Edição 16

Matérias Especiais

COM A PALAVRA…

Reservamos este espaço para as mães de crianças especiais que lutam, das mais diversas formas, para garantir a educação formal de seus filhos. Esta pequena amostra de depoimentos nos dá a dimensão das dificuldades que temos ainda para discutir e buscar soluções rápidas em nosso sistema educacional. Enquanto isso, temos que concordar com Celso Antunes, quando retrata bem a questão: “A maior de todas as deficiências físicas é a do olhar. Enquanto o educador não aprender a substituir o conceito de deficiência pelo conceito de diferença, olhará os que são ‘diferentes’ como sendo ‘deficientes’”.
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Eremita Luzier Medeiros – sou tia de Rayane Moraes Medeiros e responsável por ela, nove anos, portadora da síndrome de Down, que iniciou sua trajetória escolar aos dois anos em uma instituição da rede privada e aceita com normalidade. Entretanto, aos dois anos e meio, teve diagnóstico de LLA (Leucemia Linfóide Aguda), o que a afastou das atividades escolares, devido a um tratamento cheio de intercorrências.

Após superada essa fase, graças a Deus e à dedicação dos médicos do Centro de Hematologia e Oncologia Pediátrica – Cehope, coloquei Rayane em uma escola para alunos especiais, por orientação de sua psicóloga. Verifiquei que minha sobrinha entrou num processo de regressão, imitando deficiências de outras crianças, já que a escola recebia alunos das mais diversas deficiências. Dessa forma, optei por colocá-la numa escola tradicional, que a aceitou no Jardim I, seu desenvolvimento foi considerado normal para suas limitações, e ela voltou a ter uma boa socialização. Porém, notamos o quanto era angustiante o desconforto da professora por não ser preparada para lidar com a situação. Como era uma boa mestra, ficava preocupada com a assimilação de Rayane, que era mais lenta, o que é normal. Em uma outra tentativa, coloquei-a em uma escola que aceitava crianças especiais. Entretanto, verifiquei que, apesar de ingressar no Jardim II, ela ficava isolada com uma psicóloga em outra sala, o conteúdo pedagógico era diferenciado e, além disso, só tinha contato com os coleguinhas no horário do recreio, ou seja, ela era excluída, e ainda deveríamos pagar à psicóloga. Isso dava a caracterização de um consultório dentro da escola. A maioria das escolas, apesar da lei, não quer aceitar crianças portadoras de deficiências, alegando não ter professor capacitado.

Por fim, chego à conclusão de que ainda está longe uma educação ideal para a criança especial. O governo preocupou-se em criar uma lei que obriga as escolas a aceitarem essas crianças, sem o devido preparo dos professores e infra-estrutura adequada. Como tia de uma criança com síndrome de Down e responsável por ela, fico bastante insegura com o futuro de minha sobrinha, que não terá o direito de exercer sua cidadania e, desta forma, penso seriamente educá-la em outro país, onde lhe poderão ser dadas todas as condições necessárias. Assim, tiro-lhe o direito de vivenciar suas raízes, seus costumes, em prol de uma educação digna e de direito à cidadania.

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Graça Bianconi, mãe de Júnior – Minha história pode começar parecida com muitas outras, uma gravidez tranqüila, cheia de sonhos e a chegada do primeiro filho, uma criança aparentemente normal. Até os 18 meses, o desenvolvimento parecia estar dentro dos padrões da idade, mas, a partir daí, Júnior começou a apresentar distúrbios de comportamento, e, aos poucos, fui enxergando que meu filho era diferente das outras crianças.

Após muitas triagens e consultas com profissionais adequados, foi diagnosticada a síndrome do autismo, uma anomalia que pode se manifestar até os 30 meses.

A princípio, foi difícil aceitar aquela realidade. Não podia acreditar que estava vivendo tal situação; mas chegou um momento em que tive que optar: continuar me lamentando de braços cruzados ou ajudar Júnior. Com a participação do pai, fui à luta, e as primeiras medidas foram o tratamento medicamentoso e o acompanhamento de uma equipe médico-pedagógica.

O ingresso na escola foi um grande desafio, pois tentei seguir as orientações do psiquiatra e colocá-lo em uma escola de crianças normais para que com estas ele interagisse. Os resultados, porém, não foram positivos (ele não se adaptou) e tampouco humanos (a escola o convidou para sair). Apesar da mágoa, tínhamos que seguir em frente. Fomos objetivos e o matriculamos em uma escola especial: os resultados começaram a fluir.

