Edição 97

Matérias Especiais

Uma releitura da obra O Príncipe – Nicolau Maquiavel –

Apolinário da Cunha

A perspectiva filosófica da obra O Príncipe

O presente trabalho tem como objetivo conhecer, em linhas gerais, numa perspectiva filosófica, o conteúdo tratado na obra de Nicolau Maquiavel denominada O príncipe, cuja principal reflexão é sobre a ação política no contexto e na atmosfera italiana, local por excelência do desenrolar do olhar do mencionado filósofo, ao mesmo tempo em que procura fazer uma conexão com os principados atuais.

Durante as reflexões realizadas, serão apresentados alguns pontos da obra em abordagem, considerando seu contexto e sua atmosfera, ao mesmo tempo em que se procurará demonstrar a visão do filósofo italiano para sua época, num ligeiro paralelo e numa provocação aos modos políticos que chamaremos de principados dos tempos atuais. O referido trabalho se fundamenta numa reflexão filosófica da referida obra, numa releitura moderna, considerando os pontos e contrapontos do cenário político atual em que vive o mundo e, em especial, o Brasil. Concluiremos esta produção expondo alguns pontos relevantes que auxiliarão na reflexão política, bem como na observação do papel do príncipe, sem deixar de pensar na qualidade da cidadania que faz e sustenta ou não o principado contemporâneo e como o mesmo se encontra atualmente.

O príncipe, uma obra fantástica de Nicolau Maquiavel, nos seus 26 capítulos, desdobra e apresenta algumas posturas a serem observadas pelo príncipe que deseja se manter no poder. Maquiavel se tornou tão influente que do seu nome derivou um adjetivo que caracteriza pessoas que buscam atingir um fim sem se importar com os meios. Por isso é que se diz que certas pessoas são maquiavélicas, para dizer que são habilidosas e calculistas ou mesmo perigosas em suas astúcias para chegar ao pretendido, especialmente no que se refere a poder, não importando os caminhos percorridos. Porém, convém destacar que o mesmo Maquiavel, dentre outros aspectos, falou e aconselhou o príncipe não somente sobre como ele deveria fazer para conquistar o poder, mas especialmente e o mais relevante: sobre como nele se manter. Esta é, portanto, a parte mais destacável e crucial na obra supramencionada.

Nascido em Florença, Maquiavel (1469 –1527) foi o mais importante historiador, filósofo, dramaturgo, diplomata e cientista político italiano do Renascimento. Porém, é na condição de filósofo que se pretende enfatizar e refletir neste trabalho sobre este tão espetacular personagem que ainda hoje influencia e haverá de influenciar, de alguma forma, muitas gerações futuras.

Quem é o destinatário da obra?

7_releitura_da_obraA obra de Maquiavel é destinada a um príncipe, que esteja governando um estado, e o autor o aconselha sobre como manter o governo de forma eficiente — embora se deva destacar que alguns estudiosos afirmam que, na verdade, de forma geniosa, Maquiavel estava direcionando suas palavras aos súditos, como que lhes abrindo os olhos para a forma inerte em que se encontravam enquanto estavam sendo governados, denunciando a crueldade e a dureza do príncipe em relação aos governados, para assim quem sabe despertar nos submissos uma revolta tal que fosse capaz de gerar um príncipe mais próximo dos sentimentos do povo. Quem sabe, do seu próprio meio, honrando sua história. Que fosse capaz de fato de representar seus anseios. Por isso, a mencionada obra é dedicada a Lorenzo de Médici, figura que Maquiavel revela sem subterfúgios no último capítulo que desejaria — por causa de suas tantas virtudes, especialmente pela sensibilidade com a qual sentia as aspirações do povo — que governasse a Itália, depois de tantos desenganos e desapontamentos, como, aliás, se vê ainda hoje em muitos reinos da política atual. E diz então o filósofo, referindo-se ao seu grande sonho político: “[…] agora, quase sem vida, a Itália espera por quem lhe possa curar as feridas e ponha fim à pilhagem na Lorbandia, à rapacidade e à extorsão no reino de Nápoles e na Toscana, curando-a das chagas abertas há tanto tempo. Pede a Deus que lhe envie alguém capaz de libertá-la dessa insolência, dessa bárbara crueldade”. O que faz então lançar-se um questionamento ao cenário dos reinos de hoje. Será que não existem também reinos quase sem vida na atualidade social, precisando ser curados das feridas geradas pela pilhagem, pela corrupção e tantos outros males sociais, estes oriundos de inescrupulosos príncipes que fazem da política um negócio lucrativo em vez de serviço que possa promover a dignidade do homem?

