Edição 111

Profissionalismo

Atenção compartilhada: sinais de identificação precoce do autismo

Rosangela Nieto de Albuquerque

Os estudos acerca da atenção compartilhada (AC) perpassam pelas áreas da psicologia do desenvolvimento e da psicopatologia. A ênfase geralmente é colocada na descrição dos comportamentos que compõem essa habilidade e no processo de desenvolvimento social. Nesse sentido, é importante refletir sobre os fundamentos epistemológicos que permeiam as noções de intencionalidade e seu papel na comunicação.

Para Akhtar & Tomasello (1996), a atenção humana é uma forma de representação vinculada à ação consciente e dirigida a um determinado objeto; portanto, um momento de concentração regular. Certamente, para as atividades humanas a função da atenção é extremamente importante, seja para as atividades da vida diária, para atividades escolares (pintar, desenhar), para o lazer, etc.

Na literatura atual, observa-se também o termo atenção conjunta, que remete à capacidade que os indivíduos demonstram em coordenar a atenção com um interlocutor social em relação a algum objeto ou acontecimento. Nesse sentido, quando existe uma capacidade deficitária para iniciar a atenção conjunta, ou uma alteração nesta habilidade inicial, tem-se um preditor dos sintomas principais do autismo. Sabe-se que, apesar das variações entre os indivíduos que permeiam os critérios do autismo, as características principais perpassam por alteração do espectro nos componentes dimensionais da cognição social, a comunicação e a flexibilidade.

No autismo, a característica clínica apresentada é a alteração da interação social, que não é absoluta e que muda segundo o nível cognitivo da criança; a etapa de desenvolvimento em que se encontra; e o tipo de estrutura social.

Curcio (1989) foi um dos primeiros estudiosos a publicar sobre o comprometimento na habilidade de atenção compartilhada em crianças com autismo. Posteriormente, os estudos de vários autores comprovaram que a ocorrência de déficits nessa área remete às características das crianças com autismo, mas também enfatizaram que não necessariamente em todos os casos os comportamentos comunicativos estão comprometidos.

Em outra vertente dos estudos, estudiosos trazem para a discussão a questão da genética, que exerce influência sobre as aptidões sociais e as deficiências de interação social, entrelaçados aos fatores biológicos e ambientais.

Para Capps, Sigman & Mundy (1994), a habilidade de atenção compartilhada (AC) é um fator comportamental que tem como base o propósito declarativo; portanto, vocalizações, gestos e contato ocular num processo de trocas de experiências. Observando o bebê, percebe-se que ele apresenta uma atenção reflexológica, por exemplo, quando se volta para um barulho ou uma luz no ambiente. Inicialmente (no primeiro semestre de vida), a atenção é reflexológica; posteriormente, a atenção se constitui na relação com as pessoas através da linguagem.

O contato social da criança se inicia ainda quando o bebê apresenta as primeiras trocas. O comportamento social (o sorriso e o contato ocular) e o desenvolvimento vão progredindo; a habilidade de atenção compartilhada através do comportamento infantil nas vocalizações, no contato ocular, nos gestos que se revestem de propósito declarativo vão ganhando significados; e o processo se constitui na relação entre objetos/eventos (CAPPS, SIGMAN & MUNDY, 1994). Verifica-se, portanto, que, há uma inter-relação entre atenção compartilhada e a criança com autismo.

Discussões a respeito dos déficits de AC no autismo, sua relação com o contexto familiar, o desenvolvimento da comunicação intencional e os processos cognitivos estão pautadas nos processos comunicativos, e os estudos traçam articulações entre a comunicação do bebê e a intencionalidade.

Conforme Messer, Lauder e Humphrey (1994), o conceito de intencionalidade como pré-requisito para a comunicação depende do receptor e envolve a transmissão da informação que pode ser comunicada intencionalmente. Há quatro tipos de comunicação intencional: 1) a percebida como intencional e acurada (ex.: o bebê está com fome e chora, logo olha para a mamadeira. A mãe “entende a comunicação”, dá a mamadeira para o bebê, e ele se acalma); 2) a percebida, mas não acuradamente nem como intencional (ex.: interpretar um ato deliberado como um acidente); 3) a percebida como intencional, mas não acuradamente (ex.: duas pessoas cochichando sobre uma situação qualquer e uma terceira percebendo o fato como se ela fosse o objeto do cochicho); e 4) a absolutamente não percebida (ex.: bebê aponta para um objeto e olha para o adulto, e o adulto ignora o bebê).

A outra forma seria a comunicação não intencional, percebida ou não como intencional. Por exemplo, gestos, jeito de olhar e movimentos do corpo são informações/comunicação do pensamento e estado afetivo (emoções) de uma pessoa, sem que haja intenção de se comunicar. Neste contexto, observa-se que o choro do recém-nascido, que, apesar de não envolver intenção de comunicar, fornece aos seus cuidadores informações fundamentais a respeito das necessidades do bebê, o que, para alguns autores, o adulto interpreta como intencional.

