Edição 47

Profissionalismo

A guerra dos métodos na alfabetização

Vicente Martins

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O presente artigo responde a quatro perguntas sobre método de alfabetização em leitura: (1) O método fônico é o mais eficaz para a alfabetização? (2) Quais as principais diferenças entre o modelo fônico e o construtivista? (3) Segundo uma pesquisa feita pela revista Veja, 60% das escolas adotam o modelo construtivista para a alfabetização dos alunos. Por que a grande maioria opta por esse método? (4) Quais as vantagens que o aluno tem ao ser alfabetizado pelo método fônico?

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Comecemos pela primeira questão. Não é de hoje que há uma guerra dos métodos de alfabetização em leitura, no Brasil e fora dele, especialmente na Europa, que, na verdade, dissimula uma outra guerra, de ordem ideológica e financista, entre especialistas no mundo da lectoescrita.

Diríamos que, há pelo menos um século, discutimos a prevalência de um método sobre o outro. Ontem, hoje e amanhã, certamente, quem ganha, claro, terá seus dividendos editoriais e mais prestígio nacional ou internacional sobre o campo fértil das mídias, que é o da leitura e da escrita.

No Brasil, nos anos 60 do século passado, o educador Paulo Freire, por exemplo, com seu método de alfabetização, ganhou notoriedade internacional por defender a aquisição da leitura além do acesso ao código linguístico e por levar o alfabetizado a uma visão crítica, política e politizada de um mundo do trabalho, do cotidiano, da vida em sociedade, povoado de inquietações, aspirações sociais, violências simbólicas, conflitos de classes sociais e controlado por forças de dominação econômica e cultural. Esse é um modelo inspirador para os alfabetizadores do século XXI.

A peleja dos métodos de alfabetização está bem polarizada: métodos fônicos de um lado; do outro, os construtivistas. Os métodos fônicos também são conhecidos por métodos sintéticos, ou fonéticos. Partem das letras (grafemas) e dos sons (fonemas) para formar, com elas, sílabas, palavras e, depois, frases.

São vários modelos de métodos fônicos. Entre eles, o mais antigo e mais consistente, em termos de pedagogia da alfabetização em leitura, é o alfabético, ou a soletração, que consiste em, primeiro, ensinar as letras que representam as consoantes e, em seguida, unir as letras consoantes às letras vogais.

Os modelos alfabéticos de alfabetização em leitura, por seu turno, partem das sílabas para chegar às letras e aos seus sons nos contextos fonológicos em que aparecem. As cartilhas de ABC, durante muito tempo encontradas em mercearias ou bodegas ou mesmo mercados, eram o principal material didático e contavam com a presença forte do alfabetizador que acreditava que, pelo caminho da repetição das letras e dos seus sons, o aluno logo chegaria ao mundo da leitura.

Os métodos construtivistas de alfabetização em leitura, também chamados analíticos ou globais, partem das frases que se examinam e se comparam para, no processo de dedução, o alfabetizando encontrar palavras idênticas, sílabas parecidas e discriminar os signos gráficos do sistema alfabético.

A aplicação do método construtivista na prática tende a ser mais praxiologia do que mesmo método. Por que praxiologia? Induz à alfabetização, centra-se no alfabetizando, e não no alfabetizador, quando, a rigor, nesse momento, a intervenção do educador se faz importante, uma vez que há necessidade, na alfabetização, de um ensino sistemático e diretivo para levar o aluno à compreensão do sistema de escrita da língua. É na alfabetização que o aluno deve construir a consciência linguística da leitura.

A tradição helênica de alfabetização nos leva a considerá-Ia uma importante etapa da educação escolar (embora a Lei de Diretrizes e Bases da Educação — LDB, promulgada em 1986, não faça referência a uma sala específica de alfabetização na Educação Infantil ou no Ensino Fundamental), uma iniciação no uso do sistema ortográfico.

Há uma espécie de consenso entre os alfabetizadores de considerar que a alfabetização é um processo de aquisição dos códigos alfabético e numérico cuja finalidade última é levar o alfabetizado ao letramento e ao enumeramento, isto é, a adquirir habilidades cognitivas para desenvolver práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes tipos de material escrito.

