Edição 107
Espaço pedagógico
Contribuição da prática psicomotora no desenvolvimento de uma criança com microcefalia
Vivianne Oliveira de Deus
Introdução
As inquietações que motivaram a presente pesquisa partem da preocupação com a realidade vivenciada em Pernambuco com o surto da microcefalia, tornando-se relevantes os estudos para melhor preparação dos profissionais da educação a fim de acolher com segurança os alunos com essa limitação, mostrando como a psicomotricidade pode contribuir no desenvolvimento escolar de uma criança com essa característica.
Lidar com a realidade de uma educação especial é, para muitos professores, um desafio, pois muitas dúvidas surgem diante desse fato, uma vez que a formação vivenciada por esses profissionais algumas vezes não supre a necessidade existente na rotina de uma sala de aula, ficando os mesmos à mercê da experiência adquirida com o tempo de vivência. Logo, nota-se a importância de um maior suporte para todos que fazem o ambiente escolar, aprimorando a prática educacional voltada para a educação de crianças com limitações diagnosticadas, pois a inclusão deve ser vivenciada em todos os ambientes de maneira justa e satisfatória ao desenvolvimento social e cognitivo.
Toda criança tem direito a uma boa educação. Daí, então, a preocupação com a preparação da equipe escolar para acolher com satisfação os educandos com microcefalia, os quais, diante da sua realidade pessoal, já trazem consigo muitas limitações em seu dia a dia, necessitando sempre do apoio da família e de profissionais que sejam qualificados e sobretudo humanizados para superar com afeto os obstáculos que surgirão.
Elegemos como objetivo deste trabalho contribuir com a prática educacional enquanto ambiente inclusivo, apresentando fatores que auxiliem no desenvolvimento cognitivo e social das crianças com características típicas da microcefalia, ajudando os profissionais da educação na prática enquanto docente do ensino infantil. Assim, desenvolvemos este artigo com base no método qualitativo, pois, de acordo com Teixeira (2012), o enfoque desse tipo de pesquisa se dá por sua flexibilidade, podendo apresentar várias hipóteses e tendo ainda mais de uma forma de emprego de dados.
Levando-se em consideração a contribuição de Lopes (2006), que assegura ser análise bibliográfica todo trabalho que desenvolve uma abordagem perante um problema a partir de publicações de outros estudiosos, a presente pesquisa se dá em coleta de dados contidos em livros, revistas, artigos e trabalhos acadêmicos devidamente publicados.
Dessa forma, dividimos o referido artigo em quatro seções. Na primeira, será trabalhada a desenvoltura da psicomotricidade; na segunda, o conceito de microcefalia; na terceira, prioriza-se o desenvolvimento da criança com microcefalia na Educação Infantil, tendo como apoio a utilização das práticas psicomotoras; e a quarta refere-se ao currículo perante o PPP da escola visando, de fato, uma educação inclusiva.
O que é psicomotricidade?
De acordo com Oliveira (2015), o termo psicomotricidade apareceu pela primeira vez com Dupré em 1920, significando um entrelaçamento entre o movimento e o pensamento. Dupré chama a atenção dos seus educandos sobre o desequilíbrio motor, denominando o quadro de debilidade motriz, tendo ainda observado uma estreita relação entre as anormalidades psicológicas e as anomalias motrizes, o que o levou a formular o termo psicomotricidade.
Conforme a Associação Brasileira de Psicomotricidade (2017), tem-se a definição:
Psicomotricidade é a ciência que tem como objeto de estudo o Homem através do seu corpo em movimento e em relação ao seu mundo interno e externo. Está relacionada ao processo de maturação, no qual o corpo é a origem das aquisições cognitivas, afetivas e orgânicas. É sustentada por três conhecimentos básicos: o movimento, o intelecto e o afeto.
Entende-se, portanto, que o desenvolvimento da psicomotricidade se dá em conjunto com o afeto, o movimento e o cognitivo, tendo como fonte de estudo o próprio corpo, sendo possível interligar as ações às emoções, construindo um conhecimento do ser enquanto indivíduo social, levando-se em consideração as experiências já vividas como princípio do desenvolvimento motor e emocional, aprimorando, assim, a linguagem e a socialização.