A escola mesclava portadores de várias síndromes, e era possível encontrar diferentes estágios de desenvolvimento; cada criança era um caso particular. Através do trabalho de recreadores, psicólogos e terapeutas, foi dada a largada para a plena evolução de Júnior, a qual seguiria bem adiante. Foi notória a integração com o mundo exterior e a diminuição da agressividade. Paralelamente à escola, Júnior participava de outras atividades como natação, sessões de reorganização neurológica e terapia ocupacional. É importante ressaltar que todo o progresso se deu devido às atividades a ele proporcionadas, e estas só puderam ser viabilizadas porque, na época, o meu poder aquisitivo era alto. Infelizmente, os recursos públicos para o tratamento de tal síndrome são muito precários, e é fato que as pessoas de baixa renda que têm que enfrentar esse desafio muitas vezes se vêem impotentes diante dos seus próprios filhos.

Gostaria de destacar que, acima do tratamento médico, está o afetivo e a aceitação familiar. O amor é a base de tudo, e a dedicação é fundamental.

Não posso omitir os muitos momentos de lágrimas, frustrações, desânimos e indagações a Deus (Por que com meu filho?). A excepcionalidade não é um caso isolado, ela afeta toda uma estrutura. Primeiro vem o impacto, depois a cobrança entre o casal (Quem é o culpado?), e o que mais dói e atrapalha é o preconceito e desprezo da sociedade. Essa parte é terrível! Para relatar todos os fatos que enfrentei em busca do crescimento do meu filho e da sua cidadania, seria necessário escrever um livro. Quem sabe um dia? Júnior hoje é um jovem de 22 anos (não toma medicamentos há 13 anos), sociabilizado e com sua cidadania conquistada. Sem dúvida, mães, sinto-me uma vitoriosa e espero que meu exemplo encoraje muitas outras. Vale a pena lutar, o progresso deles é a nossa maior recompensa.
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Teresa Menezes, mãe de Nicole, doze anos, portadora de encefalite desde os sete meses – A partir dessa enfermidade, comecei a observar comportamentos diferenciados de outras crianças e compará-los aos de minha filha.

Quando Nicole completou dois anos, busquei um especialista da área para me orientar na escolha de uma escola adequada ao problema de minha filha. Coloquei-a em uma escola especializada que recebe crianças portadoras de vários tipos e graus de deficiência. Além do acompanhamento escolar, Nicole tem outros acompanhamentos: terapia individual, em grupo e ocupacional, além de uma fonoaudióloga.

As escolas por que ela passou, apesar de ditas “modelo”, não atenderam às minhas expectativas, algumas não tinham professores capacitados; outras chegaram ao absurdo de cometer barbaridades com as crianças.

Resolvi, após essas tentativas, uma nova alternativa: uma escola com referencial de “inclusiva”, que até dava um apoio emocional. Entretanto, fui surpreendida pela direção quando me comunicaram que só poderia ficar na escola até a alfabetização. Nesse momento, Nicole estava com sete anos. Fiquei totalmente desamparada e desorientada. Tentei outra escola, mas constatei que não tinha preparo suficiente para receber uma criança especial.

As dificuldades são grandes, mas duas são mais graves: a escola com referencial de “inclusiva” que aceita o aluno sem condições de trabalhá-lo e a outra é a falta de um projeto considerando o tipo e o grau de deficiência, pois não investe em profissionais especializados e ainda nos repassa os custos adicionais de atendimento desse especialista.

Dessa forma, ficam os pais de crianças portadoras de deficiência, mesmo com um bom poder aquisitivo, excluídos por sentirem-se impotentes diante de tal situação e impossibilitados de verem seus filhos inseridos na sociedade como cidadãos.

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Marieta Barros, mãe de Leonardo, com diagnóstico de autismo em aberto – Escrever sobre esse assunto pode ser fácil, principalmente se escrevermos sobre o óbvio de que nossa sociedade, nossos poderes públicos, nossas escolas e até os familiares não estão preparados para aceitar o deficiente.

Difícil é entender isso e ser pragmático, partindo para as soluções do dia-a-dia. Esse foi o nosso caso quando duas escolas, em Boa Viagem (Recife – PE), não aceitaram ou não souberam como educar e orientar o nosso filho. Uma das escolas foi direto ao assunto, apesar de um pouco tardiamente, pois nos avisou uma semana depois de reiniciado o ano letivo. Já a outra foi pior, a discriminação de uma de suas diretoras era velada e a covardia e omissão de outra diretora, que achava possível trabalhar com o nosso filho, foram decisivas para ele ficar abandonado na escola, a ponto de nós evitarmos freqüentá-la.