A questão da interpretação é subjetiva, e, para Carvalho (1998), o período referenciado de subjetividade primária está ligado àquele em que o olhar e as expressões afetivas do bebê são seletivamente dirigidos e integrados ao comportamento social das pessoas (intersubjetividade).

O ato comunicativo, isto é, a comunicação entre o bebê e a mãe ou o cuidador envolve uma interação face a face, sustentada nesse movimento por trocas afetivas entre o bebê e a mãe/cuidador, que, prioritariamente, é uma atividade gestual. Observa-se a preferência de recém-nascidos pela face humana a objetos inanimados (BOSA, 2001).

Pode-se então fazer uma reflexão entre a atenção compartilhada e as dificuldades que a criança/bebê autista apresenta na resposta entre gesto comunicativo e olhar.

O período do segundo semestre de vida é seguido por uma fase na qual objetos podem ser compartilhados com pessoas (trocas triádicas). O desenvolvimento da comunicação intencional por parte do bebê se distingue de outras respostas à medida que envolve a coordenação entre gesto e olhar, um em direção ao outro. A produção de gestos, tais como apontar, alcançar, mostrar e dar objetos auxiliam nas trocas e no desenvolvimento da comunicação intencional.

Enfocando principalmente a habilidade de atenção compartilhada, observa-se que, em situações naturais, o desenvolvimento da comunicação e da interação social possui uma natureza organizacional, envolvendo os domínios cognitivos, neurobiológicos e socioemocionais. É importante enfatizar que um distúrbio ou uma degeneração ou distorção na integração dos processos cognitivos, neurobiológicos e socioemocionais pode ser sinal de patologia, sendo o autismo um dos enfoques relevantes nesse contexto, tendo em vista que o desenvolvimento de indivíduos com autismo é caracterizado por déficits na comunicação e na interação social.

Portanto, no que se refere à interação, o olhar referencial foi o indicador na discriminação de crianças com autismo. O déficit na capacidade de seguir o olhar do referencial, acompanhado ou não por gestos, foi indicativo de estudo acerca do autismo e da atenção compartilhada.

Bruner (1997), em suas pesquisas, ao classificar o comportamento sociocomunicativo de crianças com autismo, o nível de deficiência mental e o desenvolvimento típico, observou que o grupo com autismo mostrou comprometimentos numa grande variedade dos comportamentos investigados, sendo o da atenção compartilhada o mais significativo.

Vários estudos buscam compreender o comprometimento da atenção compartilhada na área do autismo, onde especificamente, o papel do olhar, o gesto de apontar (em situações não sociais em oposição ao gesto protodeclarativo) e a interação mãe-bebê podem ser sinais de identificação precoce do autismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As discussões sobre o desenvolvimento dos bebês, mais especificamente os diagnosticados com autismo, apesar de muitas controversas, demonstraram que os bebês autistas apresentam menor frequência de contato olho a olho, pouca orientação para a face, apresentação tardia do sorriso social, menor frequência do balbucio, menor resposta ao ser chamado pelo nome e falta de atenção compartilhada durante as interações iniciais com a mãe/cuidador. As pesquisas avançam, mas os sintomas acima podem ser sinais de identificação precoce do autismo.

Rosangela Nieto de Albuquerque é Ph.D. em Educação (Untref), pós-doutoranda em Psicologia (Universidad John F. Kennedy), Doutora em Psicologia Social (Universidad John F. Kennedy), Mestre em Ciências da Linguagem, psicopedagoga clínica e institucional, pedagoga, licenciada em Letras (Português/Espanhol), consultora ad hoc do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), professora dos cursos de graduação e pós-graduação (Mestrado e Doutorado), autora e organizadora de doze livros.

E-mail: rosangela.nieto@gmail.com

REFERÊNCIAS

AKHTAR, N. & TOMASELLO, M. Twenty-four month old children learn words for absent objects and actions. British Journal of Developmental Psychology.1996.

BOSA, C. As relações entre autismo, comportamento social e função executiva. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14. 2001.

BRUNER, J. Atos de significação. Trad. S. Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

CARVALHO, A. M. A. Etologia e comportamento social. In: L. de Souza, M. M. P. Rodrigues & M. F. Q. Freitas (Orgs.). Psicologia: reflexões (im)pertinentes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.

MESSER, D. J.; LAUDER, L.; HUMPHREY, S. The effectiveness of group therapy in treating children’s sleeping problems. 1994. Disponível em https://doi.org/10.1111/j.1365-2214.1994.tb00389.x. Acessado em 20/dez./2019.

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