Edição 42
Espaço pedagógico
Por Uma Educação Indígena
Mutuá Mehimáku
Entrevista com Mutuá Mehináku
Michel Blanco
Eu entendi que, quando a gente descobre muita coisa que a gente não sabia, torna-se uma pessoa melhor. Melhor para entender os outros e o mundo.
Mutuá Mehináku
Escolha e predestinação. Sob essas duas forças, Mutuá Mehináku, 26 anos, fez-se professor. Descobriu a vocação decifrando números quando estudava Matemática na aldeia Cuicuro, sendo convencido por seu professor a fazer um curso preparatório para lecionar na aldeia. Mas o português, embora fosse o defl agrador de sua curiosidade na infância, ainda era um obstáculo. O apoio da família não só o convenceu, como deu-lhe convicção. Encontrou estímulo maior nas palavras de seu avô materno, Narro Cuicuro, quem considera seu primeiro mestre. Falecido em 2004 e velado no cerimonial do Kuarup um ano depois, Narro foi o primeiro xinguano a falar e ensinar português para os demais.
Mutuá trilha hoje outra margem da palavra: dedica-se ao ensino da escrita na língua caribe. Mas orienta seu caminho pelo legado humanista do avô. “Ele me ensinou a respeitar as pessoas porque, segundo ele, cada um é importante e tem seu lugar para ser importante.” Formado em Língua, Arte e Literatura pelo Terceiro Grau Indígena — programa de Ensino Superior resultado da parceria entre a Funai e a Universidade Estadual de Mato Grosso —, Mutuá é diretor da Escola Indígena Estadual Central Karibe – Comunidade Kuikúro. Filho de pai meinaco e mãe cuicuro, Mutuá é casado, tem dois fi lhos e busca uma educação indígena alicerçada na cultura tradicional e, ao mesmo tempo, integrada a tecnologias da informação.
MB: Narro, seu avô, foi o primeiro xinguano a falar português. Você, de certa maneira, faz um caminho inverso, dedicandose ao ensino da língua caribe. Como você vê isso?
Mutuá: Estou reforçando a atuação do meu avô, colocando no papel o que ele me ensinou. Ele foi grande companheiro do Orlando Vilas Boas no processo de demarcação e preservação de nossa terra. Foi o primeiro a aprender e ensinar o português, mas nem por isso deixou de defender nossa cultura. Eu quero continuar a luta dele. Quero devolver e fortalecer cada vez mais essa idéia de defesa da cultura do Xingu.
MB: Você e seu avô eram muito próximos?
Mutuá: Toda vez que eu voltava do curso [do Terceiro Grau Indígena], ele ia à minha casa perguntar o que tinha acontecido, o que eu tinha aprendido. Ele tinha grande expectativa de que eu iria aprender muito. Sempre falava da importância do estudo, da importância das pessoas e, assim, foi um grande amigo.
MB: Então seu avô foi o seu primeiro professor?
Mutuá: Sim, e foi um grande professor. Quando eu tinha 5, 7 anos, comecei a aprender português. Oralmente, meu avô repassava esse conhecimento para mim. Eu era uma criança curiosa, queria aprender português porque via alguém se expressando nessa língua e admirava. Aí pensava: “Será que algum dia vou aprender a língua portuguesa?”. A vivência com meu avô me incentivou muito a querer aprender cada vez mais. Depois, eu entendi que, quando a gente descobre muita coisa que a gente não sabia, torna-se uma pessoa melhor. Melhor para entender os outros e o mundo. Ele me ensinou a respeitar as pessoas porque, segundo ele, cada um é importante e tem seu lugar para ser importante.
MB: Por que você quis lecionar?
Mutuá: O meu sonho era ser dentista, só que não existia um projeto de formação de agente de saúde bucal aqui. Só depois de pensar bem, decidi participar do curso de formação de professores indígenas. Um professor de Matemática da Unicamp [Universidade de Campinas, em São Paulo], Pedro Paulo, veio à aldeia para assessorar outros professores indígenas. Ele disse para mim: “Você está adiantado na turma e poderia ajudar outros colegas que estão trabalhando aqui”. Foi então que, depois de falar com meus pais, eu tomei a decisão de participar do curso. No começo, eu não sabia o que era ser professor. Eu não sabia direito me expressar na língua portuguesa nem escrever muito…
MB: E hoje, o que é ser professor para você?
Mutuá: Professor é aquele que passa o conhecimento pensando em um futuro melhor. É aquele que educa as crianças, que dá felicidade a elas e a toda a comunidade. O professor ajuda na organização política da aldeia quando transmite às crianças e aos jovens aquilo que aprendeu com os mais velhos e com o mundo de fora. Ao mesmo tempo, também ajuda os mais velhos com aquilo que aprendeu em seus estudos.
MB: Você é um defensor de escolas nas aldeias. Como você avalia a educação indígena?
