Edição 21

Matérias Especiais

A Imaginação Infantil e as Histórias da TV

Gilka Girardello

Uma história, a primeira história escrita por Salman Rushdie nos esconderijos onde ele teve de se refugiar depois de ter sido condenado à morte pelo fundamentalismo islâmico.

É a história de Haroun, um menino cujo pai era um famoso contador de histórias do mítico país de Alefbey. Um dia, a mãe de Haroun fugiu com o vizinho, um burocrata medíocre que vivia criticando o trabalho do marido dela. “Pra que servem essas histórias, que nem sequer são verdade?”, dizia ele. O menino ficou revoltado com a fuga da mãe e acabou repetindo essa pergunta ao pai dele, Rashid, e este, com o coração partido, não conseguiu contar mais nem uma única história. Abria a boca, e nada saía.

O menino Haroun, então, descobre que o pai, magoado, havia cancelado sua assinatura para recebimento da “água das histórias”, proveniente de uma segunda lua da Terra — a história conta que essa outra lua gira em órbita tão rápida que até hoje nunca conseguiu ser rastreada pelos radares da Terra. Uma noite, o menino escuta um barulho no banheiro e flagra um pequeno gênio-encanador vindo dessa lua de Kahani, desligando a canalização da “água das histórias”. Os dois acabam se entendendo, e o menino viaja com o gênio até essa lua para tentar reverter o pedido de cancelamento da “água das histórias” para seu pai.

A gente não vai seguir o Haroun em toda a sua aventura, que é cheia de surpresas e acaba tendo um final feliz. Mas a gente vai com ele até o momento em que ele chega à lua de Kahani e fica deslumbrado ao ver que ela é coberta pelo legendário Mar dos Fios de Histórias.

Olhou para a água e reparou que ela era feita de milhares e milhares de correntes diferentes, cada uma de uma cor diferente, que se entrelaçavam como uma tapeçaria líquida, de uma complexidade de tirar o fôlego; e Iff explicou que aqueles eram os Fios de Histórias, e que cada fio colorido representava e continha uma única narrativa. Em diferentes áreas do oceano, havia diferentes tipos de histórias, e como todas as histórias que já foram contadas e muitas das que ainda estavam sendo inventadas podiam se encontrar ali, o Mar de Fios de Histórias era, na verdade, a maior biblioteca do universo. E como as histórias ficavam guardadas ali em forma fluida, elas conservavam a capacidade de mudar, de se transformar em novas versões de si mesmas, de se unir a outras histórias, de modo que, ao contrário de uma biblioteca de livros, o Mar de Fios de Histórias era muito mais que um simples depósito de narrativas. Não era um lugar morto, mas cheio de vida.

O Mar de Fios de Histórias é aí uma metáfora para a textura narrativa da cultura. Quanto mais intrincada, colorida e diversa essa textura, mais vivo estará o mar.

Logo, Haroun percebe que o mar está cheio de peixes, que engolem histórias por todas as suas mil bocas e em cujas entranhas “acontece um milagre”: um pedacinho de uma história se junta com uma idéia de outra e pronto! Quando eles cospem as histórias, elas já não são mais as mesmas, antigas; são outras, novas. (…) Nenhuma história vem do nada; as histórias novas nascem das velhas. São as novas combinações que fazem com que elas sejam novas.

A arte narrativa aparece aí como um mecanismo inerente ao tecido da cultura. Como há milhares de peixes, mil bocas no mar, fica claro que a tarefa recriadora pertence ao conjunto da viva tapeçaria líquida da cultura.

Há milhares de fios de histórias, há milhares de peixes no mar: a vitalidade da cultura aparece nessa imagem de Salman Rushdie como inseparavelmente ligada à biodiversidade do mar de histórias.

O mar de histórias é uma imagem poética muito forte, presente há séculos na imaginação da humanidade. Essa imagem dá conta de um certo caráter “líquido” das histórias — fluido, mutável — que volta e meia é percebido pelas pessoas que pensam sobre narrativa. Por exemplo: para Marie-Louise Von Franz, os contos de fada formam um mar, grande e profundo como a psique humana, a alma. E Hannah Arendt comparava Walter Benjamin a um pescador de pérolas, em sua paixão por incluir histórias do passado no meio dos seus textos:

Como um pescador de pérolas que desce ao fundo do mar (…) para dele desprender o rico e o estranho, as pérolas e os corais das profundezas e trazê-los à superfície, Benjamin mergulha poeticamente no passado (…) guiado pela convicção de que no fundo do mar, dentro do qual afunda e se dissolve o que uma vez foi vivo, algumas coisas sofrem uma mudança e sobrevivem em formas novas e cristalizadas, como se aguardassem pelo caçador de pérolas que um dia descerá até elas e as trará ao mundo dos vivos, como fragmentos de pensamento, como algo rico e estranho…

O mar, aqui, é o passado da cultura, a tradição oral, a habilidade de contar, a prática de ouvir.

