Edição 13

É dia...

A família e o compromisso com a ética e a moral

Francisco Xavier Medeiros Vieira

I – Introdução

1.Família, Ética e Moral —
Conceituação

O estudo da ética baliza o comportamento humano e nos conduz a parâmetros conhecidos: o eterno e parabólico contraste — o bem e o mal, a virtude e o pecado, a verdade e o erro, o joio e o trigo.

A moral diz respeito aos costumes e se constitui num conjunto de regras de procedimento.

Via de regra, a conduta das pessoas tem seu nascedouro na Família, cujas funções variaram no curso da História. Instituição social primária, caracteriza-se pela residência comum e pelo convívio de pais e filhos. Certo é que, desde tempos imemoriais, a Família é responsável pela “reprodução da espécie, pela criação e socialização dos filhos e pela transmissão essencial do patrimônio cultural”1.

Vivemos uma época de grandes transformações e de exigências que nos impedem, muitas vezes, o compartilhar, o dialogar, o encontro. Mas a família continua sendo o referencial insubstituível.

Dizia Rousseau que “a família é o primeiro modelo das sociedades políticas: o chefe é a imagem do pai; o povo, a imagem dos filhos”2. É de Mirabeau esta constatação: “Os sentimentos e os costumes, que são a base da felicidade pública, formam-se no lar”3. Ou, como lembrou Balzac: “a família será sempre a base das sociedades”4.

O modo como nós, pais, encaramos a vida tem influência decisiva na formação dos filhos. A educação lastreada em padrões autoritários, na rigidez da intolerância, no desprezo pela inclinação transcendental, na ausência de compromisso, na ética dicotômica do indivíduo versus a sociedade irá gerar, forçosamente, cidadãos deslocados do eixo social, descrentes, sem chance de realização ou, como diz a sabedoria popular, “de mal com a vida”. É preciso encarar o mundo com realismo, mas sem perder a dimensão utópica.

Depende de cada um de nós a felicidade do nosso próximo mais próximo, de nossos familiares, de nossos companheiros de trabalho, de nossos amigos. Somos responsáveis por nossos relacionamentos. Uma visão otimista melhora a qualidade de vida, como sugere esta lenda japonesa:

“Num pequeno vilarejo, havia um lugar conhecido como ‘A casa dos mil espelhos’. Um cãozinho feliz soube desse lugar e resolveu visitá-lo. Lá chegando, saltitou feliz até a entrada da casa. Olhou através da porta, com suas orelhinhas bem levantadas e a cauda balançando tão rapidamente quanto podia. Para surpresa sua, deparou-se com mil outros felizes cãezinhos, todos abanando as suas caudas como ele próprio o fazia. Abriu um enorme sorriso e foi correspondido com mil enormes sorrisos. Quando saiu da casa, pensou: ‘Que lugar maravilhoso! Voltarei muitas vezes’.

Nesse mesmo vilarejo, um outro cãozinho, que não era tão feliz como o primeiro, decidiu visitar a casa. Escalou lentamente as escadas e olhou através da porta. Quando viu mil olhares hostis de cães que o olhavam fixamente, rosnou, mostrando os dentes, e ficou horrorizado ao ver mil cães rosnando e mostrando os dentes para ele.

Ao sair, pensou: ‘Que lugar horrível! Nunca mais voltarei aqui’.”

Conclui a lenda que todos os rostos do mundo são espelhos.

Que tipo de reflexos você vê nos rostos das pessoas que encontra?

2. Tempos de Adversidade

Uma indagação desde logo se impõe:

Quais os reflexos do mundo conflagrados em cada família, de qualquer parte do planeta?

Reagimos, interagimos ou permanecemos neutros?

A neutralidade pode significar alienação e quase sempre expõe o pior — a omissão.

Como orientar nossos filhos para um comportamento social ético se permanecemos insensíveis ao que acontece, em guerra explícita, noutras regiões do globo? Ou se somos indiferentes à miséria, à exclusão e à desesperança instaladas ao nosso redor?

Na verdade, estaremos contribuindo indiretamente para a desordem e o caos, se continuarmos alheios ao que acontece no mundo. Leonardo Boff lembra que o projeto da tecnociência gestou o princípio da autodestruição da vida5. A máquina da morte já construída pode pôr fim à biosfera por vinte e cinco formas diferentes e impossibilitar o projeto planetário humano. Na guerra bacteriológica, basta meio quilo de toxina do botulismo para matar um milhão de pessoas. Existem acumulados, nas potências militaristas, cerca de trinta quilos da toxina do botulismo. Botulismo, ou alantíase, é decorrente de uma neurotoxina responsável pelo envenenamento alimentar.

