Edição 59

Espaço pedagógico

As “mães” do Patinho Feio

Clarissa Pinkola Estés

A história de Hans Christian Andersen, O Patinho Feio, contém diversas interpretações que podem enriquecer a vida de qualquer ser humano. Ela também revela estruturas maternas que podem nos ajudar a avaliar o nosso complexo materno interior.

A analista junguiana e contadora de histórias Clarissa Pinkola Estés, em sua obra Mulheres que Correm com os Lobos, mostra como, a partir de mitos, contos de fadas e lendas do folclore, a mulher pode se ligar aos atributos do arquétipo da mulher selvagem. O termo selvagem não é usado em seu sentido pejorativo, mas em seu sentido original, o de viver uma vida natural, em que um indivíduo possui uma integridade inata e limites saudáveis.

Em sua obra, ela conta e analisa diversas histórias, entre elas O Patinho Feio, do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, publicada, pela primeira vez, em 1845, que trata do arquétipo do ser incomum e diferente e da descoberta daquilo a que pertencemos.

A história conta que um ovo de cisne foi casualmente chocado no ninho de uma pata. Ao sair do maior ovo do ninho, o filhote assustou a mãe pata por ser uma criatura grande e desajeitada. Por ser diferente de seus irmãos, passou a ser perseguido, ofendido e maltratado por todos os patos e todas as galinhas do terreiro. A princípio, sua mãe o defendia, mas, com o tempo, ela se cansou da situação. Certa vez, ela lhe disse, desesperada, que desejava que ele fosse embora. Cansado de tanta humilhação, o patinho decidiu fugir. Durante sua jornada, ele peregrinou por diversos lugares, mas sempre foi rejeitado por todos que encontrava. Ele enfrentou o frio do inverno, mas, quando chegou a primavera, abriu suas asas e se uniu a um bando de cisnes, no qual foi reconhecido como um dos mais belos.

Para Estés, apesar das diversas versões de O Patinho Feio, o seu núcleo e significado são os mesmos. A história simboliza a natureza selvagem, que, quando forçada a enfrentar circunstâncias pouco favoráveis, luta para continuar viva.

Um dos aspectos interessantes observados por Estés nessa história de Andersen são os atributos da mãe pata. A mãe da história pode ser interpretada como um símbolo da nossa própria mãe exterior. Entretanto, a autora lembra que a maioria dos adultos tem uma mãe interior, formada não apenas pela mãe real, mas também por outras figuras maternas de suas vidas, assim como as imagens da boa mãe e da mãe perversa exibidas durante a infância.

Na psicologia junguiana, esses temas fazem parte do Complexo Materno. Como todo arquétipo, o da grande mãe tem tanto aspectos positivos quanto negativos, que podem apresentar-se de inúmeras formas, revestidos por uma infinidade de imagens. Jung menciona que as representações mais comuns são as das mulheres com quem nos relacionamos (mãe, avó, madrasta, sogra, ama de leite, etc.). Dessa forma, são atribuídas ao arquétipo da mãe características tanto de acolhimento, cuidado, sabedoria e suporte como aterrorizantes, obscuras, devoradoras e advindas do mundo dos mortos.

A imagem da mãe varia conforme a experiência individual, em que a predominância parece ser a da mãe pessoal. Entretanto, é do arquétipo projetado na mãe pessoal que surgem os efeitos positivos ou negativos que se refletem nesta. Portanto, os eventos traumáticos marcados no indivíduo dão-se muito mais pelas projeções arquetípicas do que pela relação estabelecida com a mãe real, uma vez que as fantasias frequentemente superam a ação desta.

Segundo Estés, a mãe pata é, ao mesmo tempo, uma mãe ambivalente, uma mãe prostrada e uma mãe sem mãe. “Com o exame dessas estruturas maternas, podemos começar a avaliar se nosso complexo materno interior sustenta com firmeza nossas qualidades exclusivas ou se está precisando de um ajuste já há muito atrasado.”

Como mãe ambivalente, a mãe pata é isolada e tratada com deboche pelos outros por ter um filhote diferente. A princípio, ela o defende e se mantém firme, apesar do ambiente perturbado que ele cria. Ela se sente dividida e acaba desistindo de cuidar dele quando percebe que ele começa a prejudicar a sua própria segurança e a de seus outros filhotes dentro da comunidade.

Dessa forma, em vez de ficar ao lado do estranho filhote, ela se curva aos desejos do ambiente em que vive, pois ser isolada da comunidade é o mesmo que ser ignorada ou destruída.

A mulher que vive em um ambiente similar ao da mãe do Patinho Feio geralmente tentará moldar o filho para que ele seja aceito pelo grupo. Ela se sente dividida em termos psíquicos, sente-se atraída por direções diferentes, o que é a própria definição de ambivalência. Uma direção representa ser aceita pelo grupo, outra trata do instinto de autopreservação. Na terceira direção, existe o medo de que ela e o filhote, de acordo com a história, sejam castigados ou mortos pela comunidade. Uma quarta força é o amor da mãe pelo filho e a sua preservação.

Esse tipo de história é muito comum e antiga, principalmente entre culturas punitivas, em que uma mãe vive conflitos pessoais devido à presença de algo diferente em sua vida, no caso um filho diferente. A mãe geralmente se sente dilacerada entre a opção de ser aceita pelos outros e a de amar o filho com liberdade.