Segundo Cury (1958), a tarefa mais importante da educação é transformar o ser humano em líder de si mesmo, líder dos seus pensamentos e suas emoções, pois, quanto maior o volume emocional envolvido em uma experiência, mais o registro será elevado, com maiores chances de ser resgatado.
Um dos pioneiros no estudo da psicomotricidade, Wallon apud Oliveira (2015) apresenta a importância do aspecto afetivo como anterior a qualquer tipo de comportamento, pois, para ele, é sempre a ação motriz que regula o aparecimento e o desenvolvimento das formações mentais, estando relacionadas à motricidade, à afetividade e à inteligência no desenvolvimento da criança.
Percebe-se, então, que o desenvolvimento das práticas psicomotoras não é um treino destinado à automatização, e sim uma educação de modo geral associada aos potenciais intelectuais, afetivos, sociais e motores, permitindo que a criança progrida em suas habilidades e vença as suas limitações.
O que é microcefalia?
De acordo com Cabral e colaboradores (2015):
Microcefalia é uma malformação congênita em que o cérebro não se desenvolve adequadamente e o perímetro cefálico apresenta medida menor que dois desvios-padrão abaixo da média específica para o sexo e a idade gestacional. Considera-se microcefalia grave quando a medida dessa circunferência é menor que três desvios-padrão. A microcefalia caracteriza-se por alterações de estrutura ou função presentes ao nascimento e de origem pré-natal.
Com a contribuição de Brunoni e colaboradores (2016):
As alterações mais comumente associadas à microcefalia estão relacionadas ao déficit intelectual e a outras condições que incluem epilepsia, paralisia cerebral, atraso no desenvolvimento de linguagem e/ou motor, estrabismo, desordens oftalmológicas, cardíacas, renais, do trato urinário, entre outras. O estabelecimento do diagnóstico diferencial com causas genéticas e outros teratógenos ambientais, como as infecções pré-natais, o álcool, a exposição pré-natal ao raio X e alguns medicamentos, deve ser feito, já que, em todas essas condições, a microcefalia pode ser observada.
Observa-se, portanto, que a microcefalia consiste em uma formação irregular do cérebro, por causa da qual a criança poderá apresentar sequelas em seu desenvolvimento, necessitando, assim, de um maior estímulo para realizar atividades.
Levando-se em consideração a contribuição de Henriques e colaboradoras (2016), em outubro de 2015 foi observado um grande aumento dos casos de crianças com microcefalia, principalmente em Pernambuco, onde acredita-se que a epidemia vivenciada tenha sido causada pelo mosquito Aedes aegypti, agente transmissivo do vírus zika, tendo havido, até 20 de fevereiro de 2016, registro de 5.640 casos suspeitos de microcefalia e 583 confirmados.
A microcefalia, segundo Cabral (2015), não possui tratamento específico nem cura, entretanto se faz necessário o acompanhamento das crianças com profissionais adequados para que os estímulos sejam iniciados precocemente.
Perante a descrição, nota-se a necessidade de iniciação dos procedimentos cabíveis o mais cedo possível na vida das crianças microcefálicas, pois, assim, o desenvolvimento das mesmas tende a fluir diante das colaborações realizadas por profissionais devidamente capacitados.
Psicomotricidade: desenvolvimento da criança com microcefalia na Educação Infantil
De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em seu art. 29, “A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade”.
Para Fonseca (2008), o trabalho motor se torna crucial ao desenvolvimento perceptivo e cognitivo exatamente porque participa na elaboração e na organização da estrutura funcional do cérebro.
Diante dos fatos, nota-se que a área motora da criança, em construção, deve ser explorada como alicerce para a ampliação dos saberes; logo, a técnica da psicomotricidade pode ser uma grande aliada nesse processo, uma vez que trabalha com focos nas brincadeiras dirigidas em conjunto com as sensações, ampliando, assim, as habilidades motoras e emocionais.