Recente episódio diplomático atesta bem o ponto a que chegaram as relações internacionais: a destituição do brasileiro José Maurício Bustani do cargo de diretor-geral da Organização para a Proibição das Armas Químicas – Opaq, órgão da ONU, sediado nos EUA. Quarenta e oito votaram a favor da demissão e quarenta e três se abstiveram.

Quais as razões?

Os EUA tutelam os organismos multilaterais, impondo sua vontade ao resto do mundo. Interferem e não admitem uma postura independente.

O término da “guerra fria” parece que pôs fim, por paradoxal que pareça, à esperança de paz permanente, como se viu na intervenção norte-americana no Afeganistão e, com o apoio dessa superpotência, no massacre perpetrado pelos israelenses contra os palestinos. Sem contar outros tantos conflitos espalhados pelo mundo, alimentados pela indústria bélica e por outros interesses econômicos, como as jazidas petrolíferas da Ásia Central…

Eric Hobsbawm argumenta, contudo, que a nova ordem internacional, por meio de força unilateral, tende a fracassar porque o sistema mundial permanecerá multilateral e “sua regulação dependerá da habilidade de diversas grandes unidades em concordar umas com as outras, mesmo que um desses Estados desfrute de predominância militar”6. Negociação e não imposição unilateral. Mas o papel da ONU e de outros organismos internacionais — continua — deve ser repensado: “A ausência de um intermediário internacional considerado genuinamente neutro e capaz de tomar uma atitude sem ser anteriormente autorizado pelo Conselho de Segurança tem sido a lacuna mais óbvia no sistema de gerenciamento de disputas”.

Sem espírito crítico e sem uma análise precisa do que está acontecendo, não se preparam lideranças esclarecidas, formadas em padrões éticos claramente delineados.

Essa visão universalizadora, generalizada, é importante para que se possa construir, a partir do meio em que vivemos, uma nova sociedade, pluralista, fraterna e feliz.

3. Desafios a Enfrentar Neste Início
de Terceiro Milênio

Estima-se em 187 milhões o número de mortes decorrentes de guerras só no século XX.

Outras “guerras” silenciosas se processam, atualmente, corporificadas no desemprego ou no subemprego, na desnutrição, na fome, na miséria, na violência, na exclusão, na degradação ambiental, na concentração da renda, da terra e da riqueza, dizimando pessoas e matando a esperança de muitos.

Quais as causas notórias da violência? A miséria (não a pobreza), a desagregação familiar e o tráfico de drogas ilícitas.

Todas as soluções aventadas para tão grave desordem social passam, necessariamente, pela Educação. Educação, não apenas instrução.

Educar — sentenciou Madre Cristina — é “transformar o mundo, rompendo com os padrões já perecidos no tempo”.

Penso que, para transformar o mundo com base no beiral nativo, passando pelo local de trabalho, pelo bairro, pela cidade, é necessária uma atitude construtiva e profética. Não se constrói sem entusiasmo, sem fé e sem esperança e, sobretudo, sem Amor. Devemos “marcar o mundo com a nossa presença”. Pelo exemplo, pela palavra, pela participação.

É preciso buscar, com fervor, uma nova civilização, baseada em valores éticos, sociais, culturais e políticos, não dissociados da honra, da dignidade, do altruísmo, da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Trata-se de confrontar outros valores menos nobres ou contravalores. É uma luta contra a corrupção, contra a venalidade, contra a lógica de mercado que privilegia o ter, o poder pelo poder, que despreza o ser, e que, por isso, busca a felicidade na exclusiva conquista de bens materiais.

Nesse passo, convém distinguir os valores permanecentes dos transitórios.

Compete ao educador incutir, no educando, princípios axiológicos inegociáveis. É evidente que, nesse campo, mais que qualquer palavra, vale o exemplo.

Como não há “educação neutra”, o pior que pode acontecer no processo educativo é a alienação.

II – Educação e Compromisso

1. Indivíduo, Família e Sociedade

“Homem algum é uma ilha”…
Família alguma é uma ilha…
Sociedade alguma é uma ilha…

Afirma-se que ninguém pode ser feliz sozinho. Nem a família pode isolar-se. Nem a própria comunidade local ou nacional. O mundo, na verdade, é uma “aldeia global”.

Por que o mundo vive conflituosamente, se o homem, feito à imagem e semelhança de Deus, nasceu para ser feliz?

Uma resposta menos elaborada, simplista, diria que as causas são várias, destacando-se o egoísmo, o egocentrismo, a vaidade, o orgulho, a ganância, a sede de poder, o prazer desenfreado, o hedonismo, a maldade, o ódio, as injustiças, a falta de oportunidades, a desigual distribuição de renda, todo um cortejo de misérias que nasceu do desamor.

