Edição 05

Matérias Especiais

Como lidar com necessidades especiais

O número de crianças portadoras de deficiências físicas – portanto, com necessidades especiais – é crescente nas salas de aula da rede pública.

Com esta entrevista, a revista TV Escola pretende contribuir com o debate sobre a questão e ajudar o professor a acolher essas crianças em sua sala de aula.

Olhar, abraçar e reconhecer que as crianças portadoras de deficiência podem fazer muitas coisas, mesmo que seja de um jeito um pouco diferente dos demais alunos. Este é o melhor jeito de o professor acolher seus alunos com necessidades especiais, diz Marta Gil, socióloga e consultora das séries de vídeos de Educação Especial produzidas pela TV Escola.

Marta coordena a Reintegra – Rede de Informações Integradas sobre Deficiências, programa realizado em parceria da Universidade de São Paulo – USP, com a Amankay, uma ONG.

Ela começou a atuar na área em 1976, ao dirigir uma pesquisa nacional para traçar o perfil do portador de deficiência visual no Brasil.

TV Escola: O que você diria ao professor que recebeu ou está para receber um aluno portador de deficiência física em sala de aula?

Marta: Acho que, antes de mais nada, é importante olhar para si mesmo e reconhecer os próprios preconceitos em relação às pessoas que têm algum tipo de deficiência. É muito natural que tenhamos preconceitos e estereótipos. Fomos ensinados assim. Temos preconceitos contra o negro, o homossexual, o pobre, o louco. No caso da deficiência, o estereótipo pode ser agravado porque temos medo de nos tornarmos deficientes – todos estamos sujeitos a uma bala perdida a um acidente de moto, de carro etc. Isso contribui para nos deixar aflitos, inquietos ou inseguros frente à deficiência. Não é consciente, faz parte do nosso “equipamento” psicológico.

TV Escola: Então o professor não precisa se sentir mal por ter preconceitos…

Marta: Exatamente. Aliás, para se livrar do preconceito, é preciso reconhecê-lo. O nascimento de uma criança com deficiência não é uma boa notícia. Olhar uma pessoa portadora de deficiência não é algo que agrade aos olhos – há uma assimetria, um afastamento dos padrões sociais e culturais de beleza. O professor que reconhece esse sentimento em si mesmo consegue olhar para uma criança portadora de deficiência com mais tranqüilidade e acolher essa criança.

TV Escola: Como é acolher?

Marta: É olhar, abraçar e perceber que essa criança tem deficiências, mas também tem muitas eficiências. Ela pode fazer muitas coisas, mesmo que seja de um jeito diferente. Se não consegue escrever com a mão direita, pode conseguir escrever com a mão esquerda; se não consegue escrever com as mãos, talvez consiga escrever com a boca. Ela vai descobrir um jeito.
É preciso dar espaço para essas crianças acontecerem. O apresentador do primeiro programa da TV Escola da série Deficiência Mental é um rapaz portador de síndrome de Down – ele está orgulhoso e feliz com esse papel que lhe foi dado no filme. Até onde eu sei, é a primeira vez que isso foi feito.
Geralmente, o excepcional não tem voz própria. Alguém fala por ele, o pai ou a mãe.
Acho que esse detalhe mostra a filosofia do mec de uma forma muito clara e concreta.

TV Escola: O professor nem sempre tem noção das potencialidades desse aluno portador de deficiência – até onde ele vai, o que pode exigir dele. Isso pode causar muita insegurança? Como ele lida com isso?

Marta: Acho que é importante admitir a insegurança – “Tá bom, eu não sei; estou inseguro, não sei se estou exigindo demais ou de menos” – e ficar tranqüilo, percebendo que, se você ainda não estava preparado, agora pode aprender. É importante observar essa criança, conversar com a mãe. Se for o caso, conversar com o médico, ou pedir para a mãe um laudo e procurar informações. A criança vai contribuir com o desenvolvimento profissional do professor. É um desafio.

