Edição 88

DPAC

Conheça o Distúrbio do Processamento Auditivo Central (DPAC)

Ana Raquel Périco Mangili

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Saiba como ajudar a criança com DPAC na escola

Quando se percebe que uma criança apresenta dificuldades de compreender a fala humana, a primeira suspeita que se costuma levantar é a da presença de uma deficiência auditiva. As perdas auditivas mais comuns são as dos tipos condutiva e neurossensorial. Mas e se os exames audiométricos não apontarem alterações nos limiares auditivos (os sons mínimos que o indivíduo consegue ouvir)? Nesses casos, deve ser considerada e investigada a existência de um outro tipo de distúrbio relacionado à audição que, porém, não é classificado como deficiência auditiva. É o pouco conhecido Distúrbio do Processamento Auditivo Central (DPAC), também chamado de Disfunção Auditiva Central, ou Transtorno do Processamento Auditivo.
O DPAC é caracterizado por afetar as vias centrais da audição, ou seja, as áreas do cérebro relacionadas às habilidades auditivas responsáveis por um conjunto de processos que vão da detecção à interpretação das informações sonoras. Na maior parte dos casos, o sistema auditivo periférico (tímpano, ossículos, cóclea e nervo auditivo) encontra-se totalmente preservado. A principal consequência do distúrbio está na dificuldade do processamento das informações captadas pelas vias auditivas. Assim, a pessoa ouvirá claramente a fala humana, mas terá dificuldades em interpretar a mensagem recebida.

Segundo Ademir Antônio Comerlatto Júnior, fonoaudiólogo, Doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP) e profissional consultor da Associação dos Deficientes Auditivos, Pais, Amigos e Usuários de Implante Coclear (Adap), as habilidades envolvidas no processamento auditivo são: detecção, localização e lateralização, discriminação, reconhecimento, aspectos temporais da audição (resolução, integração, mascaramento e ordenação) e escuta com estímulos degradados ou competitivos. O DPAC pode atingir uma ou várias dessas habilidades em diferentes graus.

Gilda Viana, mãe do Cauã, de 9 anos, comenta as dificuldades auditivas de seu filho. “Ele foi encaminhado à fono pela escola devido à troca dos fonemas na escrita, P com B, D com T, F com V, C com G. Fomos em uma fono em que não obtivemos grandes avanços, então tirei-o dessa fono e o coloquei no Kumon. Mas, no início deste ano, a escola pediu que o levasse novamente à fono, e, por sorte, encontrei uma excelente profissional, que pediu o exame DPAC, cujo resultado deu positivo, de grau moderado. O problema dele é mais na decodificação dos sons”, afirma.

As causas e o diagnóstico do DPAC

As causas do DPAC podem ser variadas e muitas vezes desconhecidas, contudo as mais comuns são de origem genética, otites de repetição, lesões cerebrais por anóxia ou traumatismo craniano, presença de outros distúrbios neurológicos, atraso maturacional das vias auditivas do sistema nervoso central ou por envelhecimento natural do cérebro. Por isso, a maior parte dos diagnósticos é feita em crianças e idosos.

Comerlatto lista os principais sintomas que podem ser percebidos na criança com DPAC:

1 – Dificuldade de memorização em atividades diárias.

2 – Dificuldades acadêmicas para ler e escrever.

3 – Fadiga atencional em aulas ou palestras.

4 – Troca de letras na fala ou na escrita.

5 – Demora em compreender o que foi dito.

6 – Dificuldades em compreender informações em ambientes ruidosos.

7 – Desatenção e distração.

8 – Solicitação constante da repetição da informação. Agitação.

9 – Dificuldade para entender conceitos abstratos ou de duplo sentido.

10 – Dificuldade para executar tarefas que lhe foram solicitadas.