Mutuá: Quase tudo é uma novidade para nós. A escola só chegou na aldeia Cuicuro em 1994. Ainda somos cinco professores. A escola tem de ser melhorada em tudo. Para isso, é preciso um assessoramento técnico da Seduc [Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso] para a elaboração de um projeto político-pedagógico de 5ª a 8ª séries. Nós já temos o projeto de 1ª a 4ª séries reconhecido pelo governo do estado.
MB: No Xingu, as cidades estão cada vez mais próximas do Parque e muitos jovens têm contato intenso com a vida urbana. Qual seria o papel da escola nesse processo?
Mutuá: Até pouco tempo, muita gente ia para a cidade estudar. Até agora, ninguém da minha aldeia saiu para estudar, a gente tem ensinado aqui mesmo. Mas tem outros jovens que querem ir para a cidade. A gente precisa usar a educação indígena para ensinar e estimular os jovens a participarem mais da preservação da cultura. A escola indígena tem como papel fundamental manter viva nossa identidade e ampliar nossa cultura tradicional. É possível manter a cultura, mesmo com a proximidade das cidades. Nossa cultura está aí, viva. Como, hoje em dia, ações importantes da aldeia estão morrendo juntamente com os idosos, os donos das tradições, a gente pensou: “Por que que a gente não faz um registro da nossa cultura?”.
MB: Você está falando de um projeto que já existe, não é? Qual a intenção desse trabalho?
Mutuá: Se deixar todo o mundo morrer sem aproveitar essa sabedoria, no futuro a gente não vai ter mais a riqueza do conhecimento tradicional. Então, nós elaboramos um projeto junto com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para um trabalho de documentação. A idéia é capacitar os meninos para a produção de documentários sobre as danças, os rituais, os cantos e também para a publicação das nossas histórias. Com o uso da tecnologia, esperamos despertar o interesse das crianças por nossa tradição. Com o novo, a gente recupera o antigo.
MB: Desde quando vocês têm esse projeto? O que já foi feito?
Mutuá: O projeto começou em 2002, com a Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu e a UFRJ. Em 2004, conseguimos recursos através do PDPI [Programa Demonstrativo dos Povos Indígenas, ligado ao Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, o PPG7, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente] e fi zemos várias ofi cinas sobre cinematografi a. Filmamos junto com o pessoal da ONG Vídeo nas Aldeias. Já temos dois frutos: O Eclipse da Lua e Cheiro de Pequi. O primeiro vídeo é sobre as festas que o nosso povo fazia quando tinha eclipse. O segundo, em que fui o ator principal, é sobre a origem do pequi. [Segundo a lenda, o cheiro do pequi foi transferido, por um herói mítico, do sexo das mulheres para a fruta. Do pequi, os xinguanos extraem um óleo utilizado para embelezar e proteger a pele; a semente destacase como alimento cerimonial distribuído entre visitantes durante o ritual do Kuarup.] Agora, a gente está planejando fazer outro fi lme. Ainda não decidimos o tema. Pode ser sobre a origem do milho ou a origem do Kuarup. Estamos tentando o apoio fi nanceiro da Petrobras e pretendemos fazê-lo junto com o Vincent [Carelli, indigenista, documentarista e fundador da ONG Vídeo nas Aldeias]. Depois, a gente quer trabalhar sozinho e com outras coisas. Acho que já teremos alguma experiência. Além dos documentários, estamos construindo a Casa Cultural do Povo Kuikuro, onde vamos guardar todos os equipamentos e arquivar os materiais coletados.
MB: Em sua opinião, quais são os principais problemas do Xingu hoje?
Mutuá: Uma grande preocupação é com as cabeceiras
dos rios do Xingu. Nas que estão fora da terra indígena, há plantação de soja, criação de bois e de porcos. Na época da chuva, todos os agrotóxicos que o fazendeiro põe na soja escoam para cá. Além disso, temos grande preocupação com a construção de hidrelétricas, como a Paranatinga, que podem ameaçar os peixes, nosso principal alimento. Sou contra a construção da hidrelétrica. [A Paranatinga II é uma pequena central hidrelétrica que está sendo construída a cerca de 100 km da terra indígena, no Rio Culuene, um dos principais formadores do Rio Xingu. Leia Paranatinga II, na página 14.] A gente precisa ser mais bem informado e lutar na Justiça pelos nossos direitos. Além disso, temos de falar com fazendeiros para tomarem cuidado com as águas e procurarem outro meio de matar os insetos das plantações. O fazendeiro é nosso inimigo. O fazendeiro, o madeireiro, o garimpeiro. Estão todos de olho na nossa terra. Mas está bem claro que o maior problema é a extração de madeira. O próprio índio está abrindo a porta para as madeireiras.
MB: Como impedir a derrubada de madeira já que, como você aponta, há participação de indígenas?
