Edição 86

Matérias Especiais

A cegueira do eu sobreposto ao nós

Rosangela Nieto de Albuquerque

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“Casa comum, nossa responsabilidade”

“Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca” (Campanha da Fraternidade 2016).

[…] a cegueira pode ser interpretada da seguinte forma: indivíduo versus coletivo, público versus privado ou, ainda, cidadão versus sociedade.
SARAMAGO, 1995

Os interesses individuais e a prática frequente da decisão do eu sobre o nós são bastante comuns em nossa sociedade. Certamente, vivenciamos uma cegueira entre a singularidade e o individualismo, em que enxergamos o nosso eu como se fosse singular, e cometemos ações em prol de nossos interesses.

O mundo em que vivemos não deveria ser como é, mas parece inevitável. Este mundo — a nossa casa — é cheio de sofrimento, humilhações. A força do mercado sobrepõe a ética; as relações humanas estão cada vez mais voláteis; os excluídos são enganados com os programas de assistencialismo, em que a miséria moral, material, afetiva e simbólica está se tornando “natural”; e muitas vezes nos envolvemos numa cegueira social, na negação de enxergar a responsabilidade que temos na construção de uma “casa melhor”. Este mundo social é construído pelos moradores e pode ser transformado, certamente. O ponto de partida é a construção de consciências. Os padrões culturais vêm se modificando velozmente, as instituições estão perdendo a representatividade, o planeta está se esvaecendo, e nos negamos a enxergar tudo isso.

Certamente por causa da cegueira do eu sobre o nós, a Campanha da Fraternidade 2016 vem propor uma reflexão sobre esta individualidade que se estabeleceu na sociedade e traz à superfície que necessitamos colocar óculos com lentes fortes e enxergar que somos responsáveis pelo futuro, que temos que ter ações para melhorar a casa nossa em que vivemos e ajustar a lente da esperança para construir um mundo melhor.

Somos também responsáveis pela miséria do mundo

Saramago evidencia a carência de solidariedade em que vivem os indivíduos e como, na pós-modernidade, perderam a relação com o real e passaram a viver de maneira isolada, sacralizando um amor próprio em prol de uma falsa liberda­de, ou de uma liberdade virtual. Não percebem que, a partir do momento em que há o esquecimento do outro, as relações se deteriorizam em função do individualismo.
Ou seja, a dimi­nuição das relações leva à desumanização, à fluidez que a modernidade traz ao fragilizar as relações, os laços humanos.
BAUMAN, 2004

A carência de solidariedade é evidente em todo o mundo, mas, quando falamos em miséria, há que se pensar no rendimento monetário por família, no analfabetismo, nas condições de moradia, no saneamento básico, na questão da água — cada vez mais escassa em nosso país —, no tratamento do esgoto sanitário, no cuidado com os resíduos sólidos (lixo). Enfim, de que miséria estamos falando? No Brasil, há cerca de 16,2 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza extrema, e em torno de 8,6% da população vive com uma renda nominal mensal domiciliar per capita de até R$ 70,00. O censo de 2011 publicou que, desse total, 4,8 milhões não possuem nenhum rendimento. E vale ressaltar que a pobreza não se configura somente no critério de rendimento monetário, mas nas condições mínimas de moradia e inclusão social.

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Os dados são alarmantes. O País tem 14.612.183 analfabetos, entre mais de 162 milhões de brasileiros com mais de 10 anos de idade, ou 9,02% da população a partir dessa faixa etária. Desses, 9,4 milhões estão em áreas urbanas; e 5,2 milhões, nas rurais.

A situação do saneamento básico no Brasil é dramática. Os serviços de saneamento básico em todo o território nacional é uma das mazelas ambientais, pois o impacto na natureza e no cidadão é gravíssimo. Os dados divulgados pelo Ministério das Cidades mostram que somente 38% do esgoto do País recebe algum tipo de tratamento antes de ser levado à natureza

imagem_11A questão da água permeia um cenário catastrófico, pois um em cada cinco brasileiros ainda não possui sequer água tratada para beber. Decerto tivemos um aumento significativo na distribuição de água no País em relação às regiões, mas ainda temos um índice muito baixo de água tratada e encanada na Região Norte, com somente 37% de ligações de medidores (hidrômetros).

No Brasil, em relação ao saneamento básico, somente 52% dos municípios e 33,5% dos domicílios têm serviço de coleta de esgoto.

O esgotamento sanitário é o serviço de saneamento básico com menos cobertura nos municípios brasileiros, embora tenha crescido 10,6% de 1989 a 2000. Entretanto, ainda estamos sofrendo com a falta de políticas públicas nesse aspecto.

Em relação aos resíduos sólidos, o IBGE, através de pesquisas, revela que há uma tendência de melhoria na destinação final da coleta do lixo, pois há ações de mudanças dos aterros sanitários para áreas controladas e com tratamento desses resíduos. Apenas 10,7% dos municípios tratam seu próprio lixo de forma adequada. Hoje, ainda não há efetiva conscientização das pessoas sobre a coleta seletiva, são necessárias ações de educação ambiental, que vão desde as escolas até as comunidades.

