Edição 44

Matérias Especiais

Avaliar pra quê?

Nildo Lage

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Abordar a polêmica “avaliação escolar” é tocar numa ferida que há séculos o sistema de ensino incessantemente busca cicatrizar, apesar de o termo avaliar ser tão comum no cotidiano do ser humano, que faz avaliações a cada passo. Submergimos nesse processo na busca de qualidade a ponto de acreditarmos na capacidade de avaliarmos o próprio eu.

Mas, quando enveredamos pelos caminhos da Educação, essa procura torna-se mais intensa, porque nem mesmo Tyler (1949), considerado o pai da avaliação educacional, conseguiu ser preciso: “A avaliação é, assim, o processo de determinação da extensão com que os objetivos educacionais se realizam”.

São tantas incoerências e tantos fracassos que perguntas pairam: para que avaliar se o próprio sistema descarta e dilui a estrutura cultural e educacional que o aluno herda do seu universo familiar e social? É a escola quem traça o perfil do aluno delineando suas formas pelas normas escolares, e não pela necessidade de crescer ou desenvolver do mesmo? A avaliação do aluno e da aluna deve obedecer os mesmos requisitos?

Para fazer justiça nas avaliações, ajustes radicais são primordiais, iniciando pela adequação dos estabelecimentos, submetendo-os a uma prova de qualidade para que possam reavaliar os métodos e cientificar que avaliar não é apenas aplicar um teste, uma prova no final de um bimestre para checar o nível de aprendizagem dos conteúdos, mas verificar o que o educando absorveu desses conteúdos no seu cotidiano como cidadão e, principalmente, o seu desenvolvimento humano, uma vez que o alvo do sistema é a formação integral do indivíduo.

Luckesi (1999) acredita que

A avaliação que se pratica na escola é a avaliação da culpa. As notas são usadas para fundamentar necessidades de classificação de alunos, onde são comparados desempenhos, e não objetivos que se deseja atingir.

A prova está no currículo da maioria das nossas escolas, as quais não atendem às necessidades dos educandos, porque conteúdos e formas de aplicação são fórmulas distribuídas no planejamento, em que o coordenador, com olhar de lince, determina o que deve ser aplicado e como será aplicado.

Quando chega o momento do julgamento, a avaliação é feita através de formulários prontos enviados pelo sistema para dar uma “checada” no nível de aprendizagem, sem conhecer a realidade da comunidade escolar.

Assim, aterram o ensino num terreno infértil, porque se avalia o aluno como um todo ante uma sociedade disforme, transfigurada por problemas familiares, econômicos e sociais.

Para se esquivar da sua responsabilidade, o Estado dissimula para manter as aparências ante os órgãos internacionais: injeta dinheiro a fim de elevar a qualidade do ensino, investindo na criação e ampliação de programas, como o Fundo da Educação Básica (Fundeb), Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE).

Tantos planos e programas para que o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que mede o nível da qualidade do ensino, eleve-se no gráfico, salientando que visam o nível de ensino através de recursos e programas que reduzam o índice de analfabetismo, sem se preocupar com a qualidade. Investiu-se muito na área tecnológica, na estrutura física, e esqueceu-se de que quem faz a Educação é o humano, que não é capacitado.

Transitando na contramão, apesar da habilidade para transformar a realidade (porque a maioria tem curso superior com especialidade na área), está o humano cognominado professor, sem compromisso com a Educação.

Para esse profissional “cumpridor do calendário escolar”, tanto faz se seu aluno tirar dez, cinco ou dois. A sua meta é não reprovar, e, para isso, sempre se dá um jeitinho para recuperar esses “retardatários”, os quais não conseguem acompanhar o ritmo de um sistema que tem pressa de atingir a linha de chegada: alcançar o nível exigido para sair da zona de contingência.

Quando teremos a valorização do humano? O respeito à cultura? Do eu que submerge no planeta sala de aula em busca do elo perdido? É justo desarraigar alguém de suas raízes e atirá-lo num universo antagônico à sua cultura, às suas tradições, às suas crenças, como se as referências de uma vida fossem um fardo inútil?

E você, professor — que está na sala de aula, acompanhando o dia-a-dia da sua escola, enfrentando desafios para superar barreiras, por acreditar na construção de um mundo melhor através da Educação —, já parou para ouvir os seus alunos? Suas histórias, estórias, seus desejos, sonhos, ansiedades? Ou tem receio de fazer uma autoavaliação e descobrir que eles podem ter tanto conhecimento quanto você e que precisam apenas de auxílio para amadurecê-los, moldá-los?

Perrenoud (2000), nas suas incansáveis buscas à procura de uma saída, provou que “O fracasso não é a simples tradução lógica de desigualdades reais. O fracasso é, assim, um julgamento institucional”.

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A escola, ao contrário do que se prega, não consegue tornar-se um local includente, porque o economismo assassina brutalmente um sistema que se deixa consumir por métodos e práticas impostas, assolando competências e conhecimentos, porque, quando o martelo da avaliação é batido, apenas os conteúdos do planejamento são postos em xeque. Cultura, religião, costumes e o próprio conhecimentosão esmagados, pois, em pleno século 21, a escola não consegue cumprir a sua função social.

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E por que isso? Porque, quando se abre a cortina do palco sala de aula, depara-se com um cenário deprimente: crianças desnutridas, oriundas de ambientes hostis, que vão para a escola apenas para comer; professores desmotivados, que improvisam para trabalhar, ruindo as estruturas da motivação de ambos (tanto do professor quanto da criança que passa horas num ambiente monótono); e, como na maioria dos casos não há relacionamento família-escola-comunidade, ergue-se uma barreira entre o saber e aqueles que buscam o saber.

Sem saída, muitos educadores ostentam a viseira e resistem às mudanças. Fazem um planejamento dentro das técnicas atuais e gabam-se dos métodos tradicionais e das linhas de ação que praticam por acreditarem que são as únicas que funcionam, edificando obstáculos entre os propósitos do sistema e os alvos a serem atingidos. Afinal, os planejamentos e planos de ação são elaborados, simplesmente, para cumprir as exigências burocráticas.

É nesse momento que o educador comete as maiores injustiças ao voltar-se para o vulnerável universo “aluno”, e não avaliá-lo através da competência das habilidades, do seu desenvolvimento pessoal, humano, e sim pelo nível de absorção dos conteúdos aplicados. Esse erro pode ser o primeiro passo para levar ao fracasso escolar.

Antes de avaliar, o educador deve fazer uma autoavaliação para que entenda o que é avaliar e a importância disso. Esse ato é um processo que vai além de uma nota, de aprovar ou reprovar. Avaliar é, antes de tudo, um ato de justiça com aqueles que buscam o saber e necessitam de orientação, pois o processo de avaliação pode trazer grandes surpresas e descobertas e, entre elas, conscientizá-lo de que o que sabe é nada diante do muito que tem de aprender, principalmente com seu aluno.

E jamais esquecer que o grande mestre não é aquele que ensina, posiciona-se diante de uma sala de aula com pulso firme, transportando um fardo de conteúdos e experiências, mas o que aprende a cada dia, fazendo do ofício de ensinar um aprendizado constante para proporcionar, àqueles que passam sob sua regência, estrutura para crescer como cidadão e, principalmente, como ser humano.

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