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O DPAC pode vir acompanhado de outros distúrbios, como o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Esse é o caso de Victor Gabriel, de 8 anos. Sua mãe, Sônia Freitas, conta que, junto com o de DPAC, seu filho também recebeu o diagnóstico de TDAH. “Meu filho foi diagnosticado com DPAC e TDAH. Após avaliações com neuropediatra, testes psicológicos e exames fonoaudiológicos que acusaram a origem dos problemas, hoje ele necessita de medicação (Venvanse, 30 mg), acompanhamento com psicopedagoga e terapia de cabine com a fonoaudióloga. Ele já foi alfabetizado e está no 2º ano escolar.”

Mas não é sempre que o DPAC virá acompanhado de outros diagnósticos. Na verdade, ele é muito confundido com o TDAH, por ser menos conhecido do que este último, como complementa a mãe Gilda Viana. “O DPAC é complicado, pois a criança não consegue aprender, entender, e isso acarreta muitas coisas que as pessoas desconhecem. Já vi relatos de grupos de indivíduos que descobriram o distúrbio somente quando adultos, e isso ocasionou uma vida escolar inteira de reprovas e dificuldades. Muitas pessoas passam por psicólogos e são tratadas como se tivessem outros distúrbios, como a hiperatividade, e, na realidade, não é nada disso.”

Nos mais jovens, é de extrema importância que o diagnóstico seja efetuado o quanto antes, para que as dificuldades no aprendizado escolar sejam superadas mais facilmente. O cérebro humano tem, principalmente durante a infância, uma grande flexibilidade em seu desenvolvimento, o que é chamado de plasticidade neural. Com o tratamento fonoaudiológico e o apoio de uma equipe pedagógica adequada desde cedo, a criança possuirá muito mais chances de um ótimo desempenho escolar, pois seu cérebro estará sendo treinado a compensar, através da propriedade da plasticidade citada acima, as falhas neurológicas das vias auditivas centrais.

O diagnóstico do DPAC é composto de procedimentos um pouco mais elaborados do que as análises audiométricas comuns, pois é importante diferenciar a perda de audição localizada no órgão sensorial (ouvido) da alteração do processamento auditivo central. Para isso, são exigidos, além da audiometria-padrão, testes de PAC (discriminação, temporais, dicóticos, monóticos, baixa redundância, eletrofisiológicos e eletroacústicos) e de avaliação do desenvolvimento linguístico e do comportamento auditivo. Sugere-se a idade mínima de 7 anos para que se realize tal diagnóstico e que esses exames sejam feitos pelo próprio profissional fonoaudiólogo, com ou sem o uso de cabina acústica (o que depende da especificidade de cada caso), porém estes ainda não são muito comuns e não costumam fazer parte da rotina dos hospitais públicos brasileiros. Apenas alguns convênios particulares cobrem tais procedimentos.
Os exames apontarão quais são as habilidades auditivas em que a criança tem maior dificuldade, e isso servirá de orientação para a escolha dos exercícios e das técnicas de treinamento auditivo que o fonoaudiólogo exercitará em um trabalho terapêutico. Atividades, jogos e o uso da cabina acústica são alguns dos recursos utilizados na reabilitação, como explica o fonoaudiólogo Comerlatto.

“O treinamento auditivo é um dos métodos terapêuticos utilizados na reabilitação auditiva no DPAC e pode ser definido como o uso de um conjunto de tarefas acústicas predeterminadas com objetivo de ativar e/ou modificar o sistema auditivo. Existem dois modelos de treinamento auditivo: o informal, que se refere a intervenções terapêuticas sem o uso de equipamentos específicos para o controle dos estímulos acústicos trabalhados — muitas vezes, é indicado para crianças menores, por conta de fatores como atenção e motivação, visto que a atividade pode ser conduzida com maior facilidade por meio do lúdico, como jogos e brincadeiras; e o formal, que se refere ao processo terapêutico em que são utilizados equipamentos eletroacústicos que possibilitam o controle dos estímulos utilizados em sua duração, frequência e intensidade — este modelo pode ser conduzido, por exemplo, com o uso de um computador e em cabina acústica com o uso do audiômetro.”