Podemos voltar agora o nosso olhar para a imaginação da criança, e depois a gente retorna ao mar de histórias.

A infância é a grande fonte da nossa vitalidade imaginária. É bem verdade que a imaginação é uma faculdade que se desenvolve em um contínuo, ao longo de toda a nossa vida. Mas é também verdade que a imaginação na infância tem uma sensibilidade especial, que as crianças tendem a se entregar mais livremente à fantasia e que, da plenitude da experiência imaginária na infância, depende em boa parte a saúde psicológica na idade adulta. O poder específico da imaginação da criança tem muitas razões: uma das mais singelas é o fato de a imaginação se nutrir de imagens novas, e, para a criança, o mundo está cheio de imagens novas.

Bachelard, por exemplo, fala que a infância deposita um tesouro de imagens e devaneios “em cada ser”, como um “jardim secreto”, guardado para mais tarde. Freud diz uma coisa parecida: ele fala que, quando a pessoa cresce e pára de brincar, ela apenas abre mão da conexão com os objetos reais, mas continua “construindo castelos no ar, sonhando de olhos abertos”. Ele chamava a imaginação de um parque de recreio — “um Parque Yellowstone”, preservado para nosso prazer futuro, quando não suportássemos a camisa-de-força da civilização.

Vários pensadores contemporâneos atribuem um papel crucial à imaginação nesses nossos tempos. Por um lado, a gente olha em volta e parece que tudo é repetição, reflexo, e que estamos aprisionados em um labirinto de espelhos. Por outro, a gente tem consciência das enormes tragédias que acontecem. A sensação é a de que nunca foi tão necessário que a humanidade conseguisse imaginar como as coisas poderiam ser de modo diferente.

Por isso, me parece que dar as melhores condições ao florescimento da imaginação das crianças assume, nesse momento, um caráter de tarefa histórica premente. A gente precisa preservar a qualidade desse parque de recreio, a pureza da água dessa fonte, a riqueza da “clareira imaginária” como espaço de ensaio e lugar potencial para a liberdade.

É possível educar a imaginação infantil, cultivá-la como se faz com a inteligência ou a sensibilidade. Há quem diga que a tarefa mais importante da educação é a educação da imaginação.

Quais são as condições favoráveis ao florescimento da imaginação infantil? Algumas delas já foram identificadas, como o envolvimento da criança com a arte e a experiência estética.

A imersão na experiência da arte exige tempo, que é outra condição benéfica para a vivência imaginativa da criança. O trabalho da imaginação é sutil: ele se dá bem com a calma, a concentração, o isolamento e mesmo com um certo tédio. Todos nós conhecemos bem a brincadeira de olhar para as nuvens e ver nelas rostos e caravelas, castelos no ar; de ver o rosto na lua cheia ou de olhar para os veios em uma tábua de madeira e ver neles paisagens fantásticas. A imaginação é a capacidade de olhar “através das janelas do real” (Maxine Greene), e essa forma de contemplação exige um certo ócio, momentos sem pressa, em que a imaginação possa atuar plenamente, nos interstícios da percepção.

Uma dimensão da contemplação estética é o contato com a natureza, outro fator positivo para a imaginação da criança. O fogo, o ar, a água e a terra são os “hormônios da imaginação”, dizia Bachelard. E o estímulo imaginativo não surge só no contato físico — com o calor do fogo ou com a viscosidade da lama —, mas também no encontro com o incomensurável: a multidão de estrelas no céu, o tamanho do mar, o poder das tempestades. Esse maravilhamento, esse assombro diante da infinita multiplicidade da natureza, com a sua profundidade, faz parte da emoção estética fundamental para a imaginação definida como o sublime. Através dele, a criança percebe que, além do mundo tangível à nossa volta, nós estamos “à deriva num oceano de mistério” (Kieran Egan).

A atitude dos adultos no ambiente em que a criança vive faz também uma enorme diferença: a qualidade da vida imaginativa das crianças se beneficia de um ambiente favorável ao seu faz-de-conta e onde os adultos estejam também em contato com a sua própria vida de fantasia e consigam apontar o mundo para as crianças de modo sugestivo e inspirador.

