Edição 55
A LEI Nº 11.645/08
Somos todos africanos
Leonardo Boff
Sempre que entram em crise, as civilizações começam a olhar para o seu passado buscando inspiração para o futuro. Hoje estamos no coração de uma fenomenal crise planetária que afeta todas as civilizações. Ela pode significar um salto rumo a um estado superior da hominização, bem como uma tragédia ameaçadora para toda a nossa espécie. Num momento assim radical, não é sem interesse sondar as nossas raízes mais ancestrais e aquele começo seminal em que deixamos de ser primatas e passamos a ser humanos. Ali deve haver lições que nos podem ser muito úteis. Hoje é consenso entre os paleontólogos e antropólogos que a aventura da hominização se iniciou na África, cerca de 7 milhões de anos atrás. Ela se acelerou passando pelo Homo habilis, Homo erectus, Homo neanderthalensis até chegar ao Homo sapiens, cerca de 100 mil anos atrás. Da África, ele se propagou para a Ásia, há 60 mil anos; para a Europa, há 40 mil anos; e para as Américas, há 30 mil anos.
A África não é apenas o lugar geográfico das origens. É o arquétipo primal, o conjunto das marcas impressas na alma do ser humano, presente ainda hoje como informações indeléveis, à semelhança daquelas inscritas em nosso código genético. Foi na África que o ser humano elaborou suas primeiras sensações, onde se articularam as crescentes conexões neurais (cerebralização), brilharam os primeiros pensamentos, fortaleceu-se a juvenilização (processo semelhante ao de um jovem que mostra plasticidade e capacidade de aprendizagem) e emergiu a complexidade social que permitiu o surgimento da linguagem e da cultura. Há um espírito da África presente em cada um dos seres humanos.
Vejo três eixos principais do espírito da África que podem significar uma verdadeira terapia para a nossa crise global.
O primeiro é a Mãe-terra. Espalhando-se pelos vastos espaços africanos, nossos ancestrais entraram em profunda comunhão com a Terra, sentindo a interconexão que todas as coisas guardam entre si. Mesmo vítimas da exploração colonialista, os atuais africanos não perderam esse sentido materno da Terra, tão bem representado pela queniana Wangari Mathai, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz por plantar milhões de árvores e devolver, assim, vitalidade à Terra. Precisamos nos reapropriar desse espírito da Terra para salvar Gaia, nossa Mãe e única Casa Comum.
O segundo eixo é a matriz relacional (relational matrix, no dizer dos antropólogos). Os africanos usam a palavra ubuntu, que significa força que conecta a todos formando a comunidade dos humanos. Quer dizer, eu me faço humano através do conjunto das conexões com a vida, a natureza, os outros e o divino. O que a física quântica e a nova cosmologia ensinam acerca de interdependência de todos com todos é uma evidência para o espírito africano. A essa comunidade pertencem os mortos. Eles não vão ao céu. Ficam no meio do povo como conselheiros e guardiães das tradições sagradas.
O terceiro eixo são os rituais. Experiências importantes da vida pessoal, social e sazonal são celebradas com ritos, danças, músicas e apresentações de máscaras, portadores de energia cósmica. É nos rituais que as forças negativas e positivas se equilibram e que se aprofunda o sentido da vida.
Se reincorporarmos o espírito da África, a crise não precisará ser uma tragédia. 3DDock
Leonardo Boff .Licenciado em Filosofia e doutorado em Teologia pela Universidade de Munique. Foi professor de Teologia Sistemática e Ecuménica em Petrópolis, no Instituto Teológico Franciscano, professor de Teologia e Espiritualidade em centros de estudo e universidades no Brasil e no exterior; foi professor-visitante nas universidades de Lisboa, Salamanca, Harvard, Basel e Heidelberg.