Dentro da história da humanidade, existem diversos exemplos de mulheres que morreram, em termos psíquicos ou espirituais, em defesa de seu filho “não aprovado” — o que pode ser representado por sua arte, sua política, seu amor, sua crença ou mesmo sua própria prole. Em casos extremos, muitas mulheres foram assassinadas, queimadas ou enforcadas por desafiarem o grupo defendendo sua cria.

Para Estés, “quando a mulher tem essa imagem de mãe ambivalente na sua própria psique, ela pode se descobrir cedendo com muita facilidade. Ela pode se descobrir com medo de firmar uma posição, de exigir respeito, de afirmar seu direito a fazê-lo, de aprender, de viver do seu próprio modo”.

Segundo a autora, para uma mãe criar feliz um filho que apresenta características diferentes das necessidades de sua psique, ela precisa ser capaz de ter qualidades heroicas geralmente consideradas masculinas, como a veemência e o destemor.

A mãe prostrada é observada em O Patinho Feio quando se sente esgotada e, não aguentando mais as perseguições feitas ao filhote, desiste. Aflita, ela diz ao patinho que preferia que ele sumisse. Desorientado, ele acaba fugindo.

Sempre que uma mãe desiste de sua cria, significa que ela perdeu o sentido de si mesma, ficou dividida emocionalmente. Ao cair na prostração, qualquer pessoa se sente emocionalmente confusa, agitada e com a sensação de estar em um abismo.

A prostração sempre acontece quando uma mãe é forçada a escolher entre o amor do filho e o medo de qualquer mal que o grupo social possa fazer contra ela se não respeitar as regras. Quando uma mãe é forçada a escolher entre o filho e a cultura, existe, nessa sociedade, algo de cruel.

Essa situação pode ser associada aos milhares de casos em que mães solteiras foram e, ainda hoje, são obrigadas a se desfazer de seus filhos por meio de abortos ou cedendo-os para adoção em nome de uma “reputação” que deve ser zelada.

Para Estés, quando uma mulher tem um constructo de mãe prostrada dentro da sua psique e/ou da sua cultura, ela é indecisa quanto ao seu valor. Ela pode considerar que a escolha entre cumprir as exigências exteriores e as exigências da alma é uma questão de vida ou morte.

A mãe criança também é encontrada na história do Patinho Feio. A mãe pata é muito simples e, embora ela represente o papel da mulher que deseja muito ser mãe, ao sê-lo acaba rejeitando um dos filhos por ser diferente. As causas de sua atitude podem estar no fato de ela ser uma mãe frágil, psiquicamente jovem e ingênua.

Os motivos que a levam a não acreditar que possa ser uma mãe radiante podem estar no fato de se sentir deslocada. Sob o aspecto psíquico, ela não se considera merecedora até mesmo do amor de seu filho. Para Estés, a mãe precisa receber a atenção materna para dar atenção aos seus próprios filhos.

Toda mãe nova começa como uma mãe criança. A mulher, nesse caso, tem idade suficiente para gerar um filho. Mas, embora ela tenha bons instintos, que a orientam de forma correta, ela precisa da atenção de uma mulher mais velha ou de diversas mulheres que a guiem, estimulem e apoiem no cuidado com o filho.

Durante muitos séculos, as mulheres mais velhas de comunidades e grupos sociais formavam um sistema básico de nutrição “de mulher para mulher” que apoiava especialmente as mães jovens, instruindo-as na forma de cuidar e alimentar seus filhos.

Com a industrialização, as sociedades se transformaram, e a jovem mãe passou a beneficiar e cuidar de seus filhos de forma solitária, como uma mãe frágil. Uma mulher com uma mãe criança interna assume o papel de uma criança que brinca de ser mãe. Ela não é capaz de orientar os filhos, apoiá-los e pode, muitas vezes, deixá-los em péssimas condições ou mesmo torturá-los sem que perceba.

Para Estés, “a mãe frágil pode ser considerada um cisne que foi criado no meio de patos, porque não conseguiu descobrir sua verdadeira identidade a tempo de cuidar de seus filhos”.

A mãe interna de toda mulher precisa de cuidados de mãe. Isso se consegue por meio de mulheres que sejam mais velhas, experientes e sábias, que são o que são porque viveram e sobreviveram às suas próprias dificuldades. Amadurecidas pela própria vida, elas são gentis porque conseguem “ouvir, ver e falar”.

Para a autora, os relacionamentos entre as mulheres têm como base a afinidade e são de grande importância, porque, em qualquer idade, precisamos de conselhos e orientação. Ela acredita que a imagem e o conceito da mãe selvagem não podem e não devem ser abandonados, embora muitos estudiosos da psicologia dos tempos atuais determinem a necessidade do abandono do modelo total da mãe. O relacionamento com a mãe selvagem — a mãe da alma, segundo a analista — deve girar sempre, transformar-se. “Essa mãe é a escola na qual nascemos, a escola na qual aprendemos, a escola na qual ensinamos, tudo ao mesmo tempo e pelo resto de nossas vidas.”

Sobre as experiências vividas na infância com uma mãe destrutiva, Estés defende que o período, embora não possa ser apagado da memória, pode ser atenuado. O grande problema, nesses casos, é o medo de que algo essencial tenha morrido naquele período, algo que nunca possa ser ressuscitado, pois, em termos psíquicos, significa a morte da mãe. Mesmo quando uma mãe fraqueja, falha ou é destrutiva, seus rebentos podem sobreviver e crescer independentes. Perceber o dano sofrido e mesmo assim registrá-lo na memória permite o desenvolvimento futuro.

Clarissa Pinkola Estés é analista e contadora de história.

Revista Psicanálise. n. 01. São Paulo: Mythos.

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