8_releitura_da_obraMaquiavel, parecendo notar certa oportunidade de mudança naquele principado, ainda abertamente menciona: “Não se deve, portanto, deixar que se perca esta oportunidade: a Itália, depois de tanto tempo, precisa encontrar seu libertador”. E, completando sua revelação sobre Lorenzo de Médici, expressa: ”Que vossa ilustre família possa, portanto, assumir esta tarefa com coragem e as esperanças inspiradas por uma causa justa, de forma que, sob sua bandeira, nossa pátria volte a se levantar”. Fato que terminou acontecendo. Lorenzo de Médici fazia parte de uma das famílias mais influentes e poderosas da Itália. Era muito eloquente e possuía o sentimento de seus valores. Conviveu desde cedo com outros artistas e intelectuais, que terminaram despertando nele o interesse pela filosofia e pelas belas artes, tornando-se cada vez mais um homem culto, sensível, sofisticado e amado pelo povo, características que tanto faltam aos príncipes que se conhecem hoje. Ora, se boa parte dos príncipes de hoje verdadeiramente não gostam nem de educação de qualidade — porque certamente esta liberta e destampa a visão do povo, que passa a enxergar mais além de sua ignorância, podendo questionar a forma de governar do príncipe —, muito menos gostarão tais príncipes de outra coisa que não seja o negócio lucrativo da política, cuja matéria-prima é o voto mal refletido e, portanto, disponibilizado aos negociantes sem qualquer cuidado. Tal é a ignorância dos votantes que nem sabem do poder que têm, pois ignoram sua própria cidadania, são miseráveis acostumados a patrocinar e manter os disparates do príncipe, que com os mesmos jargões chega sucessivas vezes ao cume do principado, do poder, pela incapacidade dos súditos de questionar a relação da ação do príncipe e os deveres e direitos reais dos governados.

Não se deve, portanto, deixar que se perca esta oportunidade: a Itália, depois de tanto tempo, precisa encontrar seu libertador.

A atmosfera de O Príncipe

O que ocorre na atmosfera da obra de Maquiavel é que Lorenzo governou Florença com grande sabedoria, causando bem-estar naquela cidade, o que lhe deu muita fama entre os demais governantes, reunindo grande apoio dos mais pobres, instituindo, por isso, um poder quase absoluto, exatamente pela capacidade do mencionado príncipe de lidar com as questões sociais, especialmente aquelas relacionadas ao povo pobre, excluído e marginalizado de sua época, além de desenvolver intensamente a cultura ao atrair, para seu governo e sua corte, filósofos, poetas, pensadores e artistas, criando assim um ambiente de constante animação e esplendor em Florença, conforme o desejo de Maquiavel. Fato que infelizmente pouco se vê nos principados atuais, pois a principal mola que move certos poderes contemporâneos é o lucro pelo lucro, que faz continuar o poder pelo poder, causando uma ligeira sensação de que todos os atos ilícitos praticados por tais príncipes e sua caterva valem muito a pena. O que, em muitos casos, infelizmente é uma dolorosa e angustiante verdade.