Nosso planeta — nossa casa — necessita de ações com objetivos claros, de se ter uma sociedade equânime, justa, com qualidade de vida, para, assim, construir a comunidade de semelhança, que é vivenciada com certo espírito de nós, com a responsabilidade das ações e com o reconhecimento do outro.

A responsabilidade das ações

O maior problema — e causa de toda a cegueira — é a inobservância do reconhecimento do outro como um indivíduo livre e igual, que precisa ser ouvido e reconhecido como um cidadão de igual necessidade de liberdade.
SARAMAGO, 1995

Segundo Bauman (2004), somos responsáveis pelos nossos atos e ações, temos a liberdade, enquanto indivíduos, de agir conforme pensamentos e desejos, o que pode ser uma bênção ou maldição. Nesse contexto, a questão da liberdade nos leva à escolha de cuidar ou não da nossa casa, do nosso planeta.

Certamente, vivemos em sociedade, num conjunto de ações individuais, porém há uma distinção entre o cidadão — que é um indivíduo que busca seu próprio bem através do bem-estar da cidade — e o indivíduo que tende a ser indiferente ou menos prudente quanto ao bem comum, sem se preocupar com uma sociedade justa, cidadã. O que se observa é que o indivíduo busca a sua autorrealização sem se preocupar com o coletivo e que a individualização se instalou no meio social.

O ideal de se viver em comunidade seria um mundo que oferecesse tudo de que se precisa para levar uma vida significativa e onde o indivíduo pudesse participar do meio e interagir com ele, apesar das regras sociais que limitam a sua liberdade.

Além disso, é importante refletir sobre o movimento “eu enquanto país”, que se apresenta tão “perdido” nos dias atuais, em que se estabelece um patriotismo que se contrapõe ao nacionalismo. Este último parece que instala uma ideologia de grades, de acorrentamento, enquanto o patriotismo é um movimento mais libertador, paciente e acolhedor.

Nesse contexto, viver em comunidade remete também ao espaço e tempo, que no mundo contemporâneo são delineados por eventos rápidos, simultâneos, voláteis, imagéticos, simbolizados muitas vezes pela qualidade do hardware, pelo capital intelectual das tecnologias que interligam pessoas, espaços, tempo, objetos e muitas vezes que desvalorizam o espaço físico onde as pessoas se reúnem, convivem e se relacionam. Assumir a responsabilidade das ações é perceber que a nossa casa tem que ser cuidada; portanto, se a sociedade não estabelecer atitudes imediatas, estaremos com perspectivas incertas para o futuro.

A responsabilidade de ações em comunidade precisa de um certo espírito de nós, que pode disseminar essa responsabilidade e certamente o compromisso de prosperidade para a sociedade.

Considerações finais

Observa-se a fragilidade da sociedade em enxergar o esquecimento da vida em comunhão. Há uma cegueira nos sujeitos, e cada um observa somente o seu próprio interesse e se esquece de que vive em uma pluralidade cultural, de valores e de cosmovisões.

Não podemos viver numa sociedade de cegos que negam que a hominização somente perpetuará se primarmos pela humanização e deixarmos a cegueira social do eu sobre o nós. O que caracteriza a humanização é o reconhecimento do outro e dos seus direitos, é pensar em justiça, e a nossa responsabilidade é cuidar da casa nossa descortinando o papel de cada sujeito social. Na verdade, não ficamos cegos, não cegamos, estamos cegos, cegos que veem, cegos que, vendo, não enxergam.

Rosangela Nieto de Albuquerque é Ph.D. em Educação (Pós-doutora em Educação), pós-doutoranda em Psicologia Social, doutoranda em Psicologia Social, Mestre em Ciências da Linguagem, professora universitária de cursos de graduação e pós-graduação, coordenadora de cursos de pós-graduação em Educação, psicopedagoga clínica e institucional, analista em Gestão Educacional, pedagoga. Autora de projetos em Educação, autora da implantação de uma clínica-escola de Psicopedagogia como projeto social. Autora de três livros: Neuropedagogia e Psicopatologias, Psicoeducação e Neuropsicologia.
Contato: rosangela.nieto@gmail.com.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 258p.

________. Amor Líquido: sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 190p.

CONRADO, Iris Selene. O Ser Humano e a Sociedade em Saramago: um Es­tudo Sociocultural das Obras Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Estadual de Maringá, Paraná, 2006. 140 f.

DA SILVA, Flávia Belo Rodrigues. Entre a Cegueira e a Lucidez: a Tentativa de Resgate da Essência Humana nos “ensaios” de José Saramago. Dissertação (Mes­trado em Literatura Portuguesa) – Coordenação dos Cursos de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Orien­tação da Professora Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiásti­co e Civil. São Paulo: Martin Claret, 2003. Texto Integral (A obra-prima de cada autor. Série Ouro).

KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Martin Claret, 2007.

OST, François. Contar a Lei: as Fontes do Imaginário Jurídico. Tradutor Paulo Neves. São Leopoldo: Unisinos, 2004.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao Deserto do Real!: Cinco Ensaios sobre o 11 de Se­tembro e Datas Relacionadas. Tradução de
Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

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