Mas como garantir a alfabetização em leitura? Através de métodos ou estratégias de aprendizagem. Por isso, quando nos reportamos, historicamente, aos métodos de alfabetização em leitura, estamos nos referindo, dentro da longa tradição da alfabetização, a um conjunto de regras e princípios normativos que regulam o ensino da leitura. Nos anos 1960, a maioria da população brasileira aprendeu a ler pelo método da silabação, que consiste em ensinar a ler por meio do aprendizado de sílabas e, a partir delas, formar palavras e frases. A segmentação das sílabas em fonemas e letras é uma etapa posterior.

Todavia, só o método em si não garante a aprendizagem. É importante a formação do alfabetizador. Sem formação linguística, o método pode perder sua eficácia. A alfabetização em leitura é diretamente relacionada com o sistema de escrita da língua.

No caso das chamadas línguas neolatinas, particularmente o português e o espanhol, o método fônico se torna um imperativo educacional por conta do próprio sistema linguístico, isto é, o chamado princípio alfabético, manifesto na correspondência entre grafemas e fonemas e na ortografia fônica, mais regular e, digamos assim, mais biunívoca: uma letra representa um fonema, na maioria dos casos. Como a língua não é perfeita e unívoca exatamente por ser social, construída historicamente pela comunidade linguística, sons como /sê/ ou /gê/ poderão ter várias representações gráficas, transformando esses casos isolados em contextos equívocos que, no fundo, podemos contar nos dedos e que não perturbam o processo de alfabetização.

Com as afirmações acima, já podemos estabelecer algumas diferenças básicas entre os dois métodos. O fônico, como o próprio nome nos sugere, favorece o princípio alfabético, a relação grafema-fonema e seu inverso, isto é, a relação fonema-grafema. Se a escola partir do texto escrito, no método fônico, estará, assim, enfatizando a relação grafema- -fonema. Se a escola parte da falta do alfabetizando, focalizará, desde logo, a relação fonema-grafema.

O grande desafio dos docentes ou dos pedagogos da leitura é, tendo conhecimento de linguística e alfabetização, levar os alunos a entenderem, ao longo do processo de alfabetização, as noções de fonema e grafema. Entender, por exemplo, que fonema, som da fala, faz parte do chamado módulo fonológico, uma herança genética do ser humano.

Na fase de balbucio, os sons da fala ainda não são manipulados pela criança, mas, a partir dos três anos de idade, ela já é considerada nativa, e a escola pode ensinar ao educando, metodicamente, o sistema sonoro da língua, levando-o à consciência fonológica, ou fonêmica, de modo que entendam que o fonema é a unidade mínima das línguas naturais no nível fonêmico, com valor distintivo.

Os investigadores de leitura mostram que o método fônico também é mais eficiente para as comunidades linguísticas pobres, ou seja, as camadas populares com acesso precário aos bens culturais da civilização letrada.

Por que isso ocorre? Graças ao fonema, podemos distinguir morfemas ou palavras com significados diferentes, todavia o próprio fonema não possui significado. Em português, as palavras faca e vaca distinguem-se apenas pelos primeiros fonemas /f/ e /v/.

Os fonemas não devem ser confundidos, todavia, com as letras dos alfabetos, porque estas frequentemente apresentam imperfeições e não são uma representação exata do inventário de fonemas de uma língua. As letras do alfabeto são signos ou sinais gráficos que representam, na transcrição de uma língua, um fonema ou grupo de fonemas. Como as letras não dão conta de todo o sistema de escrita, os linguistas falam em grafemas no campo da escrita.

Os grafemas, bastante variados, estão presentes no sistema da escrita da língua portuguesa. Para a compreensão da escrita alfabética ou da ortografia da nossa língua, a noção de grafema se faz necessária, uma vez que é uma unidade de um sistema de escrita que, na escrita alfabética, corresponde às letras e também a outros sinais distintivos, como o hífen, o til, os sinais de pontuação e os números. Além de não ter funcionado nem vir tendo uma resposta eficaz no sistema educacional da América Latina, uma vez que não se presta ao nosso sistema linguístico — ao contrário do método fônico, que requer conhecimentos metalinguísticos da fonologia da língua portuguesa —, o método global, demanda dos alunos uma maior carga de memorização lexical.

