Edição 33
Matérias Especiais
A idéia de infância e a sua escola
Márcia Teixeira Sebastiani
Para apresentar esta questão, vamos fazer uma breve, mas consistente, incursão na história da infância.
A referência para essa discussão é o importante historiador francês Philippe Ariès, que, na sua obra História Social da Criança e da Família, dedica-se às concepções de criança e família desde a Idade Média aos dias atuais.
Tendo como base essa obra de Ariès, o educador italiano Franco Frabboni, em seu texto A Escola Infantil entre a Cultura da Infância e a Ciência Pedagógica e Didática, organiza o entendimento histórico da criança por meio de três identidades.
Primeira identidade: Criança-adulto ou a infância negada – séculos XIV, XV.
Segunda identidade: Criança-filho-aluno ou criança-institucionalizada – séculos XVI, XVII.
Terceira identidade: Criança-sujeito social ou sujeito de direitos – século XX.
Primeira identidade: “A criança-adulto” ou a infância negada
Philippe Ariès foi buscar, nas artes e na literatura da idade medieval, a idéia que prevalecia sobre a criança e a infância. “Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo” (ARIÈS, p. 50). Afirma ainda o autor que as crianças eram desenhadas como o adulto em escala menor, com músculos e feições de adultos.
Vamos ver alguns exemplos de como eram retratadas as crianças:
A deformação física ou moral não é dissimulada por Bruegel. Um cão dorme no berço do menino que acaba de ser amamentado; outro menino recebe esmola do burguês visitante. Ao fundo, uma mulher prepara manteiga, e outra sai em busca de água.
HISTÓRIA das mulheres: do Renascimento à Idade Moderna. Porto: Afrontamento, 1991. v. 3.
Pieter Bruegel (cópia), Visita à quinta. Florença. Museu Stibbert.
É difícil imaginar a existência, na sociedade medieval, de um sentimento de infância. A criança era, ao mesmo tempo, um mistério (escondia uma natureza sagrada que o homem não podia profanar) e um ser sem humanidade, sem conceito social preciso (humanidade na lista de espera, como planta imperfeita), que só se tornaria pessoa se “jogada e abandonada” precocemente na sociedade dos adultos.
As crianças morriam, em grande número, pelas precárias condições de higiene e saúde, e as que sobreviviam se confundiam rapidamente com os adultos. Essa mortalidade infantil era considerada natural (indiferente): talvez pelo grande número de mortes, talvez porque acreditavam que a criança pequena não tinha “alma”.
Na imagem, o homem cuida do fogo, símbolo de que a ordem interna do lar lhe diz respeito em primeiro lugar, enquanto o filho, objetivo central do casamento, dá os seus primeiros passos com um “andador”.
HISTÓRIA das mulheres: Idade Média. Porto: Afrontamento, 1990, v. 2.
Miniatura de um livro de horas. Madri: Biblioteca Nacional.
Sobre a prática do infanticídio na Idade Média, assim nos ensina Ariès:
[…] um fenômeno muito importante e que começa a ser mais conhecido: a persistência até o fim do século XVII do infanticídio tolerado. Não se tratava de uma prática aceita, como a exposição em Roma. O infanticídio era um crime severamente punido. No entanto, era praticado em segredo, correntemente, talvez camuflado sob a forma de um acidente: as crianças morriam asfixiadas, naturalmente, na cama dos pais, onde dormiam. Não se fazia nada para conservá-las ou para salvá-las. […] O fato de ajudar a natureza a fazer desaparecer criaturas tão pouco dotadas de um ser suficiente não era confessado, mas tampouco era considerado como vergonha. Fazia parte das coisas moralmente neutras, condenadas pela ética da Igreja e do Estado, mas praticadas em segredo, numa semiconsciência, no limite da vontade, do esquecimento e da falta de jeito (Ariès, 1978, p. 17).
De outro lado, existia um sentimento superficial da criança, a “paparicação”, em seus primeiros anos de vida. As pessoas se divertiam com a criança pequena como com um animal de estimação.
Ariès dizia que “esse sentimento da infância pode ser ainda melhor percebido através das reações críticas que provocou: (…) algumas pessoas rabugentas consideravam insuportável a atenção que se dispensava, então, às crianças (…)”. (Ariès, 1978, p. 159).