A pretensão deste trabalho

9_releitura_da_obraO presente trabalho pretende fazer uma releitura dos pensamentos de Maquiavel, buscando contextualizá-lo de alguma maneira na política atual brasileira, visto que em muitos rincões, tal qual a Itália à época de Maquiavel, precisa-se urgentemente de libertadores e de príncipes menos cruéis e mais sintonizados com o povo e seus anseios. Pois se verificarmos, com uma crítica mais aguçada, essa relação entre governos e governados em todas as instâncias de poder nos tempos atuais, notaremos uma pífia qualidade neste aspecto; o governado parece acostumado a ser aquele que elege descompromissadamente o governo e pronto, limitando-se a, de quando em quando, tecer simplórias observações ao então príncipe eleito. Tudo termina com o final da campanha política, restando aos que votaram equivocadamente passar os próximos anos amargando sua má e desastrosa decisão política, a depressão pós-campanha (DPC). Quanto aos demais, estes também sofrerão igual infortúnio. Somente terão algum privilégio aqueles que Maquiavel sabiamente nomeia como bajuladores, dos quais nenhum principado está isento, nem hoje nem nunca, pois são estes os encarregados de iludir o príncipe de que tudo está muito bem, sem nunca discordar do mesmo que, esbaldado na ilusão do poder, pensa ser assim mesmo e não deseja nem por perto aqueles que lhe poderiam dizer a verdade, pois seria uma ameaça ao seu reinado de mentiras e ilusões que o deixa em estado permanente de alucinação e delírio. Tal é o poder do poder dado ao príncipe despreparado, cuja ilusão ludibriou sua mente.

O príncipe deve violar a palavra e todas as regras de fé, caridade, humanidade e religião, embora as louve em palavras, porque os homens admiram a fachada da virtude e não se importam de ser iludidos pelos poderosos.

A política para Maquiavel

Para Maquiavel, a política era uma única coisa: conquistar e manter o poder ou a autoridade. E apenas uma coisa verdadeiramente interessava para a conquista e a manutenção do poder: ser calculista. Para muitos príncipes atuais, no entanto, manter-se no poder parece insustentável, não por não serem calculistas — ao contrário, alguns o são até demais —, mas porque os tempos são outros, e o príncipe de Maquiavel não contava, por exemplo, com os avanços cibernéticos, sobretudo das chamadas redes sociais, onde tudo se propaga na mesma velocidade em que acontece, às quais os príncipes de hoje estão sujeitos. Fato que fez da democracia hodierna algo mais ágil. As pessoas podem facilmente mobilizar-se em prol do que quiserem, e isso precisa ser considerado.

Muitos príncipes estão dando seus últimos suspiros. Eis porque muitas ações que acontecem no mundo real nasceram em apenas alguns minutos nesse mundo tão poderoso que são as redes sociais eletrônicas. Ademais, o que Maquiavel falou a respeito da manutenção do poder pelo príncipe, não o disse de forma aleatória, mas considerou exatamente o que este mesmo príncipe deveria praticar — o que parece que muitos “príncipes” atuais, considerando sua embriaguez pelo poder e pelos negócios lucrativos advindos daí, não estão nem um pouco dispostos a fazer. Especialmente quando se refere a qualquer tipo de moral ou ética. Aliás, Maquiavel afirmava que todo julgamento moral deve ser secundário na conquista, consolidação e manutenção do poder, e a esse preconceito muitos dos “príncipes” de hoje aderem com observação ímpar e extrema; em alguns casos, com fanatismo doentio.

