leitura;

aos seis, a escrita.

A alfabetização ia se fazendo.

As alpercatas de fradinho

nos pés de um pequeno caminhante.

A primeira escola,

um lugar amado,

desejado, jamais esquecido.

A escola de dona Eunice.

O sabor de escrever sentenças.

O amor e a admiração.

Ah! Minha bela e jovem professora!

Professora de mentes e corações.

Minhas paixões!

Pelos livros, pelas sentenças, pelas leituras.

Leituras desbravadoras de mundos.

Saudades de dona Eunice

que me ensinou a aprender e a ensinar.

A amar — um novo jeito de ler e escrever.

1929 – veio a crise mundial!

A queda da bolsa de Nova York.

Depressão social.

A pobreza bate à porta.

Não tem como impedir.

Ela invadiu a casa

da família Freire.

Hipoteca; casa perdida.

A mudança, inevitável.

Paulo Freire, com dez anos,

sofre a dor da despedida

do mundo de criança,

das amizades e coisas preferidas.

Primeira separação.

Palavras não dão conta

de expressar tanta emoção.

Não há fala para a dor da partida.

Pela estrada, na boleia do caminhão,

seguem o pai e o menino

calados, juntos na lida.

No bairro do Aleixo,

o caminhão pede força

para subir o Morro da Saúde,

em Jaboatão dos Guararapes,

cidade que lhes deu guarida.

Uma nova vida!

A rua convida à vida,

chama o menino a correr.

A jogar futebol

e se aventurar.

A investigar novos quintais.

A fazer amigos e construir novas histórias.

Paulo Freire se transforma.

Adolescência em Jaboatão dos Guararapes.

Contradições!

Descobertas deliciosas!

Ah! Que lindas as lavadeiras do rio!

A sexualidade se expande

enquanto a lucidez

começa a vir à tona.

A compreensão

da exploração do trabalho humano

das mulheres trabalhadoras.

Beleza nas roupas coloridas,

no curso das águas,

nas batidas das pedras.

Roupas lavadas,

corpos desejados e explorados!

Paulo Freire:

consciência de si,

consciência do mundo.

Aos treze anos,

o luto. Morre o pai.

Chora o menino.

Dor profunda.

A realidade chega pesada.

A fome entra nos corpos,

ameaça as mentes,

destrói almas.

O menino testemunha

humilhações sofridas pela mãe,

em busca do alimento

para matar a fome da família.

A revolta e a reviravolta.

Os estudos precisam prosseguir.

O trem dá partida à cidade do Recife.

Muitas dificuldades; muita coragem.

Não! Não!, grita a vida!

Sim! Sim!, pronuncia a mãe,

de dentro do peito; aguerrida.

Nova conquista,

bolsa de estudos conseguida

no Colégio Oswaldo Cruz.

Estudos, aprendizagens, conquistas.

O menino vira homem.

Conclusão do Curso Secundário,

Pré-jurídico, Faculdade de Direito.

Paulo Freire em construção,

novo olhar para a educação.

Paulo Freire – professor,

educador.

Ainda no Curso de Direito,

ele se enamorou, e,

em 1944, Paulo Freire casou.

Sua esposa, Elza Freire.

Amor, parceria, determinação,

fidelidade, diálogo, educação.

Fundamentos dessa união.

Paulo Freire, agora Doutor.

Novos rumos são tomados:

uma séria opção.

Decisão de vida.

Nada de advogado doutor.

Sim, professor-educador.

1947 – a vida seguindo ia.

Paulo Freire no Sesi.

Sesi, MEB, MCP, Ensino Superior.

Múltiplos engajamentos.

1955 – no Recife,

com dona Raquel,

o Instituto Capibaribe, fundou.

1958 – a Universidade do Recife.

Um concurso.

A tese: Educação e Atualidade Brasileira.

No Ensino Superior, entrou.

A Extensão Universitária, consolidou.

Recife, útero itinerante.

Tempos fundantes!

Da sua cidade natal,

Paulo Freire revolucionou.

Com alfabetização política,

do Recife a Angicos,

o Nordeste, transformou.

Família grande e amorosa.

Esposa e cinco filhos.

1964 – Recife testemunhou

golpe militar, assassinatos e prisões.

Entre grades,

72 dias Paulo Freire ficou.

Ao sair da prisão,

jamais desistiu.

E a luta continuou.

Para salvar a si e a família,

pelo direito de viver,

a partida,

o exílio.

Bolívia, Chile, Estados Unidos, Suíça.

Andarilho da Esperança.

Na África, participou:

Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe,

Cabo Verde e muito mais.

Projetos emancipatórios,

libertadores da nação.

1980 – ao Brasil,

Paulo Freire retornou.

“Vim para reaprender o Brasil.”

Com humildade,

Paulo Freire falou.

E, em São Paulo,

residência fixou.

Professor, educador, escritor.

Gestor em 1989–1991

na Secretaria Municipal de Educação

de São Paulo.

Tendo os pés no chão da escola,

com professores e professoras

dialogou e

a boniteza da escola criou.

Paulo Freire,

um homem de fé, irmão, camarada.

Escreveu uma nova História da Educação,

brasileira e universal,

indispensável a um projeto de nação.

Do Recife a cidadão do mundo.

Muito trabalho, desafios e conquistas.

Dos seus exemplos,

a educação dialógica

se corporificou.

Em sua pedagogia maior,

a Pedagogia da Humanização.

Uma articulação múltipla e sínteses,

da Pedagogia do Oprimido,

da Autonomia,

da Indignação,

carregadas da Pedagogia da Esperança.

02 de maio de 1997,

uma transitividade apenas.

Uma mudança de plano.

2012 – o Brasil legitimou

Paulo Freire,

Patrono da Educação Brasileira,

e uma dívida histórica pagou.

Resistências e lutas continuam

para defender e consolidar o seu legado.

2021 – cem anos de imortalidade.

Muita radicalidade:

por uma educação democrática,

dialógica, participativa,

antirracista e inclusiva,

a favor da autonomia, da justiça

do respeito e da liberdade.

Uma educação

dentro e fora da escola,

contra a discriminação

e qualquer forma de preconceito.

Radicalmente a favor da vida,

da formação plena.

Educação como prática da liberdade.

O Recife acordou.

Paulo Freire renasceu.

Na cidade, no Brasil e no mundo.

E a gente, com Paulo Freire,

gritou,

e a nossa voz ecoou:

Não às opressões.

Sim à autonomia, emancipação,

à “co-laboração” e liberdade.

Sim à educação,

à saúde,

à vacina,

à cidadania.

E, assim, a festa começou

para o povo esperançar.

Viva Paulo Freire!

Viva à vida!

Não queremos mais covas para mortes.

Como José Maria Pires,

do MST, falou:

“A cada semente que

germina na cova,

dá mais vontade de plantar”.

Queremos covas

para plantar sementes

de vida, de dignidade,

de justiça.

Queremos também

que todas as igrejas,

no seu badalar dos sinos,

anunciem que Paulo Freire não morreu,

seu legado vive em nós,

na escola, nas comunidades, nos movimentos sociais,

em diferentes espaços educativos,

acordando mentes e abraçando corações.

Targelia de Souza Albuquerque é Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), membro da Cátedra Paulo Freire, formadora do Centro Paulo Freire ‒ Estudos e Pesquisas, professora da Pós-graduação da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (Facho) e professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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