Um trabalho multidisciplinar que envolva também os pais, a escola e os professores é de extrema importância para o desenvolvimento global do indivíduo com DPAC.

O DPAC na escola

Devido às dificuldades de processar as informações adquiridas pelas vias auditivas, o aluno com DPAC poderá enfrentar grandes obstáculos no modelo de ensino tradicional brasileiro, em que as aulas são ministradas oralmente pelo professor. Adiciona-se a essa questão o desconhecimento do DPAC pelas escolas e por seus profissionais, o que acaba dificultando ainda mais as vivências do aluno nesse ambiente, podendo gerar desde baixa autoestima até dificuldades na socialização, como comenta Gilda Viana sobre o seu filho Cauã.

“Na escola, é muito complicado, pois os professores não estão habituados a lidar com o distúrbio do processamento auditivo nem o conhecem. A fono do Cauã teve que ir à escola dele orientar como deveria ser o processo de seu ensino. Deu dicas, como sentar na primeira carteira da fileira do meio e receber explicações direcionadas somente a ele. Cauã estava com baixa autoestima, pois era muito difícil para ele não conseguir compreender as aulas”, explica.

É grande a importância de um trabalho multidisciplinar que integre a família, a escola, os professores, os profissionais fonoaudiólogos e os psicopedagogos para apoiarem o aluno com DPAC, oferecendo alternativas de absorção dos conteúdos e estimulando o aprendizado dessas crianças. A mãe, Sônia Freitas, conta sobre as estratégias usadas para seu filho Victor Gabriel e como a escola cumpre o que é pedido.

“As recomendações são: colocar o aluno nas primeiras carteiras, longe de distrações; quando falar, olhar diretamente para o rosto do aluno e próximo a ele; verificar se ele realmente entendeu os comandos e o que deve ser realizado; se possível, dar mais tempo para a realização da avaliação; e, se necessário, fazer a leitura da prova para ele. São várias estratégias a serem adotadas de acordo com a necessidade. Mas a escola só segue as recomendações porque eu estou quase todos os dias lá e fico no pé de todo mundo.”

Infelizmente, em muitos casos, a escola não dá a devida atenção às necessidades específicas do aluno com esse distúrbio auditivo, preferindo taxá-lo de “preguiçoso” ou “incapaz”, conforme nos relata Soleci Gottardo, mãe do João, de 10 anos, que passou por uma experiência preconceituosa na antiga escola em que estudava.

“As dificuldades do João começaram a aparecer em 2013, quando ele deveria se alfabetizar. A escola me chamou e disse que ele não estava conseguindo evoluir e que eu deveria procurar ajuda. A médica pediu todos os exames e, entre eles, o exame de processamento auditivo. No final, veio o diagnóstico de DPAC. Então ele começou um acompanhamento com uma fonoaudióloga e continua também com a psicopedagoga. Mas tive que trocá-lo de escola na metade do ano, porque a escola insistia que o João não fazia as atividades porque não queria e que só escutava aquilo que era conveniente para ele. Eu levei todos os exames e atestados, mas a escola não entendeu ou não quis entender e simplesmente o expulsou de lá. O pior foi que eles falaram para o João para ele procurar outra escola e que ele não precisava nem ir para a aula no dia seguinte. Fui lá conversar, mas o colégio não mudou de opinião, e, no último dia, quando fui buscar a transferência, eles afirmaram que o João não tinha problema de aprendizagem, mas, sim, falta de limite e que ele não tinha se adaptado ao método do colégio. A diretora chegou a falar que não adiantava ficar com uma criança que produzia menos que as outras”, conta Soleci.

Atualmente, João está em uma nova escola, que tem proporcionado o apoio necessário para o seu aprendizado e bom desenvolvimento. “A troca de escola foi fundamental para ele, tanto para seu desenvolvimento acadêmico como para sua autoestima. Ele simplesmente adora as professoras. A partir de uma nova abordagem dada pela nova escola, foi possível fazer um trabalho em conjunto: escola, terapeutas e família. Hoje, ele quase não comete mais trocas de fonema na escrita e consegue responder as mesmas provas dos amigos. Eu estou supertranquila com relação ao futuro do meu filho. Sei que ele tem capacidade e, com o tempo, ele mesmo vai encontrando seus próprios meios de aprender. Participar ativamente das atividades de reabilitação foi fundamental para ver como o João percebia o mundo ao seu redor”, diz a mãe.