10_releitura_da_obraBom seria mesmo se o povo, especialmente os que têm habilidade com as redes sociais eletrônicas, conhecesse a mesma fonte, a mesma arma de argumentos de Maquiavel. Certamente nunca mais se teria príncipes incompetentes, e quem sabe assim o povo seria um príncipe, e então poder-se-ia dizer o seguinte pensamento também de Maquiavel: “Ó príncipe, isto é, o povo, tem de ser como a raposa e o leão porque o leão não sabe se proteger das víboras nem a raposa dos lobos”, já que aquele outro príncipe que não é o povo leva também tão a sério e faz o que igualmente diz a seguir Maquiavel: “O príncipe deve violar a palavra e todas as regras de fé, caridade, humanidade e religião, embora as louve em palavras, porque os homens admiram a fachada da virtude e não se importam de ser iludidos pelos poderosos”. Admiram o êxito e, se a aparência for boa, não buscam a realidade que está por detrás (cap. XVIII). O que tem de príncipes altamente religiosos e cuidadosos com o povo, nem que seja apenas enquanto estão em campanha! “A massa é conquistada com aparências e êxito.”

Será que é assim ainda hoje? Não obstante, Maquiavel na sua mais famosa obra, paradoxalmente expressa vários conselhos e fala de uma força excepcional capaz de derrubar o príncipe. Que força seria esta e de onde surgiria tal energia? O povo sabe e conhece muito bem esta força que vez por outra se manifesta de alguma forma. Maquiavel mostra no capítulo III da mencionada obra que o povo tem sempre o desejo de mudança, desejo de melhoria; mas as pessoas, segundo o filósofo, mudam com grande facilidade de governantes esperando tal mudança, que, no pensar de Maquiavel, é sempre para pior. Traduzindo para os tempos atuais, talvez pela qualidade da matéria-prima do poder democrático. A saber, o voto; que é dado, vendido ou trocado e lá em cima barganhado, como mercadoria; tornando o príncipe cada vez mais poderoso e principalmente mais rico, pois esta é a metadorsal de quem aspira ao poder, a fim de que, a cada quadriênio que volte ao povo que ainda não sabe ser príncipe, o engane com mais profissionalismo e requinte, com ferramentas cada vez mais sofisticadas e habilidosas.

11_releitura_da_obraHá de se dizer que basicamente dois vícios acometem o príncipe de hoje: o poder e o mais ter, e ao povo dois vícios o acompanham também: a ingenuidade e a falta de envolvimento, não necessariamente nesta ordem. Observou em certo momento Maquiavel: “Note-se que é preciso tratar bem os homens ou então aniquilá-los. Eles se vingarão de pequenas injúrias, mas não poderão vingar-se de agressões graves; por isso, só podemos injuriar alguém se não temermos sua vingança”. Talvez Maquiavel dissesse hoje: “Se o príncipe pode maltratar seu povo, seu povo pode vingar-se pelo voto cada vez mais lapidado na próxima eleição”. Se um erro na escolha do príncipe ocorreu, procura-se consertar na próxima vez e continuar o progresso, sobretudo do voto, da participação, do envolvimento.

Se o povo conseguir ser cada vez mais crítico, perceberá que os ensinamentos de Maquiavel nos mostram que o príncipe, sempre mais que tudo, deve manter o povo inconsciente, enganados, pensando que tudo está bem e de que o Príncipe é bom; quando este não pode dar essas impressões ao povo, segundo Maquiavel, o príncipe aniquila impiedosamente este mesmo povo para que seu poderio continue, pois, se não for assim e tão somente assim, o povo se revoltará, derrubando–o na primeira oportunidade, sendo igualmente impiedoso, nesse sentido. Em alguns principados, isto já está acontecendo, alguns poderes já cheiram mal.