Vejamos um testemunho desse estado de espírito, por meio de uma canção escrita por Coulanges e dedicada aos “pais de família”. (Ariès, 1978, p. 160, 161):
Para bem educar vossas crianças,
Não poupeis o preceptor;
Mas, até que elas cresçam,
Fazei-as calar quando estiverem entre adultos,
Pois nada aborrece tanto
Como escutar as crianças dos outros.
O pai cego acredita sempre
Que seu filho diz coisas inteligentes,
Mas os outros, que só ouvem bobagens,
Gostariam de ser surdos;
E no entanto é preciso
Aplaudir o enfant gâté.
Quando alguém vos disser, por polidez,
Que vosso filho é bonito e bem-comportado
Ou lhe der balas,
Não exijais mais nada.
Fazei vosso filho, assim como seu preceptor,
Agir como um servidor.
Ninguém acreditaria que uma pessoa de bom senso
Pudesse escrever
Para criancinhas de três anos,
Se as de quatro não sabem ler.
No entanto, há pouco tempo,
Vi um pai entregue a essa tola diversão.
Sabei ainda, caros amigos,
Que nada é mais insuportável do que ver vossos filhinhos
Pendurados na mesa como uma réstia de cebolas,
Moleques que, com o queixo engordurado,
Enfiam o dedo em todos os pratos.
Que eles comam em outro lugar,
Sob as vistas de uma governanta
Que lhes ensine a limpeza
E não seja indulgente,
Pois não se pode, com rapidez,
Aprender a comer com limpeza.
Ainda sobre a “paparicação”, podemos dizer que, mesmo atualmente, tem-se um tanto desse sentimento, principalmente quando muitas escolas de Educação Infantil guardam referência a essa criança relacionada a um animalzinho de estimação, um mimo dos adultos. Isso se percebe através dos nomes que lhes são dados: Pirilampo, Ursinho Pimpão, Totó, Fofinho e tantos outros.
Podemos concluir que, nesse período, essa identidade da criança está definida pelo não-sentimento de infância, o que não quer dizer que não havia afeto pelas crianças ou que, na totalidade, eram abandonadas ou desprezadas, mas, sim, que não havia uma consciência da particularidade infantil, ou seja, não se distinguia a criança do adulto.
Segunda identidade: a criança-filho-aluno ou a criança institucionalizada
Esse período compreende os séculos XVI e XVII, quando se inicia um novo episódio existencial da infância. Há, segundo Frabboni, “uma virada de página”. Junto com a Revolução Industrial, há uma mudança da posição da família na sociedade. É o surgimento da família moderna. A infância torna-se o centro do interesse educativo dos adultos (sentimentos de afetividade, cuidados, reconhecimento, continuidade da família).
Citando Ariès: “Os pais não se contentavam mais em pôr filhos no mundo, em estabelecer apenas alguns deles, desinteressando-se dos outros. A moral da época lhes impunha proporcionar a todos os filhos, e não apenas ao mais velho — e, no fim do século XVII, até mesmo às meninas —, uma preparação para a vida. Ficou convencionado de que essa preparação fosse assegurada pela escola” (Ariès, 1978, p. 277).
A escola é o meio de educação. Isso quer dizer que a criança deixou de aprender a vida por meio do contato direto com os adultos. Ela foi separada dos adultos próximos (basicamente familiares) e mantida a distância na escola. Começa um longo processo de “enclausuramento” das crianças.
Ainda Ariès: “A escola confinou uma infância outrora livre num regime disciplinar cada vez mais rigoroso, que, nos séculos XVIII e XIX, resultou no enclausuramento total do internato” (Ariès, 1978, p. 277). Nesse período, as ordens religiosas tornaram-se dedicadas ao ensino às crianças e aos jovens.
Passou-se a ter interesses psicológicos e preocupações morais em relação às crianças. Era preciso conhecê-las melhor para, assim, poder “corrigi-las”.
Duas idéias novas surgem ao mesmo tempo: a noção da fraqueza da infância e o sentimento da responsabilidade moral dos mestres. O sistema disciplinar que elas postulavam não se podia enraizar na antiga escola medieval, onde o mestre não se interessava pelo comportamento de seus alunos fora da sala de aula. […] A nova disciplina se introduziria através da organização já moderna dos colégios e das pedagogias, com a série completa de classes, em que o diretor e os mestres deixavam de ser primi inter pares para se tornarem depositários de uma autoridade superior. Seria o governo autoritário e hierarquizado dos colégios que permitiria, a partir do século XV, o estabelecimento e o desenvolvimento de um sistema disciplinar cada vez mais rigoroso. Para definir esse sistema, distinguiremos suas três características principais: a vigilância constante, a delação erigida em princípio de governo e em instituição e a aplicação ampla de castigos corporais (Ariès, 1978, p. 180).