As três maiores religiões — o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo — são monoteístas, professam a fé num Deus único, com a diferença de que os cristãos acreditam num monoteísmo trinitário. Todos cremos no Deus Amor, no Deus Pai, mas nós, cristãos, deveríamos nos perguntar se não vivemos distanciados da base da nossa fé — o mandamento do amor —, que era a marca dos primeiros cristãos: “Vede como eles se amam!”.

Certamente, não haverá paz enquanto as pessoas viverem ignorando Deus, o referencial sem o qual inexiste a verdadeira felicidade.

No contexto familiar, o indivíduo só se sentirá bem se o clima emocional do lar for de boa qualidade, se houver respeito mútuo, se respirar liberdade, se o relacionamento for marcado pelo amor; quando se compreender que o ser humano é único, irrepetível, singular, e o será sempre, mesmo que exista cientificamente a condenada experiência da clonagem humana.

A família é lugar de troca, de crescimento, de realização.

Supérfluo acrescentar que uma sociedade feliz depende de famílias bem estruturadas, não necessariamente de famílias economicamente prósperas, porém felizes.

2. Efeitos da Globalização

Seria ingenuidade afiançar que, apesar de todos os esforços individuais e familiares, a aventura humana pessoal não encontrará percalços. Ao contrário, não se sentirá o sabor da vitória sem luta. Educar é, também, preparar para os embates diários, para os desafios da vida.

A construção de uma nova civilização exige um esforço hercúleo, individual e coletivo.

Todos quantos vivemos no Terceiro Mundo estamos sujeitos ao mercado e ao capital, com seus ícones — o FMI, o Bird, a OMC —, às conseqüências da dívida externa, a pressões de toda ordem…

O Fórum Social Mundial, as manifestações populares de Seattle e Gênova, contrárias à globalização capitalista, são um sinal positivo de conscientização da cidadania e um grito em defesa dos direitos fundamentais.

A Conferência Internacional sobre Financiamento ao Desenvolvimento, realizada em março de 2002, na cidade de Monterrey, México, mostrou ao mundo um quadro preocupante: 1,2 bilhão de pessoas sobrevive com menos de US$ 1 por dia; 826 milhões não dispõem de alimentação adequada; 11 milhões de crianças até 5 anos morrem por ano de causas evitáveis; 325 milhões de crianças não estão escolarizadas; 850 milhões de pessoas padecem de analfabetismo; 2,4 bilhões não têm saneamento básico; quase 1 bilhão carece de água potável. Outra informação preocupante acaba de ser divulgada pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), embora tenha diminuído o número de crianças que trabalhavam no Brasil entre 1992 e 1999, o relatório denuncia a significativa parcela de crianças em todo o mundo nas piores formas de trabalho, como a prostituição – 10% delas no Brasil.

A OIT lista os grupos de risco: tráfico de drogas, narcoplantio, trabalho doméstico, exploração sexual.

Perpassa, de outro lado, no tecido social terceiro-mundista, uma invencível sensação de insegurança. A violência se alastra.

3. Integração Comunitária.
Responsabilidade Social

O isolamento, individual ou familiar, decreta a falência da educação. A insegurança, mormente nas grandes cidades, leva ao isolamento. As grades e os muros altos são símbolos desse enclausuramento. Mas, não obstante tal anomalia, é preciso lutar contra esse tipo de solidão. A integração comunitária é o antídoto. Quando as pessoas se reúnem para debater e procurar soluções, a sociedade se qualifica diante dos desafios do cotidiano.

A exclusão social ditada por fatores conhecidos pode e deve ser combatida, priorizando-se investimentos sociais na educação, saúde, segurança e geração de empregos. Também através de uma verdadeira Reforma Agrária, e não com medidas paliativas ou processos enganadores. Um país com a dimensão do Brasil, com tanta terra ociosa e improdutiva, é, na verdade, um país injusto, que favorece os latifúndios e que expulsa, do campo, o agricultor. Por que não prestigiar a agricultura familiar? Por que não incentivar as cooperativas? Por que não emprestar a juros módicos e prazos alongados?

A fome é uma vergonha nacional. Beira a irracionalidade, o descaso pela solução séria do problema que, diga-se, a bem da verdade, vem sendo enfrentado por alguns governos estaduais esclarecidos.

Cumpre diminuir a exclusão. É preciso incluir. Ansiamos todos por Justiça!

A família tem o dever ético de participar dessa luta. A responsabilidade social começa no lar. Através de um debate crítico, de propostas de engajamento.

Enfrentamos graves distorções: agremiações políticas democraticamente frágeis, porque não representam o contingente eleitoral, quase sempre alheio, alienado, não-participativo.