Há de se dizer que inteligente é o príncipe que sempre procura estar bem com seu povo, pois este último, tendo consciência ou não, é sempre a força maior; apesar de sempre ser a classe inferior. O que seria de um reino sem povo? Quem pagaria os tributos? Quem trabalharia para sustentar os luxos e os desatinos do príncipe, que, aliás, em alguns lugares são crescentes, tanto quanto um empreendimento, um negócio bem lucrativo? Quem seria governado? O príncipe só é príncipe quando tem a quem governar, mas há, nos tempos atuais, príncipes que simplesmente são ignorados pelo seu povo e apenas cumprem mandatos sem fazer política de verdade. Muitos destes chegaram ao poder, como menciona o capítulo 7 desta mesma obra, somente por troca de dinheiro ou então pelo carisma ou graça alheia, porque ele mesmo não possui nenhuma. Maquiavel alerta que com muita dificuldade alguém se mantém no poder, a não ser que, conforme já foi dito, a pessoa que chegou lá, tenha tanta virtude que saiba conservar o que a sorte lhe concedeu tão subitamente. Fato que não ocorre com tanta frequência em alguns principados atuais, e muitos destes “reinos”, já cheiram a ruínas, cujo reerguimento é simplesmente impossível pela carência extrema de raízes, pois estas não foram de nenhuma maneira a preocupação do príncipe desatinado.

As maneiras de se chegar ao poder

Se certos príncipes almejam o poder, mas não possuem os requisitos necessários para ascender a tal posto, evidentemente que somente pela traição ou pelo crime poderiam chegar ao cargo pretendido. Maquiavel cita dois exemplos de pessoas que se tornaram príncipes por meio do crime. O primeiro foi o de Agátocles, o siciliano que se tornou rei de Siracusa tendo começado em situação das mais baixas e abomináveis. Filho de um oleiro, teve sempre vida criminosa. Não obstante, não se pode chamar de valor o assassínio dos seus compatriotas, a traição dos amigos, a conduta sem fé ou piedade. Destaca-se que estes foram apenas os métodos que o levaram ao poder, mas não à glória. Poder e glória nem sempre se equivalem. A desumanidade e crueldade bárbara, juntamente com as atrocidades incontáveis que praticou, especialmente para chegar ao poder e nele se esbaldar, certamente não permitem nomeá-lo entre os homens mais famosos. Pouco se sabe sobre o tirano Agátocles, além de suas tiranias. Depois de sua morte, seus bens foram confiscados; e a democracia, restaurada. Será que ainda há príncipes assim na política atual?

Maquiavel diz que a natureza dos povos é lábil, isto é, pouco estável, que escorrega e cai sem muito trabalho: é fácil persuadi-los de uma coisa, mas é difícil que mantenham sua opinião.

12_releitura_da_obraApós tantas traições e tão grande crueldade que o fizeram ter êxito na conquista do poder, Agátocles, ressalta Maquiavel, usou da crueldade apenas uma vez: para chegar ao poder. Quando chegou lá, foi diminuindo sua crueldade de modo a ser querido por seu povo. Ao contrário de certos príncipes dos tempos atuais, que não somente gostam de ser cruéis, como fazem progredir sucessiva e ininterruptamente tanto sua crueldade pessoal quanto sua fome de poder e paixão desenfreada pelo dinheiro, de modo que a política passou a ser um meio (muito) lucrativo de fazer negócio, de vender, trocar e comprar. Os que “governam” são os mesmos que fazem negócio com o que é do povo. Isto é, desviam para si o que seria para todos. Em tese, a política não deveria ser um meio lucrativo, mas não há quem não pense primeiro em seus negócios e depois em seus negócios novamente para finalmente criar meios e estratégias que pareçam ao povo — repito, que ainda não aprendeu a ser príncipe — que estão fazendo política, quando, na verdade, esta é apenas uma pequena parte do grande negócio, que infelizmente o povo não consegue nem imaginar, quanto mais entender e acessar. Sobre isso, Maquiavel diz que a natureza dos povos é lábil, isto é, pouco estável, que escorrega e cai sem muito trabalho: é fácil persuadi-los de uma coisa, mas é difícil que mantenham sua opinião. E que convém ordenar tudo que, quando não mais acreditarem, se lhes possa fazer crer pela força.