E chegamos aí a um dos estímulos mais importantes à imaginação infantil: a narrativa. Todos nós sabemos o quanto as histórias permitem o exercício constante da imaginação, o vôo para o mundo paralelo, onde, através do prazer poético, as crianças estão, na verdade, “trabalhando”, ou seja, cumprindo sua tarefa fundamental de conhecer o mundo e de construírem a si mesmas. A narrativa é uma ponte entre a imaginação e a cultura.

Daí a nossa responsabilidade diante das histórias que a nossa cultura oferece às crianças. E chegou o momento de começarmos a falar sobre a televisão.

A relação da televisão com a criança desperta opiniões apaixonadas há mais de quarenta anos, quando a TV começou a se estabelecer como foco do ritual doméstico em boa parte do mundo.

Do ponto de vista da imaginação, o debate sempre se deu entre duas posições básicas, que a gente poderia esquematizar assim: de um lado, o receio de que a televisão anestesie a imaginação, fazendo com que as nossas capacidades imaginativas como que adormeçam, submersas pelas imagens da tela; Italo Calvino expressa lindamente esse receio, quando ele diz: “Será que no atual dilúvio de imagens pré-fabricadas a gente não está correndo o risco de perder a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de pensar por imagens? Será que a gente não está colocando em risco o cinema mental da imaginação?”.

Já a posição contrária a esse receio pode ser exemplificada por um trecho de filme (o italiano Querido Diário, de Nani Moretti). O personagem é um professor que cada vez que entra em uma sala com a televisão ligada — em salas de espera, filas de banco — faz críticas eruditas e inflamadas à indústria cultural e à comunicação massificada. Numa viagem de barco, ele chega a uma ilha cujos poucos habitantes fazem questão de viver como num mosteiro, em protesto contra o consumismo. O professor decide ficar ali, morando num claustro sem luz elétrica, água encanada e muito menos televisão. Ele começa a ficar ansioso e, depois de alguns dias roendo as unhas, enxerga um navio cargueiro costeando a ilha. Desesperado para voltar à civilização, ele desce correndo a encosta até a praia e consegue nadar até o navio. Finalmente a bordo, quase delirando, ele faz um desabafo, aos berros: “A televisão não destrói a imaginação das crianças: quando vêem televisão, elas sonham de olhos abertos!”.

Se a gente examinar o conjunto de estudos e pesquisas feitos sobre essa questão nos últimos anos, vai verificar que as duas posições precisam ser levadas em conta. Não se pode analisar o papel da TV sobre a imaginação isoladamente, sem levar em conta três outros fatores:

1. Quanto tempo a criança passa assistindo à TV.
2. O tipo de mediação adulta, ou seja, a qualidade geral do cotidiano da criança.
3. O conteúdo da programação.

Enquanto a hipótese predominante na psicologia cognitiva do início dos anos 80 era a de que assistir à televisão tomava o lugar da brincadeira imaginativa, as pesquisas mais recentes mostram, ao contrário, que o conteúdo da televisão é incorporado à brincadeira. Heróis, heroínas e aventuras da TV são usados como matéria-prima para a vida de fantasia das crianças. As narrativas da TV funcionam como uma espécie de pré-roteiro para a brincadeira imaginativa das crianças. Isso acontece inclusive durante a própria experiência, já que as crianças brincam e devaneiam com freqüência enquanto assistem à televisão. (O professor do filme provavelmente tinha razão: o sonhar acordado faz parte da experiência de assistir à televisão.)

Assim, se a gente entende que tem respon-sabilidade pela saúde imaginativa das crianças, inevitavelmente é preciso levantar a questão da qualidade das narrativas oferecidas a elas, inclusive pela televisão. E aí nos ajuda ter em mente os fatores considerados estimulantes à imaginação infantil que vimos ainda há pouco. Por exemplo, que as narrativas de TV possibilitem à criança uma emoção estética verdadeira. A gente sabe que isso é perfeitamente possível num meio tão plástico como a TV, e conhecemos a tradição brasileira de maravilhosas produções em vídeo para crianças, embora, por razões de mercado, a maior parte da ficção disponível hoje para as crianças nas grandes redes passe muito ao largo disso: a regra é a caricatura, não o personagem; a fórmula, não o diálogo; a banalidade em vez da sutileza da história infantil tradicional ou da melhor literatura contemporânea.