Em relação à família, esta tornou-se o centro de afeição entre pais e filhos, algo que não era antes. E um sentimento inteiramente novo: os pais se interessavam pelos estudos de seus filhos e os acompanhavam com intensidade. A família começou a se organizar em torno da criança, sem a indiferença que marcou o passado.
Um detalhe interessante que pode ser percebido nas camadas sociais superiores é que as crianças ganharam roupa específica que as distinguia dos adultos. Era uma prova da mudança ocorrida na atitude com relação a elas.
Também o reduto familiar torna-se cada vez mais privado e, progressivamente, assume funções antes preenchidas pela comunidade; observe-se que a família não é nova, mas, sim, o sentimento de família é que muda.
Desse período, concluímos que a criança paga um preço alto pela conquista da sua identidade de criança-filho-aluno(a). Como diz Frabboni: é a criança institucionalizada, “[…] o direito de ser criança (de ter atenções/gratificações/espaços/jogos) é legitimado somente sob a condição de pertencer a esse tipo de família e a esse tipo de escola” (Frabboni, 1998, p. 67). Isto é, somente na estrutura de relações de propriedade e de poder. “A criança existe somente como minha, tua, nossa, sua criança, ou seja, dentro de uma estreita privatização de relações e de definições” (Frabboni, 1998 p. 67).
Terceira identidade: a criança-sujeito social ou sujeito de direitos
Podemos começar perguntando: Quem é a criança de hoje? Quando observamos nossas crianças, podemos dizer que, apesar da semelhança cronológica, existem diferentes infâncias:
A da criança pertencente a uma família com nível sócio-econômico alto, que brinca e estuda, mas tem uma rotina preenchida com inúmerasatividades (esporte, estudo de línguas estrangeiras, artes etc.).
A da criança que participa da formação de renda da família e por issotrabalha e nem sempre pode estudar.
A da criança que, nas grandes cidades, acompanha os adultos ou atémesmo outras crianças, e fica pedindo esmolas ou cometendo pequenas infrações.
A da criança que ajuda o pai ou a mãe nas tarefas diárias de casa oudo trabalho, aprendendo desde cedo uma profissão.
Todas são crianças, porém suas situações de socialização, condições de vida, seu tempo de escolarização, de brincadeiras e de trabalho são diferentes. É fundamental que tenhamos consciência dessas diferenças para que saibamos conhecer melhor as crianças com quem convivemos e por quem, como educadores, temos responsabilidades.
A etapa histórica em que estamos vivendo, marcada pelo avanço tecnológico-científico e por mudanças ético-sociais, apresenta os requisitos necessários para que, finalmente, a educação infantil dê um salto no sentido de compreender a criança como sujeito social e, portanto, um sujeito com direitos.
Essa mudança só será possível se a família e a escola forem capazes de compreender, seguindo o pensamento de Frabboni, que a criança é:
[…] séria, concentrada, empenhada em ampliar — por si mesma — seus próprios horizontes de conhecimento (através de uma constante atividade exploradora e interrogativa); […] que possui grande voracidade “cognitiva” e saboreia uma descoberta após a outra e que escolhe sozinha seus próprios itinerários formativos, suas trilhas culturais, livre dos elos que impediam o seu crescimento; […] sabe observar o mundo que a cerca; sabe perscrutar e sonhar com horizontes longínquos; […] sai do mito e da fábula porque sabe olhar e pensar com a sua própria cabeça (Frabboni, 1998, p. 69).
É capaz de construir e de ler a sua realidade, é a protagonista da sua própria história, é capaz de interagir com as pessoas com quem tem referência e com outras crianças, assim como influenciar ambos significativamente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1978.
FRABBONI, F. A escola infantil entre a cultura da infância e a ciência pedagógica e didática.
In: ZABALZA, M. Qualidade em Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 1998.
Texto cedido gentilmente pela autora, Márcia Teixeira Sebastiani, retirado de sua obra intitulada Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Educação Infantil – Editora Iesde.