O desejo maior de Maquiavel

Por fim, o desejo de Maquiavel fica bem explícito, finalizando sua obra, no capítulo 26: a libertação de sua Itália. Diz ele, dentre outras coisas: “Agora, quase sem vida, a Itália espera por quem lhe possa curar as feridas e ponha fim à pilhagem na Lombardia, à rapacidade e à extorsão no reino de Nápoles e na Toscana, curando-lhe das chagas abertas há tanto tempo.” E pede a Deus que envie alguém capaz de libertá-la dessa insolência, dessa bárbara crueldade. Seu desejo ainda é que Lorenzo de Médici se torne soberano e reine com êxito na Itália, e finaliza dizendo: “Que vossa ilustre família possa, portanto, assumir esta tarefa com coragem e as esperanças inspiradas por uma causa justa, de forma que, sob sua bandeira, nossa pátria volte a se levantar”. Ao que faz compreender que, assim como a Itália de ontem, muitos principados de hoje estão sendo surrupiados por seus príncipes inescrupulosos, que, por um acaso qualquer, chegaram onde estão e daí jamais desejam sair. Visto que há príncipes que, por suas inescrupulosas formas de ser, nunca o seriam, não fossem alguns fatores simplesmente incompreensíveis: o oportunismo visualizado por estes na vacância deixada pelos realmente virtuosos, e o somado ao desinteresse de quem queira tornar-se novo príncipe.

Dito de outra forma, enquanto o virtuoso e bom cidadão não assume a vaga social no reino, visto que não carrega em si interesse algum para a ação política, os oportunistas e trapaceadores disfarçados de príncipes assumirão com toda a certeza tal vaga, que jamais seria assumida por eles, não fosse o medo ou a indiferença dos verdadeiros vocacionados ao principado. Assim, estando à espreita, aquele que nunca seria príncipe torna-se com facilidade pela oportunidade exageradamente concedida. E necessário se faz dizer que todo principado tem o príncipe que merece e que a qualidade do material que torna e mantém o príncipe faz toda a diferença. Quantos principados atuais encontram-se como a Itália observada por Maquiavel! Porém há de se dizer: os poderes são voláteis e facilmente escapam daqueles que os querem deter. A forma mais rápida de findar qualquer poder é desarmonizando governo e governados. O tempo passa, mas não há quem se esqueça disso. Sábio é o príncipe que sabe que o poder que por ele é exercido não lhe pertence e que o verdadeiro poder é serviço e bem comum, e não lucro. Quando será que nascerá um príncipe assim, capaz de fazer a verdadeira política, e não negócios escusos na política?

Nesse aspecto, assim como Maquiavel apreciava o tempo, os cidadãos atuais devem fazer valer igualmente as circunstâncias do presente rumo a tais mudanças necessárias no grande reino, que é a sociedade, do qual fazemos todos indistintamente parte. Afinal de contas, fazer política não é fazer negócios ou colher privilégios, e sim participar ativamente dos acontecimentos sociais aqui e agora. As sucessivas campanhas políticas deveriam servir para que os cidadãos tivessem a oportunidade de refletir sobre o que realmente significa participação coletiva e qual o valor-poder do voto no reino chamado democracia.

Os tipos de mente

13_releitura_da_obraNo capítulo 22, Maquiavel distingue três tipos de mente: a primeira é aquela que compreende as coisas por si; a segunda compreende as coisas demonstradas por outrem; a terceira nada consegue discernir. Nem sozinha nem com ajuda dos outros. E então Maquiavel conclui dizendo que: o primeiro tipo é o melhor de todos; o segundo também é muito bom, enquanto o terceiro, de nada serve, é inútil. De que tipo será a mente de muitos dos conhecidos príncipes atuais e/ou de seus ministros? Certo é que adestrar-se a ponto de amadurecer seja qual for a mente que se tenha demanda tempo. Aliás, o tempo era para Maquiavel um elemento indispensável ao príncipe, tanto que dizia ele: “O tempo vai determinar como cada príncipe deve agir, contudo deve-se agir no tempo certo e sempre preparado para quando a sorte variar. O príncipe deve ser impetuoso e cauteloso com a sorte”. Porém, qual príncipe em meio aos inebriantes poderes, que julga serem seus, pensará em tais conselhos? Seria a mesma coisa de se dizer a alguém que muito aprecia vinho: “Amigo, já está bom, convém que você pare agora!” E, depois de sucessivas outras garrafas, este ainda desejar beber tantas outras, pois já está tão inebriado que somente isso faz sentido. Nada mais.