A narrativa da TV deveria permitir o encontro da criança com alguma dimensão profunda, complexa e misteriosa da vida, mas adequada ao nível de desenvolvimento das crianças. Uma narrativa de qualidade — também na TV — é aquela que oferece metáforas ou continentes para as experiências conscientes ou inconscientes das crianças. Um critério para se avaliar a qualidade de um programa do ponto de vista da imaginação seria ver o que ele oferece para apoiar a necessidade que a criança tem de elaborar suas ansiedades através da fantasia.

Recentemente eu fiz uma pesquisa, por mais de um ano, junto às crianças de uma vila de pescadores na Ilha de Santa Catarina. Essa vila sempre foi muito isolada, espremida entre os morros e a Lagoa da Conceição. Só se chega lá de barco ou atravessando a pé sete quilômetros de mata. A rede elétrica só foi instalada em 1982, mas mesmo dali em diante a recepção de televisão era muito ruim, por causa dos morros. Só mesmo com as antenas parabólicas, uns cinco anos atrás, é que a televisão entrou de vez para a vida dos moradores. As novelas feitas no Rio de Janeiro e em São Paulo passaram, então, a conviver com a rica mitologia do lugar, povoada de bruxas e lobisomens. As crianças que correm por ali fazem parte de uma primeira geração na comunidade a conviver, desde a primeira infância, com a televisão.

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O enredo de Cavaleiros se resumia a
confrontos que se propunham explicitamente
a ser morais e filosóficos

No começo eu fiquei surpresa quando descobri que o programa favorito das crianças era o desenho animado japonês Cavaleiros do Zodíaco. O programa, à primeira vista, me parecia pura violência, armado em uma trama complicadíssima que me parecia ininteligível, um “samba do crioulo doido” das mitologias grega e nórdica. Aos poucos, comecei a ouvir outra coisa na fala das crianças. Elas diziam que as músicas de fundo eram lindas, que as roupas e os adereços dos personagens eram bonitos e que, muitas vezes, os episódios davam vontade de chorar, mas que era “uma vontade de chorar boa…”. Acho que acabei entendendo do que é que elas estavam falando.

Em primeiro lugar, a complexidade da trama era uma das razões para o seu culto: ela oferecia às crianças um contato com o inesgotável do que jamais se revelará completamente ao nosso conhecimento. A narrativa oferecia um desafio cognitivo, explorava a necessidade que a imaginação da criança tem de complexidade narrativa.

A complexidade vale também para a proposta estética do programa: o detalhamento gráfico, a variedade de imagens e de temas, ritmos e instrumentos musicais é bem maior do que a média dos desenhos animados enlatados oferecidos pela televisão comercial brasileira. Sem dúvida, Cavaleiros do Zodíaco é um produto industrial regido pela lógica do mercado. É fato também que ele é uma colcha de retalhos de clichês. Mas também é fato que as crianças que entrevistei identificaram o programa como tendo uma qualidade estética superior em relação às demais narrativas acessíveis a elas pela televisão. Como a gente não está falando de qualidade enquanto algo intrínseco aos produtos, mas de uma relação em que o produto desencadeia uma emoção estética nas crianças e apóia o seu mundo de fantasia, eu entendo a preferência das crianças por Cavaleiros do Zodíaco como uma confirmação da sede infantil por poesia, arte e beleza tecidas narrativamente. (Para a maioria dessas crianças, o programa pode ter representado, por exemplo, a primeira oportunidade de ouvir a sutileza de uma harpa. Que elas apreciem essa oportunidade de vivência artística e a distingam da torrente de mediocridade ainda maior, é um bom sinal. Que essa vivência se dê por uma via ainda assim formulaica e empobrecida, é responsabilidade dos estudiosos e produtores de mídia — entre os quais eu me incluo —, não das crianças.)

Havia ainda um outro diferencial, além do estético, para a preferência das crianças por esse programa. Ele tem relação com a necessidade delas encontrarem nas narrativas respostas para questões profundas, como a relação com o sagrado, o sentido da vida e da morte, da justiça e da responsabilidade individual diante do mundo. O enredo de Cavaleiros se resumia a confrontos que se propunham explicitamente a ser morais e filosóficos. Embora diluídos e inseridos em fórmulas esquemáticas, ali estavam imagens e elementos mitológicos que pareciam atender a necessidades subjetivas das crianças.