TV Escola: Mas esse professor tem em geral pelo menos mais 30 alunos na sala de aula. Como se ocupar dessa criança com necessidades especiais e, ao mesmo tempo, de todas as outras?

Marta: Essa é uma situação muito nova no Brasil. O próprio mec, aos poucos, vai descobrindo formas de lidar com a questão. Na Espanha, por exemplo, as classes são integradas, mas têm menos alunos. As crianças ficam um período na classe comum, integradas e em contato com as outras crianças; em um outro período, ficam com apoio especializado, mas na própria escola. Então vamos ter de criar um caminho enquanto andamos.

TV Escola: Para dar atenção diferenciada a uma criança, o professor pode estar perdendo um tempo que é necessário para cumprir seu programa de trabalho com o restante da classe.

Marta: Ele pode estar perdendo tempo de um lado, mas ganhando de outro. Ele ganha quando começa a perceber que tem de se preparar um pouco mais e descobrir outros métodos e técnicas pedagógicas. A criança com algum tipo de deficiência vai precisar de um ensino mais concreto – vai precisar manipular, vai precisar cheirar, sentir – para construir conceitos mais abstratos. As novas técnicas podem beneficiar a classe toda.

TV Escola: O que seria esse ensino mais concreto?

Marta: Aqui na Usp temos um bom exemplo: uma professora de Geografia desenvolveu a técnica de construção do que se chama de cartografia tátil, para crianças portadoras de deficiência visual. E usando sucata, porque nossa realidade escolar não comporta materiais de última geração. Os professores que trabalham com essa técnica em sala de aula perceberam que toda a turma avançou muito na compreensão dos conceitos. Ficou mais fácil para todos entender o que é uma ilha, uma península, um istmo, e a diferença entre uma coisa e outra. Essa tecnologia está sendo difundida em toda a rede, não só para classes especiais.

TV Escola: Qual tem sido a reação das crianças que passam a conviver com colegas com necessidades especiais? E os pais?

Marta: Os pais geralmente acham que o professor vai ficar muito ocupado e que o filho pode ser prejudicado de alguma forma. Isso não tem acontecido. E as crianças têm muitos ganhos, que vão além do aprendizado. Quem convive com a diferença na infância vai se tornar um adulto com quase nenhum ou sem preconceito. Para os portadores de deficiência também é muito importante. Em casa essas crianças são muito protegidas, paparicadas. Na escola, o coleguinha não está considerando se elas podem fazer isso ou aquilo. Ele puxa o amigo para correr, brincar… A criança portadora de deficiência tem ganhos inacreditáveis. Quando ela consegue fazer algo difícil, a classe toda vibra.
Conviver com crianças assim, ajuda a desenvolver a solidariedade humana.

TV Escola: Mas o professor tem de fazer um certo malabarismo…

Marta: Alguns cuidados são super-simples. Se a classe tem uma criança com deficiência física e dificuldades para escrever, o professor pode deixar as coisas um pouco mais de tempo no quadro negro. Na hora do desenho, fixando o papel com uma fita crepe, a criança vai conseguir trabalhar melhor. Se a criança não consegue segurar o lápis porque ele é fino, enrolar uma fita e deixá-lo mais gordinho pode ajudar. São pequenas sacadas que surgem na sala de aula, muitas vezes dos próprios colegas, que melhoram muito a vida.

TV Escola: E já dá para falar em mudança de comportamento?

Marta: Em alguns lugares, como Brasília, em que esse movimento existe desde a década de 70, já dá para sentir diferenças. Os pais aceitam mais e a equipe escolar também. A escola começa a irradiar uma nova postura de inclusão. Isso é muito importante.

Tv Escola: Comparado com os outros países, o Brasil tem muitos portadores de deficiência?

Marta: A porcentagem de deficientes na população varia muito. Países em guerra têm média muito maior. Principalmente em guerras que usam minas, que era um dos grandes temas da princesa Diana, lembra? No Brasil é muito alta, de 10% a 15% da população, entre deficiências adquiridas ou congênitas.
É muito maior que a dos Estados Unidos, por exemplo.