Mutuá: A retirada da madeira é o que mais me entristece e é um problema que a gente tem de vencer. Houve reuniões aqui no Xingu para impedir isso, mas nunca tivemos resultado. O próprio índio está tirando essa madeira na região da Terra Nova [posto de vigilância em área de fronteira na porção sudoeste do Parque]. A gente tem de formar uma comissão junto com a Funai, a Polícia Federal e o Ibama e prender todos esses brancos que estão no Parque. Aqui no Xingu, há catorze etnias diferentes que precisam tomar uma decisão conjunta. Mesmo que seja índio, a gente tem de prender também, para ele ter consciência. Já existe um código fl orestal, mas que nunca é cumprido. Temos de fazer com que seja cumprido.
MB: Falando dos brancos… Além dos órgãos governamentais, o Xingu tem uma grande presença de ONGs e outras instituições. Como você vê isso?
Mutuá: Tem brancos que trabalham em instituições como o ISA e a ACT [respectivamente, as organizações não-governamentais Instituto Socioambiental e Amazon Conservation Team]. Outras instituições também querem trabalhar conosco, mas a gente tem de avaliar isso. Senão, vêm aqui, como no caso da ACT, e fazem o mapeamento das plantas medicinais para fazer biopirataria lá fora. Isso a gente não pode aceitar. A gente precisa ver se há realmente algum benefício e um interesse coletivo para o Xingu. Como jovem, tenho um olhar diferente em relação a isso, mas nem por isso eu descarto a opinião das lideranças. Sempre estou ao lado deles, aprendendo e ensinando, falando das coisas erradas e das coisas certas, porque esse é o meu dever dentro da aldeia. E sempre digo que sou contra instituições que não pensam em um futuro melhor para o Xingu.
MB: E a atuação da Funai?
Mutuá: A Funai está em Brasília [a administração regional do Xingu localiza-se na sede do órgão]. Hoje, aqui, você vê vários desconhecidos, como funcionários da prefeitura de Gaúcha do Norte, da Funasa [Fundação Nacional de Saúde] e muitos outros, que são pessoas mais novas que não têm o mínimo de veia para cuidar e respeitar os povos do Xingu. Muita gente fala: “Já que a Funai não ajuda, vamos trazer outras pessoas para trabalhar aqui”. Aqui quase não tem funcionário da Funai. A Funai precisa ser fortalecida, ter mais pessoal e mais recursos fi nanceiros. Sei das difi culdades, mas poderíamos fazer mais reuniões com a Funai e apresentar propostas para encaminhar ao Congresso Nacional. Aqui no Posto [Posto Indígena Leonardo Vilas Boas, que atende às aldeias do Alto Xingu], tem de ser formada uma equipe permanente. Assim, a Funai fi caria mais próxima da gente. Antigamente, a Funai vivia sempre presente, sempre junto com a gente. Hoje em dia, não é assim, só tem o chefe de posto. Falta gente.
MB: Tendo em vista as suas atividades, qual o seu grande sonho?
Mutuá: Meu grande sonho é formar minha primeira turma de alunos. Ver os alunos a quem eu ensinei praticando a cultura e valorizando a história, os mitos, as lendas. Tornar a escola um espaço de valorização da cultura. Ao mesmo tempo, quero ver as crianças aprendendo como o branco faz seu trabalho e constrói as leis. E sabendo quais os nossos direitos. Quero ver mais índios administrando suas escolas. O próprio índio tem de aprender a gerenciar e receber recursos para manutenção da escola e compra de material pedagógico. Eu quero que essa nossa unidade seja mais independente e que o índio seja gestor da escola. Ao mesmo tempo, a gente precisa ter um resultado bom e valorizar o nosso trabalho junto à comunidade para não precisar mais do branco trabalhando dentro da aldeia. Porque o branco não se acostuma com esse ambiente diferente. Aí ele sente falta de refrigerante, de ar-condicionado, de dormir na cama. Aqui ele dorme na rede, toma banho no rio e não se acostuma. Por conta disso, muitas pessoas já desistiram de trabalhar aqui na aldeia. É por isso que a educação é importante: o índio necessita ter condições para assumir postos e cuidar da sua comunidade, dos seus direitos.
Com o uso da tecnologia, esperamos despertar o interesse das crianças por nossa tradição. Com o novo, a gente recupera o antigo.
Mutua Mehináku Kuikuro é professor e presidente da Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu. Formou-se na primeira turma do Terceiro Grau Indígena da Universidade Estadual do Mato Grosso (2001–2006), com ênfase em Lingüística. Foi agraciado pelo Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação Ford, Instituto Carlos Chagas, devendo iniciar o mestrado em Antropologia no Museu Nacional, UFRJ, em 2009. É membro do projeto Documenta Kuikuro (DKK), coordenado por Bruna Franchetto e Carlos Fausto.
Revista Brasil Indígena. Ano III nº 03 julho/agosto de 2006. Funai.