Na infância dos pais, das mães e dos avós dessas crianças, essas necessidades seriam possivelmente atendidas pela riqueza da tradição oral. Mas o processo abrupto de modernização parece estar deixando seqüelas na valorização pelos mais velhos de seu próprio conhecimento. Penso agora em Valdelina, mãe da Gabriela. Ela tinha cinqüenta anos, mas falava do passado com tanta nostalgia que aparentava bem mais idade. Para um adulto interessado, como eu, ela contava belas histórias de surpresa e mágica, da vida cheia de emoções que viveu. Mas disse que não falava dessas coisas com as crianças: “O que eu sabia não vale mais no mundo deles” — ela dizia, suspirando. “O que servia pra nós não serve mais pra eles. Tá tudo muito diferente.” Os mais velhos se queixam de que os pequenos não os ouvem mais, e se calam. Diante do silêncio dos mais velhos, da desimportância da literatura escrita numa vila como aquela — como em tantas outras, pelo País adentro —, a televisão vai se tornando o maior reservatório de narrativas disponível às crianças.

Considerando a baixa qualidade ética e estética da programação média, deixei de estranhar o encantamento das crianças pelos Cavaleiros do Zodíaco. Podemos nos horrorizar quando as crianças se deixam seduzir por algo que nos fere a sensibilidade e o gosto, mas talvez elas se seduzam justamente por não receberem de outro modo, mais poético ou sutil, referências narrativas que lidem com aquilo que elas pressentem que são mistérios também para os adultos. Mistérios que têm um efeito inquietante sobre a imaginação e que, através da história, têm sido respondidos pelos relatos simbolicamente ricos — literários, religiosos, mitológicos.

Retornamos, então, ao Mar de Histórias. Na aventura do menino Haroun, o mar se compunha de milhares e milhares de fios, cada fio contendo uma história guardada de forma fluida, capaz de se misturar às outras, de se transformar em novas visões de si mesma. A partir dessa imagem, a gente pode dizer que o dinamismo da vida narrativa da cultura depende da multiplicidade de suas histórias. Quanto mais histórias estiverem sendo contadas ou contadas por mais pessoas, maiores as possibilidades de recriação, maior a vitalidade narrativa da cultura e, portanto, maior a sua vitalidade imaginativa.

É aí que eu queria chegar. O florescimento da imaginação infantil depende muito de que ela possa nadar, brincar, chapinhar num rico mar de histórias, que seja como um plâncton fértil sempre a gerar mais histórias.

O grande problema de as crianças assistirem a tantos programas americanos e japoneses, novelas argentinas ou mexicanas (e mesmo no caso daquelas crianças de Santa Catarina, programas feitos em São Paulo e no Rio de Janeiro), não seria o fato de essas narrativas serem estrangeiras à comunidade de recepção, e sim a sua pobreza ética e estética.

Que bom se as crianças pudessem ouvir, a cada dia, uma história de um lugar diferente do mundo. Mas outro problema do universo das grandes redes de TV é que, sob o selo do mercado, usam apenas um punhado de fios do “mar de histórias”.

Ao mesmo tempo, se é direito das crianças saber da vastidão do mundo, é também em nome da riqueza do Mar de Histórias que a gente precisa afirmar o direito que elas têm de conhecer melhor as histórias da cultura em que nasceram.

É preciso que haja mais histórias circulando, tanto as antigas histórias de cada lugar, de cada família, de cada grupo social, como as histórias de outros lugares, em outros formatos, contadas por outras vozes — não só as que tiverem passado pela dublagem das grandes corporações que vendem produtos em escala mundial.

tv02Muitas pessoas, no mundo inteiro, têm colocado a relação da criança com a comunicação num âmbito de ecologia cultural, como Taylor e Saarinen, dois autores que trabalham com filosofia da mídia: “Lidar com crianças significa aceitar a responsabilidade por criar e manter estruturas e redes para a manutenção da vida. Na cultura dos meios, isso significa agir no meio ambiente eletrônico em que as nossas crianças estão destinadas a viver”.

Já que eu estou falando em florescimento, em plâncton e em biodiversidade, vou adiante, dizendo que um dos melhores adubos que a gente pode oferecer à imaginação da criança é a multiplicidade narrativa: trabalhar por ela, por dentro e por fora da televisão, é uma das coisas mais importantes que a gente pode fazer pela imaginação das crianças, ou seja, pelo futuro.

Este texto foi apresentado na I Jornada de Debates sobre Mídia e Imaginário Infantil, em 1999. Gilka Giradello é professora do Curso de Jornalismo e da Pós-graduação em Educação da UFSC, realiza pesquisas no campo da Comunicação e Criança e coordena a Oficina Permanente de Contadores de Histórias. Sua tese de doutorado versa sobre a relação entre a televisão e a infância. É contadora de histórias.

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