Edição 98

Matérias Especiais

Texto Base

Nesse tempo precioso de transformação, a Igreja no Brasil apresenta às comunidades uma realidade que pede atenção, mudança, conversão. A vida cotidiana é contínua transformação para que todos possam viver como irmãos. O Evangelho oferece a todos os cristãos a oportunidade de vida nova, de novas relações, de cuidados fraternos.

A experiência de estar exposto a situações de violência é relatada por um grande número de brasileiros. Não se trata de uma percepção isolada e meramente subjetiva. Os episódios de violência intensificaram-se e tornaram-se comuns também em cidades pequenas e médias, deixando de ser um fenômeno típico das grandes metrópoles. No entanto, sempre encontramos muitos lugares onde existe a preservação da harmonia e da paz ou onde foi construída uma vida pacífica e fraterna.

A violência direta é que chama mais atenção. Essa forma de violência acontece quando uma pessoa usa a força contra a outra. Mais de um agressor e mais de uma vítima podem tomar parte em tal evento. Porém, vemos crescer sempre mais formas coletivas e organizadas da prática de violência.

Nesta Campanha da Fraternidade, desejamos refletir a realidade da violência, rezar por todos os que sofrem violência e unir as forças da comunidade para superá-la. Vamos lançar um olhar também para os rumos e os impasses que, há décadas, vêm dominando as políticas públicas de segurança. Os índices da violência no Brasil superam significativamente os números de países que se encontram em guerra ou que são vítimas frequentes de atentados terroristas.

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Ações para superação da violência

“Todos desejamos a paz; muitas pessoas a constroem todos os dias com pequenos gestos; muitos sofrem e suportam pacientemente a dificuldade de tantas tentativas para a construir”I. Pequenos e cotidianos gestos testemunham como os valores do Evangelho são imprescindíveis para a construção de um mundo novo, sem violência. Eis o caminho para um agir que supera a violência e inspira a construção da paz.

Um agir que supera a violência tem como fundamento o Evangelho que aponta para a grandeza da vida e da beleza de viver. Testemunhar a beleza da vida e a graça de vivermos todos como irmãos! Essa verdade do Evangelho deveria ecoar em nossos corações, em nossas comunidades e em nossa sociedade.

A Campanha da Fraternidade deste ano nos convoca a viver a prática de Jesus no exercício da escuta, da saída missionária, do acolhimento, do diálogo, do anúncio e da denúncia da violência na dimensão pessoal e social. A lógica do amor é o único instrumento eficaz diante das ações violentas.

Pessoa, família e a superação da violência

Ninguém nasce violento. Contudo, a pessoa pode vir a ser violenta. O comportamento violento emerge como produto final, a partir da reciprocidade entre o comportamento da criança e o efeito desse comportamento sobre as atitudes dos adultos. Portanto, o comportamento violento pode ser aprendido na família e reaplicado socialmente em suas relações ao longo da vida.

Não somos nem conseguimos viver como pessoas isoladas. Precisamos uns dos outros para edificarmos a convivência humana. Esta condição favorece nossa prática relacional e também nos desafia, como sujeitos de nossa própria história, a cuidar do outro, ou seja, a fazer parte da história do outro. Nesta relação de cuidado, nosso jeito de agir, perdoar, amar, viver e ouvir contribui para a prática a ser desenvolvida pelo outro. Desta forma, o outro vive em mim e eu nele; juntos, compomos uma história.

A oração e a espiritualidade também são condicionantes para a superação da violência. Sua prática pode transformar comportamentos, ou seja, elas são parte do processo de conversão. A conversão, compreendida nas mudanças de atitudes e comportamentos, é a principal proposta que o período quaresmal nos oferece. Atentos a ela, somos encorajados a agir na formulação de políticas públicas que facilitem a mudança do comportamento pessoal e social das pessoas e da sociedade.

Cultura da fraternidade: não somos adversários, somos irmãos

2Ao se deparar com os excluídos que sobreviviam às margens da sociedade e com o sistema de opressão ao qual estavam submetidos, Jesus de Nazaré, com ternura e compaixão, anunciava, principalmente aos mais empobrecidos, o Reino de Deus. Ele os convidava para estar com Ele e, juntos, exigir daquele sistema social de opressão, justiça e igualdade de direito para todos. O anúncio por Ele assumido estava vinculado a ações concretas. Nelas, Jesus propõe mudanças estruturais ao sistema de morte ao qual os mais pobres estavam submetidos.