Fonseca (1995) apud Flores (2017) afirma que uma maneira de estimular o surgimento e o crescimento de novas e mais complexas conexões entre células é através da psicomotricidade. Tanto que ela surge nos estudos neurológicos que visavam a reabilitação de pacientes com debilidades mentais ou que haviam sofrido acidentes que deixaram sequelas motoras e cognitivas.
Conforme o exposto, a psicomotricidade trabalhada nas crianças com dificuldades em seus movimentos, por problemas neurológicos ou não, vem a desempenhar um papel de reabilitação e estímulo em suas limitações. Com isso, as crianças podem aprimorar e construir saberes que ajudarão no seu desenvolvimento motor e cognitivo.
Em geral, recém-nascidos (RN) com microcefalia apresentam alterações no desenvolvimento neuropsicomotor, tendo sido identificada ainda uma forte correlação com a paralisia cerebral, de acordo com o Ministério da Saúde (2016).
Sendo assim, torna-se necessária a adaptação do ambiente escolar com relação ao desenvolvimento da criança atípica, promovendo atividades voltadas para as limitações que ela apresenta.
Alves (2012) apud Bezerra (2017, pág. 49) ressalta que:
No trabalho da psicomotricidade, o professor deve assumir o papel de facilitador do desenvolvimento da capacidade de aprender, dando para a criança tempo para suas próprias descobertas, oferecendo estímulos cada vez mais variados, proporcionando experiências concretas e vividas com o corpo inteiro.
Diante da contribuição, observa-se a importância do professor como figura facilitadora do desenvolvimento da criança. Assim, estimular e proporcionar diferentes situações de acordo com a necessidade apresentada, visando o melhor desempenho do educando, deve fazer parte da rotina escolar. Logo, cabe ao docente perceber onde aplicar os estímulos necessários para o alcance de uma melhor reabilitação, tendo-se, assim, a possibilidade de um trabalho positivo.
De acordo com Boy (2017, p. 60):
A entrada de alunos com necessidades especiais nos traz um grande desafio: novos ritmos de aprendizagem. Alunos com transtornos e déficits reais têm limitações para aprender alguns conteúdos e precisam de metodologias diferenciadas. […] Cada educando tem suas necessidades específicas; portanto, não cabe mais na sala de aula do século XXI uma metodologia pautada na homogeneidade. É preciso diversificar os momentos e as atividades por meio de estratégias de trabalho mais participativas, por meio de ambientes colaborativos de aprendizagem.
Analisando o estudo, observa-se a importância da diversificação dos caminhos para o ensino-aprendizagem atualmente dentro da sala de aula, pois deparar-se com características específicas em cada educando tem sido cada vez mais comum; logo, precisa-se de estratégias que possam suprir a necessidade apresentada, devendo o docente estar atento à realidade de cada um para que o direcionamento seja comandado de modo adequado para a ampliação das habilidades preexistentes ou até mesmo para o desenvolvimento de uma reabilitação. Portanto, nota-se a relevância da busca contínua no que se refere à formação continuada dos instrutores da educação, uma vez que estar atualizado poderá facilitar o entendimento e desempenho das atividades necessárias para cada criança.
Educação especial: a inclusão começa na grade curricular
A cidadania é um conjunto de normas direcionadas a todos aqueles que exercem seu papel na sociedade em que vivem. De acordo com o Capítulo II, art. 6º, da Constituição Federal, “São direitos sociais, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Em se tratando da educação, em seu art. 205, a Constituição defende que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Dessa forma, a escola tem a responsabilidade de promover uma boa educação em parceria com o Estado e a família, com o intuito de uma formação de qualidade para os futuros cidadãos de um modo geral, pois tem esse direito assegurado todo ser integrante da sociedade, devendo a instituição de ensino estar apta a promover uma educação inclusiva.
As Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica (2013, pág. 299) defende que:
A concepção da Educação Especial nesta perspectiva da educação inclusiva busca superar a visão do caráter substitutivo da Educação Especial ao ensino comum, bem como a organização de espaços educacionais separados para alunos com deficiências. […]
Portanto, vivenciar a educação inclusiva é um direito de todo aluno que possui alguma necessidade especial, prática em que se faz necessário o domínio sobre o quadro apresentado pelo educando para que a escola possa adaptar as atividades exigidas no currículo, realizando tarefas inclusivas na sala de aula e também organizando o Projeto Político Pedagógico (PPP) adequado à realidade vivenciada, uma vez que o PPP seria o direcionamento da instituição de ensino sobre sua funcionalidade como um todo.
A LDB (2016), em seu art. 59, diz que:
Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação:
I – currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades;
II – terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do Ensino Fundamental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados;
III – professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns;
IV – educação especial para o trabalho, visando a sua efetiva integração na vida em sociedade, inclusive condições adequadas para os que não revelarem capacidade de inserção no trabalho competitivo, mediante articulação com os órgãos oficiais afins, bem como para aqueles que apresentam uma habilidade superior nas áreas artística, intelectual ou psicomotora […]
Observa-se, portanto, que a escola, assim como os profissionais que a constituem, precisa adaptar-se a fim de que um bom acolhimento seja oferecido às crianças com necessidades especiais para que haja um desenvolvimento cognitivo, afetivo e social do educando, sendo levadas em consideração, ainda, as limitações apresentadas pelo aluno e também a didática adotada pela escola de acordo com o PPP vigente, devendo a equipe escolar realizar as correções necessárias para o melhor desempenho do trabalho.
De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica (2013, pág. 85):
Proposta pedagógica, ou projeto pedagógico, é o plano orientador das ações da instituição e define as metas que se pretendem para o desenvolvimento dos meninos e meninas que nela são educados e cuidados, as aprendizagens que se quer promovidas. Na sua execução, a instituição de Educação Infantil organiza seu currículo, que pode ser entendido como as práticas educacionais organizadas em torno do conhecimento e em meio às relações sociais que se travam nos espaços institucionais e que afetam a construção da identidade das crianças.
O currículo da Educação Infantil, segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica (2013, pág. 86) é concebido como:
Um conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, científico e tecnológico. Tais práticas são efetivas por meio de relações sociais que as crianças desde bem pequenas estabelecem com os professores e as outras crianças, e afetam a construção de sua identidade. […] Educação Infantil deve considerar a integralidade e indivisibilidade das dimensões expressivo-motora, afetiva, cognitiva, linguística, ética, estética e sociocultural das crianças […]
Levando-se em consideração a definição de currículo da Educação Infantil, nota-se a relevância da valorização da bagagem apresentada pela criança na construção das práticas pedagógicas, pois a estrutura afetiva, cognitiva e social do indivíduo pode vir a influenciar em seu desenvolvimento escolar, notando-se, assim, a importância da parceria que deve se estabelecer entre a família e a escola, uma vez que cada grupo em que o ser está inserido apresenta sua responsabilidade no que tange à colaboração para o alcance dos objetivos propostos, ou seja, o desenvolvimento positivo do educando.
Considerações Finais
Diante do estudo, conclui-se que, para que haja realmente uma educação inclusiva, a grade curricular deve estar de acordo com a realidade vivenciada no ambiente escolar, investindo não apenas em organização documental, mas na preparação adequada dos docentes para então se obter um resultado satisfatório no desenvolvimento da criança com microcefalia.
Observou-se ainda que a psicomotricidade pode ser uma grande aliada do progresso dos discentes com características típicas da microcefalia, pois a técnica, se trabalhada adequadamente, de acordo com as necessidades apresentadas pela criança, contribuirá com o avanço motor, social, afetivo e cognitivo, explorando, assim, habilidades preexistentes e abrindo espaço para novos saberes, ajudando no alcance dos objetivos preestabelecidos na prática da Educação Infantil, que seria o desenvolvimento integral da criança de até cinco anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.
Vivianne Oliveira de Deus é graduada em Ciências Contábeis (Unifavip-Devry), pós-graduada em Coordenação Pedagógica e Gestão Escolar (Fafica) e em Psicomotricidade (Alpha) e gestora pedagógica (Colégio Revelação – Caruaru/PE).