O segundo exemplo trazido por Maquiavel de como chegar ao poder pelo crime é o de Oliverotto de Fermo, que com tamanha crueldade chegou ao poder, e lá se manteve cruel, o que fez com que pouco tempo depois este fosse derrubado do poder e morto por César Borgia. O príncipe deve sempre agir pensando no povo, pois na verdade é o povo quem detém o poder e a força. Com um monarca cruel, o povo se torna amedrontado e injuriado, acabando por se reunir e destruir seu poderio. Porém, quando os benefícios vêm, o povo se sente feliz e quer bem ao monarca, o que diminui consideravelmente a possibilidade de conspiração. Ademais, deve o príncipe nas épocas convenientes do ano, distrair o povo com festas e espetáculos. Destaca-se que neste ponto os príncipes de hoje são bem eficientes e muito engenhosos, considerando que em muitos reinos há mais festas do que cuidados reais com o povo. Fala-se aqui daqueles minimamente básicos que são sempre postergados. A balbúrdia das festas que ensurdece parece ser a mesma que anestesia e faz o povo esquecer-se do que lhe falta. Esta é, portanto, uma estratégia fácil e barata dos príncipes inescrupulosos para ganhar o povo.

Quanto mais barulho, mais povo aparentemente contente e o príncipe também, pois é neste ínterim que o mesmo planeja ao pé de orelhas seus atos truculentos em prol de si mesmo. Bem que o povo deveria aprender a fazer política de verdade em vez de aceitar ser apenas um bolo feito de massa que é mexida e manobrada conforme o desejo dos grandes, que fazem sempre das migalhas a parte do povo. Convém então lembrar que: “ O principado é constituído ou pelo povo ou pelos grandes, conforme uma ou outra destas partes tenha oportunidade: vendo os grandes não lhes ser possível resistir ao povo, começam a emprestar prestígio a um dentre eles e o fazem príncipe para poderem, sob sua sombra, dar expansão ao seu apetite; o povo, também, vendo não poder resistir aos poderosos, volta a estima a um cidadão e o faz príncipe para estar defendido com a autoridade do mesmo”.

A relação entre governo e governados deveria ser sempre harmoniosa, pois sempre o que se deve contar para o príncipe é o que seus súditos dizem, pensam e sentem por ele. Se o povo sente ódio ou desprezo e, ainda por cima, não o teme, o perigo é iminente, e seu poder será perdido facilmente. É notório e ao mesmo tempo lamentável que alguns príncipes atuais não levem isso muito a sério e façam tudo de acordo com seus pensamentos inebriados pelo poder, sem preocupar-se com as consequências que certamente virão, cedo ou tarde; muitas destas, em ocasião em que o príncipe esteja despreparado e sem o prestígio ou os poderes de antes que o mantinham aparentemente forte, mas agora, sem gozo algum, terá que enfrentar todos os frutos brotados de cada semente plantada outrora, quando erroneamente imaginava poder tudo. O maior desatino de um príncipe é imaginar poder tudo todo o tempo.

Apolinário da Cunha é graduado em Filosofia – UFPI. Graduado em Educação Física – UESPI, pós-graduado em Atividade Física e Saúde – ISEPRO, pós-graduado em Docência do Ensino Superior – IFPI. Diácono da Diocese de Parnaíba, professor de Filosofia no Colégio Maria José – Piripiri.
E-mail: apolinario.cunha@bol.com.br

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