Pistas de ação concreta

Na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, a Igreja expressou de modo claro a relação que existe entre a missão que lhe é própria e a responsabilidade que ela tem de colaborar com a sociedade. É importante levar em conta a dimensão pessoal da superação da violência. A Igreja pensa que, por meio de cada um de seus membros e por toda a sua comunidade, pode ajudar muito a tornar mais humana a família humana e a sua história. Ninguém pode eximir-se de suas responsabilidades, imaginando que a violência sempre está no outro. É preciso que cada um se pergunte: “O que tenho feito para ajudar a construir uma cultura de paz?”. Para responder a esse questionamento, pode-se tomar vários caminhos, como:

Ter como critério o Evangelho, que revela as palavras, as motivações e o agir de Jesus;

É necessária a superação do conceito de justiça que diz que todo mundo deve pagar pelo que faz;

A misericórdia, a solidariedade e o desejo de superação devem ser os elementos que fundamentam a ação de todos diante da injustiça, da violência, do sofrimento, do conflito e da insegurança;

Ninguém deve pagar o mal com o mal, mas com o bem;

Renunciar a qualquer forma de violência;

Não se justifica colocar nas armas a solução para os conflitos humanos;

Criar novos relacionamentos, tendo como princípio a fraternidade e a necessidade de um projeto social comum, que seja causa de bens para todas as pessoas;

A solidariedade para com as vítimas da violência;

O respeito pela dignidade das pessoas e o engajamento na luta para que esta dignidade seja respeitada em todas as condições da vida humana;

A luta pela conversão pessoal e pela conversão de todos;

Promover uma cultura que respeite as diferenças, combatendo o preconceito e a discriminação;

Refletir nas famílias sobre o que contribui com a cultura da reconciliação e da paz, e sobre estratégias de solução;

Repensar a própria responsabilidade em relação à sociedade em temas, como: sustentabilidade, respeito aos direitos dos outros, liberdade religiosa, educação para a solidariedade, cuidado com os bens públicos;

Promover momentos para exercer o discernimento evangélico acerca do que ocorre na comunidade, bairro, cidade, e identificar situações de violência (pontos de vendas de entorpecentes, prostituição, tráfico de pessoas, pessoas em situação de miséria, fatos ocorridos com pessoas, famílias e outros);

Desenvolver a capacidade de diálogo com pessoas de outras denominações religiosas e de posições diferentes da sua.

Conquistas e experiências da comunidade eclesial na superação da violência

Justiça restaurativa

Nessa proposta de justiça, o ser humano passa a ser visto como uma pessoa que tem potencialidade e possibilidades. Nesse processo dialógico entre os envolvidos no conflito é possível expressar a dor e a certeza de reconhecimento, por parte do agressor, do mal cometido, bem como a responsabilidade e a reparação dos danos à vítima e sua reintegração na sociedade.

A motivação da fé vivenciada pela prática do evangelho, que potencializa o ser humano para lidar com suas próprias limitações, deve balizar as ações da cultura da paz proposta pela CF 2018. A esperança é a principal característica dos trabalhos pastorais da Igreja. Por mantê-la, mesmo nas situações de sofrimento e defender a dignidade humana e o direito à vida em todas as circunstâncias, inclusive como política pública, a Igreja tem contribuído significativamente para a superação da violência.

A religião com a espiritualidade leva à paz, já a religião sem a espiritualidade leva ao fundamentalismo, ou seja, à guerra. Portanto, ao propor uma espiritualidade que leva à superação da violência como ação concreta, a Campanha da Fraternidade 2018 indica a necessidade de que o período quaresmal seja de intensa conversão pessoal e social à cultura da paz.

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A sociedade e a superação da violência

Em uma cultura de paz, homens e mulheres são chamados a testemunhar o amor, e a sociedade para estabelecer a harmonia entre as relações de poder, que devem estar a serviço da vida humana. A existência de situações e práticas violentas é intrínseca às sociedades fragmentadas em classes sociais, nas quais as desigualdades sociais criam subcategorias de seres humanos. Portanto, as políticas públicas desenvolvidas no sistema capitalista possibilitam apenas o enfrentamento de alguns tipos de violência.