O método global de alfabetização em leitura peca porque sobrecarrega a memória dos alfabetizandos quando eles ainda não estão em processo de construção do seu léxico, que depende, como nos ensina o sociointeracionismo, das relações intersubjetivas ou interpessoais e de engajamento pragmático das crianças no uso social da língua. Numa palavra, diríamos que o método global depende muito das formas de letramento da sociedade, dos registros de atos de fala nos diferentes contextos sociais e culturais da sociedade, em que a palavra é, assim, o grande paradigma em ponto de partida da pedagogia da leitura. Para os países desenvolvidos e com equipamentos sociais à disposição dos alunos, cai como uma luva. Para os países subdesenvolvidos, tem se constituído uma lástima, e é deplorável a situação por que passa o Brasil nos exames nacionais e internacionais, anunciando o nosso país como o pior do mundo em leitura. Ao contrário do método fônico, o global não tem um caráter emancipatório, retarda o ingresso da criança no mundo da leitura.

A partir dos anos 80 do século passado, o Brasil, através de seus governos, influenciado pelos achados da psicogênese da escrita — realmente uma teoria (e não pedagogia) bastante sedutora em se tratando de postulações pedagógicas —, adotou o método construtivista para o sistema educacional, especialmente, o público. Uma década depois, os resultados pífios do Sistema de Avaliação da Educação Escolar (convertido, agora, em Prova Brasil) revelaram que as crianças, depois de oito anos de escolaridade, estavam ainda com nível crítico de alfabetização, mal sabiam decodificação, isto é, transformar os signos gráficos (letras) em leitura. Sem leitura, como sabemos, o aluno não tem estratégia de desenvolvimento de capacidade de aprender ou de aprendizagem.

Os primeiros seis anos do século XXI já assinalam o principal desafio dos governos, estabelecimentos de ensino e docentes no meio escolar: levar o aluno ao aprendizado da lectoescrita. O que deveria ser básico se tornou um desafio aparentemente complexo para os docentes da Educação Básica: assegurar, através de leitura, escrita e cálculo, a aprendizagem escolar.

Por que o domínio básico de lectoescrita se tornou tão desafiador para o sistema de ensino escolar? Por que ensinar a ler não é tão simples? Como desvelar o enigma do acesso ao código escrito? Em geral, quando nos deparamos com as dificuldades de leitura ou de acesso ao código escrito, esperamos dos especialistas métodos compensatórios para sanar a dificuldade.

Nenhuma dificuldade se vence com método mirabolante. O melhor caminho, no caso da leitura, é o entendimento linguístico do fenômeno linguístico que subjaz ao ato de ler. Ler é o ato de soletrar, de decodificar fonemas representados nas letras, reconhecer as palavras, atribuir-Ihes significados ou sentidos, enfim, ler, realmente, não é tão simples como julgam aIguns leigos.

O primeiro passo nessa direção é o de ensinar o aluno a aprender a ler antes para praticar estratégias de leitura depois; em outras palavras, atuar eficientemente com as dificuldades do acesso ao código escrito, as chamadas dificuldades leitoras, ou dislexias pedagógicas; é ensinar o aluno a aprender mais sobre os sons da língua, ou melhor, como a língua se organiza no âmbito da fala ou da escrita. Quando me refiro à fala, estou me referindo, sobretudo, aos sons da fala, aos fonemas da língua: consoantes, vogais e semivogais.

A leitura, em particular, tem sua problemática agravada por conta de dificuldades de sistematização dos sons da fala por parte da pedagogia ou metodologia de plantão: afinal, qual o melhor método de leitura? O fônico ou o global? Como transformar a leitura em uma habilidade estratégica para o desenvolvimento da capacidade de aprender e de aprendizagem do aluno?

Assim, um ponto inicial a considerar é a perspectiva que temos de leitura no âmbito escolar. Como linguista, acredito que a perspectiva psicolinguística responde a uma série de questionamentos sobre o fracasso da leitura na Educação Básica. Em geral, os docentes não partem, desde o primeiro instante de processo de alfabetização escolar, da fala. A fala recebe um desprezo tremendo da escola, e é fácil compreender o porquê: a escrita é marcador de ascensão social ou de emergência de classe social.

A escrita é ideologicamente apontada como sendo superior à fala. A tal ponto, podemos considerar essa visão reducionista da linguagem de que quem sabe falar, mas não sabe escrever na variação culta ou padrão de sua língua, não tem lugar ao sol, não tem reconhecimento de suas potencialidades linguísticas. Claro, a escrita não é superior à fala nem a fala é superior à escrita. Ambas são interdependentes. A alma e o papel, o pensamento e a linguagem, a fala e a memória, todos esses componentes têm um papel extraordinário na formação para o leitor proficiente.

Vicente Martins é professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), em Sobral, Estado do Ceará.
E-mail: vicente.martins@uol.com.br

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