TV Escola: Voltando à escola, como o professor pode estimular a comunidade escolar a participar do movimento de inclusão?

Marta: O professor que aceitar essa criança deve convidar os outros – a merendeira, o guarda, o porteiro, a servente, o pessoal da secretaria etc. – aceitá-la também e a rever seus conceitos. Por exemplo, as pessoas usam muito a expressão “fulaninho está preso numa cadeira de rodas”. Para o deficiente é o contrário. Ele fica preso sem a cadeira.
Na cadeira de rodas ele está solto, se movimenta, vira parte do corpo dele – ele é um centauro.

TV Escola: Além da escola, como os demais espaços sociais podem participar do processo de inclusão?

Marta: A questão da inclusão está presente no supermercado, na lanchonete, no playcenter, no shopping center, na festa do priminho. Toda a sociedade está sendo chamada a não mais excluir os deficientes.
É um processo colocado em marcha com forte suporte na Constituição, na ldb¸ mas que para surtir efeito passa por uma mudança de mentalidade e de atitude.

TV Escola: Em que a TV, o vídeo e o computador podem facilitar a vida dos portadores de deficiências?

Marta: Nos Estados Unidos, a necessidade de adequar os meios de comunicação está propiciando o surgimento de um novo tipo de tradutor para o portador de deficiência visual. Em salas especializadas e em vídeos especiais, já existe alguém ou uma gravação para descrever a cena muda que está acontecendo na tela. Com um fone especial, os cegos ouvem essa descrição. Para o portador de deficiência auditiva, é possível legendar todos os programas – o Jornal Nacional, da TV Globo, já usa esse dispositivo. Os portadores de deficiência auditiva têm uma reivindicação antiga, que é a presença, na tela, de um tradutor de linguagem de sinais.

TV Escola: Existem programas de computador específicos?

Marta: Existem softwares adaptados para portadores de deficiência mental leve. O rapaz que apresenta o primeiro programa sobre deficiência mental da TV Escola usa um computador com um Windows simplificado. Existe uma linguagem de programação, a Logo, que é muito usada na educação infantil em geral. O cursor é uma tartaruguinha. Você diz para a criança: “Essa tartaruguinha não sabe nada. Vamos ensiná-la.” Ela já se sente o máximo e, ao ensinar a tartaruguinha, vai aprendendo a usar o computador. A criança com visão residual começa a trabalhar com o nariz grudado na tela do computador – ou do vídeo. Dali a pouco ela está trabalhando numa distância normal. Pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro desenvolveram um software para cegos que é um sintetizador de voz. O computador fala o que está escrito nos arquivos de textos. Crianças com deficiência física que não têm o domínio das mãos podem teclar mensagens usando outras partes do corpo.

TV Escola: O computador também contribui na profissionalização do portador de deficiência, não é?

Marta: Hoje você tem muitos portadores de deficiência visual trabalhando como analistas de sistemas em grandes empresas, como a Sadia ou o Itaú. E é cada vez maior a consciência das empresas de que precisam contemplar essa parcela da população. O Bradesco, por exemplo, instalou um software com sintetizador de voz que permite ao deficiente visual fazer suas movimentações bancárias com privacidade. A informática torna o portador de deficiência cada vez mais eficiente. Mas as pessoas devem estar preparadas, autoconfiantes – e isso passa pela escola.

TV Escola: De certa forma, a educação especial é uma educação normal. O professor deve partir da realidade e da cultura do aluno para ajudá-lo a construir seu conhecimento.

Marta: A educação especial, em primeiro lugar, é educação. Tem pequenas especialidades, porque o aluno tem algumas limitações. Por isso é importante a expressão “pessoa portadora de deficiência” ou “com necessidades especiais”: você enfatiza que antes de mais nada ela é uma pessoa, é igual à gente, não é um marciano, não escapa à raça humana. É gente. Tem gente gorda, magra, morena, do signo de Aquário, e tem pessoas com uma deficiência.

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