A revolta pelo descaso desta escola não ficava só na direção, também era dos profissionais que acompanhavam nosso filho a ponto de terem nos encorajado a tirá-lo da escola no final de 2000. Como diz o velho ditado, “Antes só do que mal acompanhado”, ou “Antes em casa do que mal trabalhado em qualquer escola mercantilista”. Como dizia, pais que passam por essas situações devem ser pragmáticos, e, então, decidimos procurar uma escola fora do eixo Boa Viagem–Piedade, na zona sul, e partimos em busca de alguma na zona norte.

Achamos a escola Babymel, que nos acolheu de forma consciente, com uma proposta sujeita a mudanças e adaptações apesar de ter pouca experiência nestes casos. Essa escola não tratou o caso de nosso filho de forma piegas ou como um favor, e sim como uma missão — a de educar e formar cidadãos. Isso nos levou, em maio de 2001, a mudar de residência.

Em 2003, nosso filho, por já não ter mais condições de evoluir na Babymel, que só tem classes até a alfabetização, mudou para outra escola inclusiva, Escola Construindo, com uma proposta em consonância com o trabalho dos profissionais que já acompanhavam Leonardo. Trata-se de uma equipe multiprofissional constituída de psicólogo, psiquiatra, psicomotricista, terapeuta, psicopedagogo (com atendimento domiciliar) e fonoaudiólogo. Hoje, com nove anos, nosso filho está cursando a 1ª série e bem-adaptado.

As rejeições e discriminações deixam cicatrizes, mas pais de crianças especiais não se podem dar ao luxo de não agir e de se abater com os revezes da educação e inclusão de seus filhos especiais em um país tão injusto e insensível com os diferentes.

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Vera Brandão – meu filho é Gabriel, hoje com 11 anos de idade e cursando a 2ª série. Aos 17 meses de idade, surgiram as primeiras suspeitas de que o Gabriel, meu terceiro filho, não tinha o desenvolvimento como os dois primeiros. Na escola, o seu comportamento “esquisito” junto às outras crianças ficou evidente. Parti, então, para buscar ajuda de um profissional de Psicologia que fizesse um diagnóstico inicial. A hipótese de autismo foi ratificada aqui no Recife, através do Centro de Pesquisa e Psicanálise da Linguagem – CPPL. A dor tão grande quanto ou maior não foi a de ter que encarar a problemática apresentada pelo meu filho, mas a falta de recursos que garantissem a assistência integral a ele. O sentimento de impotência me acompanhou por um bom tempo. Graças a Deus, a dinâmica de atendimento do CPPL inclui a família, aliás, condição sine qua non para a realização do tratamento. Pude, então, ser cuidada e orientada quanto à lida diária com Gabriel, entendendo o quadro clínico, o tratamento e as posturas mais adequadas para colaborar com o processo.

Tive a felicidade de encontrar a Escola Encontro, que abriu os braços para receber meu filho, assumindo total compromisso, numa relação permeada de diálogo e afeto.

Enquanto ele permaneceu nela, lidar com a questão escola foi, de uma certa forma, tranqüila. Quando ele concluiu a alfabetização e como a instituição não dispunha das séries subseqüentes, fui obrigada a matriculá-lo em uma escola que se dizia “inclusiva”, mas que, na prática, não tinha a menor condição: profissionais despreparados, ausência de uma metodologia apropriada e, sobretudo, falta de amor. Após um mês e meio de aula, a direção expulsou meu filho, dizendo que era impraticável permanecer com Gabriel. E isso foi dito por telefone mesmo.

Hoje ele está cursando a 2a série na Escola Encontro. Concluindo, quero dizer que, ao longo desses anos de luta, no que diz respeito a uma escola para Gabriel, passamos por situações extremamente constrangedoras: fomos expostos à rejeição de professores, de escolas, sob a alegação de que é muito difícil trabalhar com crianças autistas. Diante desse quadro, levanto alguns questionamentos:

* Até que ponto as escolas que se dizem “inclusivas” são de fato inclusivas? Seria apenas uma questão de marketing em cumprimento à lei ou o verdadeiro compromisso com o processo de inclusão social?

* Por que as escolas insistem em se dizer “inclusivas” e atuar com ações de pesquisa, formação acadêmica, clínica pedagógica e social de forma estanque, desarticulada. É necessária uma visão macro e sistematizada, através de projetos específicos.

E a ausência de uma política pública eficaz que atenda às necessidades desse segmento populacional? Até quando vai permanecer do jeito que está quando o papel principal é do Estado? A lei só não resolve, é necessário, antes dela, um investimento na capacitação de professores e pessoal de apoio somado a uma escola com infra-estrutura adequada.

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