Edição 21

Matérias Especiais

A BRINCADEIRA E A CULTURA INFANTIL

Se desejamos formar seres criativos, críticos e aptos para tomar decisões, um dos requisitos é o enriquecimento do cotidiano infantil com a inserção de contos, lendas, brinquedos e brincadeiras.

Vygotski (1988) indica brinquedos e brincadeiras como indispensáveis para a criação da situação imaginária.
Revela que o imaginário só se desenvolve quando se dispõe de experiências que se reorganizam. A riqueza dos contos e das lendas e o acervo de brincadeiras constituirão o banco de dados de imagens culturais utilizados nas situações interativas. Dispor de tais imagens é fundamental para instrumentalizar a criança para a construção do conhecimento e da sua socialização. Ao brincar, a criança movimenta-se em busca de parceria e na exploração de objetos, comunica-se com seus pares, expressa-se através de múltiplas linguagens, descobre regras e toma decisões.

A falta de qualidade das instituições infantis redunda na seleção inadequada de aspectos da cultura relacionados com o saber instituído da escola elementar — a escrita e os números —, excluindo elementos caracterizadores da cultura do País, como o carnaval, rituais do bumba-meu-boi, festa de coroação dos reis, capoeira, futebol, as lendas, os contos e a multiplicidade de brincadeiras oferecidas pelo folclore infantil. Nota-se, também, a falta de materiais típicos da fauna e flora brasileiras, como folhas, galhos, pedras, conchas, frutos, flores e penas. A produção de objetos não reflete a riqueza do mundo cultural e natural. Mesmo o uso da sucata industrial fica empobrecido diante da falta de um tratamento que ofereça identidade cultural a tais objetos. O imaginário infantil não reflete a riqueza folclórica, com suas lendas da vitória-régia, da jibóia e do boto-cor-de-rosa, que habitam regiões da Amazônia e do Mato Grosso. Acumulados por povos indígenas, negros e brancos, traços que marcam a pluralidade cultural brasileira, as lendas e os contos, presentes no imaginário das crianças dos tempos passados, foram excluídos dos conteúdos escolares, ocasionando a separação entre a escola e a cultura (Kishimoto, 1993a). A riqueza das lendas e dos contos retratados por pintores como Portinari manifesta-se em brincadeiras tradicionais como a mula-sem-cabeça, representando o pegador nas noites escuras de Brodowski, ou em romancistas como José Lins do Rego (1969), que, em Menino de Engenho, conta suas lembranças dos tempos do engenho de açúcar, onde brincava de capa-bode, a brincadeira de faz-de-conta em que só brancos construíam engenhos de açúcar, assumindo o papel de proprietário, simulando o Antônio Silvino, o cangaceiro do Nordeste, empunhando armas e organizando batalhões (Kishimoto, 1993a). As imagens sociais dos tempos passados perdem-se, guardadas em gavetas que não foram mais abertas em virtude do novo modo de vida dos tempos atuais, que impede a transmissão oral dentro de espaços públicos. Cabe à escola as tarefas de: tornar disponíveis o acervo cultural de contos, lendas e brincadeiras tradicionais que dão conteúdo à expressão imaginativa da criança; abrir-se para receber outros elementos da cultura não-escolarizada, para que beneficie e enriqueça o repertório imaginativo da criança. Concretizar os pressupostos de Vygotski (1988, 1987, 1982), de que a cultura forma a inteligência e de que a brincadeira de papéis favorece a criação de situações imaginárias e reorganiza experiências vividas, é também o caminho apontado por Bruner (1996), que abre as portas da escola para a entrada da cultura e condiciona o saber fazer. Esse aprendizado começa com brincadeiras, em que se aprende a criar significações, a comunicar-se com outros, a tomar decisões, decodificar regras, expressar a linguagem e socializar.

Pesquisas efetuadas em creches e pré-escolas demonstram que os materiais privilegiados pelas instituições infantis continuam sendo os gráficos e os educativos, referendando, mais uma vez, valores relacionados às atividades didáticas, predominando o modelo escolar, marginalizando a expressão, a criatividade e a iniciativa da criança (Kishimoto, 1996c, 1996b, Canholato, 1990, Pinnaza, 1989). A cultura brasileira, na sua pluricultura, rica em folclore, não habita os domínios escolares. É essa seletividade a que se refere Forkin (1996), ao apontar como a educação relaciona-se com aspectos da cultura. A inversão desse modelo pode efetuar-se por um processo político de introdução dos elementos folclóricos no contexto da educação, à semelhança do Japão, que, nos anos 70, ao perceber o desaparecimento das brincadeiras tradicionais, fruto da intensa industrialização e urbanização do País, introduziu medidas políticas, visando recuperá-las a partir da inserção de brinquedos e brincadeiras nos currículos infantis (Kishimoto, 1995c, 1996a).

Diante de tal situação, destacam-se os trabalhos de centros de pesquisa e de estudos: o Laboratório de Brinquedos e Materiais Pedagógicos da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, que, desde 1993, dispõe de um banco de dados sobre brincadeiras tradicionais brasileiras para subsidiar profissionais no trabalho pedagógico (Kishimoto, 1993b); a Fundação Carlos Chagas, de São Paulo, que realiza e divulga pesquisas sobre creches e universidades — como a de Ribeirão Preto, Santa Maria e Curitiba, entre outras — que dispõem de projetos de capacitação para profis-sionais de creches e pré-escolas, aproximando cultura e escola com a inclusão das brincadeiras infantis. Apesar de marginalizada, a Educação Infantil dispõe de centros que batalham por sua expansão e pela melhoria da qualidade na formação de profissionais. Entretanto, dadas as dimensões continentais do País, somente medidas políticas poderão socializar experiências restritas a centros de excelência, oferecendo às crianças brasileiras o direito não só de acesso à Educação Infantil, como também o de experimentar o prazer de aprender a fazer por meio de brincadeiras.

Tizuko Morchida Kishimoto é professora titular da Faculdade de Educação da USP, docente da Pós-graduação e Especialização em Educação Pré-escolar, coordenadora do Laboratório de Brinquedos e Materiais Pedagógicos.

Livros publicados: A história da pré-escola em São Paulo, Loyola, 1988; Jogos tradicionais infantis, Vozes, 1993; O jogo e a educação infantil, Pioneira, 1994; Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação, Cortez, 1996.

cubos