Tratamentos alternativos e orientações aos professores

Além do acompanhamento de uma equipe multidisciplinar, outra opção para auxiliar a criança com DPAC é o uso do sistema de Frequência Modulada (FM) na escola, pois esse equipamento também pode ser utilizado em indivíduos sem perda auditiva periférica. O FM amplificará a voz do professor, fazendo com que a criança volte sua atenção mais facilmente para o que este explica em sala de aula. E se, além do DPAC, o diagnóstico também apontar perda auditiva condutiva ou neurossensorial, a criança deverá usar o Aparelho de Amplificação Sonora Individual (Aasi) ou implante coclear, dependendo do grau de sua perda. Comerlatto explica a importância de uma estimulação auditiva precoce para se prevenir o DPAC.

“O DPAC pode vir a ocorrer de forma secundária a outra alteração, como, por exemplo, a perda auditiva, tanto em crianças quanto em adultos e idosos. O nosso sistema auditivo é plástico, ou seja, ele se modifica de acordo com seu uso. Essa plasticidade pode ocorrer de forma positiva, como é o caso dos treinamentos, mas também pode ocorrer de forma negativa, relacionada à perda da capacidade de desempenhar determinada tarefa por algum motivo. Por exemplo, se uma criança vier a ter uma perda auditiva permanente e não for realizado um processo de reabilitação com o uso de Aasi ou outro dispositivo auditivo que permita que o som ambiental seja detectado em um nível de intensidade apropriado, as habilidades envolvidas no processamento da informação acústica não estarão sendo utilizadas adequadamente e, como consequência, o sistema nervoso auditivo central entende que esse processo não possui tanta importância, reduzindo, assim, as conexões sinápticas e enfraquecendo esse processo.”

O fonoaudiólogo também dá algumas orientações sobre como os professores podem ajudar a criança com DPAC em sala de aula.

“Em momentos importantes da vida da criança, como na alfabetização e nos demais processos acadêmicos, os professores não só podem como devem utilizar estratégias que facilitem o input (entrada) da informação auditiva a crianças com diagnóstico de DPAC — como, por exemplo, proporcionar menor distância entre ele e a criança; evitar posicionar a criança próximo a portas e janelas; procurar falar de forma clara e pausada, de frente para a criança; evitar falar em momentos de muito barulho; e sempre que possível fornecer as instruções e atividades próximo a ela. O controle acústico do ambiente onde a criança está exposta deve ser o mais silencioso e menos reverberante possível, objetivando a compreensão da informação com o mínimo de ruído mascarante”, finaliza.

Ana Raquel Périco Mangili é graduanda do 7º período do curso de Comunicação Social – Jornalismo da Universidade Estadual Paulista (Unesp); estagiária em assessoria de imprensa desde 2014 na Associação dos Deficientes Auditivos, Pais, Amigos e Usuários de Implante Coclear (Adap), com sede em Bauru/SP; colaboradora do blog do grupo de pesquisa Mídia Acessível e Tradução Audiovisual (Matav – Unesp) e da Red de Estudiantes Latinoamericanos por la Inclusión (Relpi – Chile).

Contato: ana.perico@adap.org.br

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Referências

(Central) Auditory Processing Disorders. Disponível em: http://www.asha.org/policy/TR2005-00043.

PEREIRA L. D. & SCHOCHAT, E. Processamento Auditivo Central – Manual de Avaliação. São Paulo: Lovise, 1997b. p. 49-59.

______. Testes Auditivos Comportamentais para Avaliação do Processamento Auditivo Central. Local?: Pró-fono. 2011. 82p.

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