O voto é obrigatório, não há financiamento público das campanhas e os poderes econômico e político dominam o pleito. Escolhem-se candidatos não por seus projetos, mas por sua simpatia ou por troca de favores.

A responsabilidade de cada cidadão esclarecido é ainda maior, porque precisa ter uma dimensão profética no argumentar, no denunciar, no construir uma mentalidade nova.

III – Conclusão

1. Compromisso Ético

Qual é o nosso compromisso ético para melhorar a sociedade em que vivemos?

Madre Cristina dividiu a humanidade em três grandes grupos: o dos alienados; o dos que são contra a evolução histórica; e o dos comprometidos — aqueles que constroem a História e cuja missão é legar aos pósteros um mundo melhor.

Agir com ética, defendendo seus direitos e respeitando os direitos dos outros, é ponto fundamental para que vivamos em paz.

Os valores perenes devem ser ressaltados através do exemplo e da ação.

A responsabilidade de cada cidadão será posta em prática. Começa no lar. Os pais têm obrigação de esclarecer os filhos, desenvolvendo seu senso crítico, argumentando, respondendo seus questionamentos, construindo uma nova mentalidade, baseada no bem comum e na busca por uma sociedade melhor, em que todos tenham seus direitos assegurados também na prática.

Nosso compromisso ético deve ser radical. Não adiantam contem-porizações. É inegociável.

Uma prática recomendável é enfrentar, com espírito crítico, os acontecimentos que entram diariamente em nossas casas, pelo rádio, pela imprensa, pela televisão. Afinal, são tantos os escândalos que já nos acostumamos à indiferença. Estamos perdendo a capacidade de indignação! E isso é perigoso. Vamos discutir, procurar soluções, exercer efetiva cidadania. A omissão faz o jogo dos maus.

2. O Ideal de Paz

Dalai Lama, em seu excelente livro Uma Ética Para o Novo Milênio7, fala em descaso pela dimensão interior do homem, “que fez com que todos os grandes movimentos dos últimos cem anos — democracia, liberalismo, socialismo — tenham deixado de produzir os benefícios que deveriam ter proporcionado ao mundo, apesar de tantas idéias maravilhosas”. Qual a sua proposta?

Uma revolução espiritual. Não uma solução religiosa para os problemas que afligem a humanidade. E explica que “a religião se relaciona com a crença da salvação, pregada por qualquer tradição de fé, enquanto que a espiritualidade relaciona-se com as qualidades do espírito humano: amor, compaixão, paciência, tolerância, capacidade de perdoar, humildade, contentamento, noção de responsabilidade e de harmonia”. Esses sentimentos trazem felicidade tanto para a própria pessoa como para os outros. A paz interior é a característica principal da felicidade.

“Um oceano se forma gota a gota. Graças ao amor do ser humano pela verdade, pela justiça, pela paz e pela liberdade, criar um mundo melhor e mais compassivo é uma possibilidade legítima.”

3. A Construção do Futuro com
base no Casal e na Família

A educação — um processo que se estende por toda a vida — depende de referenciais, de modelos.

Na infância e na meninice, o referencial maior são os pais, cuja imagem é imprescindível à formação. O modo de ser e de viver destes, os valores que cultivam ditarão o clima de vivência familiar. O futuro nasce no lar. O termômetro social oscila de acordo com o nível de amorização das famílias.

A tarefa é ingente, mas não há outra escolha senão a do comprometimento.

Cumpre transmitir às gerações porvindouras a idéia de que é possível combater a injustiça sem que haja necessidade de violência, quaisquer que sejam seus métodos ou suas justificativas.

Mahatma Gandhi, arauto pacifista, é eloqüente exemplo dessa assertiva. Por que é tão famoso o homem que libertou a Índia e mostrou ao mundo o caminho da mudança sem violência? “Ele vestia uma túnica simples, calçava sandálias e nunca assumiu cargos políticos ou administrativos. Jamais comandou exércitos e chegou ao fim da vida sem qualquer poder. Ainda assim, quando morreu, assassinado por um fanático, representantes de metade dos países do mundo compareceram ao seu funeral”8.

 

1 Rios, José Arthur. Dic. Ciências Sociais, 2a. ed. / 2 Rousseau, Jean-Jacques. Du Contrat Social. / 3 Mirabeau. Discours sur la Sucession /
4 Balzac, H. O Cura da Aldeia / 5 Boff, Leonardo. Fundamentalismo, Ed. Sextante, 2002, pág. 40.

6 Hobsbawm, Eric. Texto publicado no London Review de Book, traduzido por Victor Aiello Tsu, Folha-Mais, 14/04/2002.

7 Lama, Dalai.Uma ética para o Terceiro Milênio, Sextante. / 8 Nicholson, Michael. Mahatma Gandhi. Ed. Globo, 1993.

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