Edição 60

Gestão Escolar

Consumo, logo existo?

Aurélio Santos

“A menina rica, pela primeira vez, pôs um avental e deu um bodo aos pobres.” Cito de cor um poema de Sidónio Muralha que retrata uma tradicional imagem natalícia ainda vigente após meio século.

Durante séculos, as classes dominantes do nosso país cultivaram as conotações evangélicas da pobreza, apontada como caminho seguro para o Céu (“Bem-aventurados os pobres, que deles será o reino de Deus”), assumindo a Igreja a boa gestão da caridade e do socorro aos pobres.

Mas, nos dias de hoje, o advento dos conceitos de economia de mercado, globalização, sociedade de consumo e as correspondentes alterações sociais, econômicas, culturais e comportamentais, bem como as ideologias e os interesses dominantes, subverteram profundamente as imagens e alegorias tradicionais do Natal.

A menina rica já não “põe avental” para dar “bodo aos pobres” (aliás, Sidónio esclarecia no seu poema que, já então, ela “nunca mais pôs avental”). Até porque “pobres”, agora, “já não há!”. Agora, na sociedade de mercado (capitalista), proclamada como “fim da História” e “fim das classes”, só há excluídos e consumidores, não é verdade?

Assim, os shopping centers tornaram-se, nos dias de hoje, a imagem de marca e o horizonte espiritual apontado obsessivamente por todos os meios a todo consumidor que almeja comemorar o Natal enquadrado na normalidade social.

O shopping reúne, na verdade, uma série de elementos que enchem os olhos de pós-modernidade e apetências de consumo. São frequentados por praticamente todos os salários possíveis e até por aqueles que não têm salário. Poupam às pessoas calcorrear as ruas em busca de preços, condições, variedades. Caminha-se por passeios largos, floridos, sem carros, com ar climatizado e árvores e pássaros artificiais que não sujam as roupas. Vitrinas luminosas praticam a convivência das diferenças num ambiente confortável e tranquilo, que deixa lá fora o calor, a chuva e os conflitos da sociedade; dá refúgio ao individualismo mais autista; e oferece, em redoma asséptica, o tom da vida apresentada por Huxley em Admirável Mundo Novo.

Mas esses templos da pós-modernidade exigem um ritual: obrigam a parar com regularidade na frente de uma vitrina para fazer uma oferenda, com gastos em moeda ou em cartões — outro mascarador que torna onipotente o mortal que o utiliza, pelo menos até a hora da fatura bancária. Não por acaso alertava o Banco de Portugal para a vertiginosa subida do endividamento das famílias: 62% do rendimento disponível, mais de 1,896 milhão de euros).

Nas imagens de referência promovidas pelo capitalismo pós-moderno, o shopping substituiu com naturalidade o presépio, como alternativa virtual para quem não pode materializar os seus sonhos mais profundos. Mas essa alternativa não é somente um espaço fechado: é um corpo da globalidade, na qual quem não consome fica excluído. Nesse quadro, até as relações humanas ficam regidas pelos critérios de mercadoria, consumo, rentabilidade e lucro. E, por esses critérios, as pessoas são, também elas, descartáveis, subvertendo-se a frase de Descartes: “Só existo se consumo”.

No entanto, as pessoas não desistem de dizer: “Boas-festas! Feliz Ano Novo!”.

Ainda bem: os invernos nunca duram para sempre.

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