Em qualquer instância de controle social exige-se comportamento e atitudes éticas, ou seja, assumir uma missão em favor da humanidade, e não visando à promoção social. Desta forma, votar e defender a participação de pessoas éticas para atuar no controle social das políticas de combate, tratamento e prevenção da violência, além de ser um exercício de cidadania, é também um comportamento da fé cristã, principalmente em relação aos conselhos deliberativos, como é o caso do conselho de saúde em que a política de saúde sobre violência está formatada. Nele, os conselheiros deliberam sobre recursos e serviços a serem executados ou implementados nos municípios.

Pistas de ação concreta

Sabemos que a pobreza é uma das piores formas de violência que uma criança pode enfrentar, visto que tem impacto em sua vida da forma mais ampla possível. Pesquisas realizadas com crianças, do nascimento aos 14 anos, comprovaram, por exemplo, que bebês que mamaram no peito chegaram à adolescência com menos hipertensão arterial, diabetes e obesidade. O estudo demonstrou ainda o efeito dose-resposta: quanto mais aleitamento materno, menos as pessoas vão ter doenças, tais como diabetes tipo 2, hipertensão arterial, doenças renais, osteoporose, doenças cardíacas, colesterol alto e obesidade. Portanto, garantir um desenvolvimento pleno e saudável durante os primeiros 1.000 dias para todas as crianças deve ser uma realidade em todas as comunidades brasileiras, para que todas as crianças possam ter um desenvolvimento saudável e possam vislumbrar um futuro da mesma maneira.

A Igreja partilha da visão de um mundo onde nenhuma criança vai viver na pobreza. Age para promover o cuidado e a proteção no ambiente familiar, construir e apoiar políticas de combate às injustiças contra as crianças.

A violência doméstica e a lei Maria da Penha

A sociedade exige, há mais de 50 anos, que as mulheres estudem, trabalhem e sustentem suas famílias, com ou sem a ajuda do marido ou companheiro. Contudo, ainda é forte a cultura da prevalência masculina nos lares e relacionamentos, mesmo quando a mulher exerce a atividade profissional e colabora com o orçamento doméstico.

Para que seja evitada a violência, as mulheres e os homens devem adotar comportamentos de colaboração nos trabalhos domésticos, criando situações que favoreçam a demonstração de igualdade e companheirismo aos filhos para mudar a estrutura educacional e construir uma nova ideia no futuro a respeito da figura feminina nos lares.

Superar a violência no trânsito

Fazem-se necessárias medidas de superação de violência no trânsito, seja pela autoavaliação dos próprios motoristas (não dirigindo alcoolizados, não se distraindo no uso de aparelhos eletrônicos, respeitando a sinalização, entre outros), seja pela organização governamental no que toca à fiscalização do trânsito e preservação das vias. Para tanto, é importante instalar uma rede permanente pela paz no trânsito com a participação das entidades da sociedade civil e pública com o objetivo de definir ações emergenciais visando reduzir a violência no trânsito.

Fraternidade e superação da violência indica um caminho, uma abertura de veredas. Provavelmente, pequenos caminhos que desemboquem em uma estrada generosa, onde há lugar para todos conviverem. Um luar onde todos possam saborear o Evangelho e chegar à plenitude da vida. Os discípulos missionários são construtores e anunciadores da fraternidade. Estes continuamente oferecendo o perdão e a reconciliação. São mãos estendidas que oferecem a alegria de conviver e não receiam continuar estendidas nas dificuldades e agressões.

A Campanha da Fraternidade, abordando a realidade, nos provoca a sermos construtores da paz e gestores da fraternidade. Superar a violência é tarefa de todo cristão, pois recebemos o mandamento do amor como vocação e missão. Fomos em Cristo adotados como filhos e filhas, recebemos a dignidade filial (Gl 4,5). Superaremos a violência quando formos tomados pela paternidade de Deus e pela filiação em Jesus. Em Cristo, somos irmãos!

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I – Francisco. Mensagem para o 50º Dia Mundial da Paz, 2017.

Extraído de: CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Campanha da Fraternidade 2018: Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2017.

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