Edição 74

Matérias Especiais

É para a liberdade que Cristo nos libertou” (GL 5,1) A liberdade acorrentando a alma

Rosangela Nieto de Albuquerque

[…] a liberdade é fundamento da existência, e esta se traduz pela necessidade do para si ser constantemente escolha, onde não há uma distância abissal entre liberdade e escolha. O conceito de escolha aparece como a tessitura da subjetividade, pois o sujeito escolhe a si mesmo, escolhendo-se como subjetividade que se quer livre […] (LIMA, 1998, p. 27).

Certamente, refletir sobre fraternidade e tráfico humano nos faz mergulhar num paradoxo relacional, pois fraternidade é a representação e expressão da dignidade de todos os homens, considerados iguais através da preservação da própria individualidade e de seu bem-estar. Em contraponto, pensar em tráfico humano remete à barbárie da escravidão, do medo, da prostituição e, consequentemente, da dor e das lágrimas.

O tráfico humano se constitui fundamentalmente na escravidão, no acorrentamento da alma a que, em grande parte, mulheres e/ou crianças em situação vulnerável são submetidas e, na promessa de melhores oportunidades de condições de vida, de emprego, tornam-se vítimas do tráfico. As crianças e os adolescentes, geralmente, são envolvidos como parte da exploração sexual comercial, e os homens, embora representem a minoria, na maioria dos casos submetem-se ao trabalho forçado. A escravidão que constitui o tráfico humano, que acorrenta a alma, nos remete a pensar acerca da liberdade, tão significativa no convívio da vida coletiva. Liberdade de viver e conviver com o outro, em toda a vida social numa relação entre o Eu e o Outro, é, sem dúvida, a vivência da fraternidade. É bem verdade que devemos refletir sobre quais são os limites da nossa liberdade sobre a do outro e os da do outro sobre a nossa. Que ações livres são necessárias para a convivência com o outro? Até que ponto ser livre não implica no fazer do outro um meio para a minha liberdade? A liberdade e a fraternidade caminham de mãos dadas com a dignidade humana.

Fraternidade e dignidade humana

A fraternidade é expressa no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem quando ela afirma que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e de consciência e devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade (SARLET).

Na estrutura social contemporânea, o espírito de fraternidade permeia a espontaneidade individual, com seu valor intrínseco à individualidade, numa estrutura de relações humanas capaz de estabelecer trocas e vínculos, tornando-se fundamental ou primordial para o desenvolvimento humano. Portanto, à medida que a individualidade é estabelecida e desenvolvida, a sociedade atinge uma condição de bem-estar, aperfeiçoando, assim, a humanidade. Nesse contexto, o homem deve ser capaz de compreender a si mesmo e aos outros, para desenvolver uma sociedade fraterna.

Estabelecer um compromisso de tornar a sociedade mais fraterna perpassa, sem dúvida, pela mudança de postura em torno do valor humano. A concepção de valor permeia as múltiplas facetas da formação do sujeito no sentido do valor universal. E fundamenta-se na dignidade humana, na conexão com o Direito Humano e com a efetivação dos Direitos Fundamentais. Certamente, a fraternidade está intrinsecamente ligada à dignidade do homem, no contexto social, político, individual e no sentido do Eu sujeito.

Na perspectiva existencial, é natural que o homem busque seu bem-estar, e esse elemento está fundamentado na própria individualidade, assim, a dignidade de ser homem está no direito de ser humano através da preservação da própria individualidade. O homem busca ingredientes para ser humano e para progredir.

No olhar sociológico, é importante enfatizar a relação entre fraternidade e dignidade, pois é necessária a construção de uma nova postura, de homem justo, que busca estabelecer filosoficamente a natureza do homem, que deve superar os seus próprios limites interesseiros e individualistas. Assim, é importante que a fraternidade seja vivenciada na prática, não somente na teoria, como uma constante dialética de conscientização do homem em relação a si mesmo e aos outros, com o direito de ser e de se comprometer com a vida em sociedade, proporcionando um bem-estar social, com menos violência e mais respeito à dignidade humana.

O reconhecimento da dignidade humana e dos direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.

O acorrentamento do tráfico humano

tpl_imagem_verticalO tráfico de seres humanos, historicamente, teve início na Grécia, na Antiguidade Clássica, nas ações realizadas com os prisioneiros de guerra (BONJOVANI, 2004). Entre os séculos XIV e XVII, nas cidades da Itália, havia o comércio de pessoas, era estabelecido e constituído, então, o tráfico humano. É verdade que o tráfico nas Américas se iniciou com a colonização por países europeus e que, com o passar do tempo, passou a se apresentar com outra configuração.

O tráfico humano acontece em países com um índice de pobreza significativo, e, em geral, o perfil das vítimas torna-se elemento motivador para os traficantes — as características de vulnerabilidade, condições socioeconômicas desfavoráveis, situações de fragilidade emocional, o abandono, etc. Segundo estudos recentes, as mulheres configuram a maior parte das vítimas do tráfico humano. Na maioria das vezes, são exploradas em atividades contra a própria vontade e com meios violentos. Essas mulheres geralmente encontram-se em situações de grande vulnerabilidade, e os que praticam o tráfico humano valem-se dessa condição, que facilita o aliciamento com enganosas promessas de uma vida melhor. Na maioria dos casos, elas têm pouca escolaridade, baixa condição econômica e, às vezes, são menores de idade. Vivem sob ameaça e constante intimidação — uma liberdade com a alma acorrentada…

As crianças submetidas ao tráfico, segundo estatísticas, compreendem o segundo lugar no ranking do tráfico humano, e a grande maioria provém dos continentes asiático e africano. Muitas delas são alimentadas somente para a subsistência e sofrem abuso sexual.

No que tange aos homens, o percentual é mínimo, e, na maioria das vezes, o tráfico é direcionado ao trabalho forçado.

A liberdade acorrentando a alma

Refletir acerca da liberdade implica em pensar sobre a própria condição humana de um ser que vive em comunidade. A liberdade está no cerne da vida coletiva, no contexto de conviver com o outro, estabelecer relações de toda a vida social entre o Eu e o Outro. Certamente, é nessa relação Eu-Outro, fundamental na vida social, que nos deparamos com o problema da liberdade. Como se pode viver coletivamente, compartilhando o mesmo espaço, respeitando as diferenças, os valores, sem acarretar conflitos?

Estabelecer relações interpessoais nos remete a situações questionadoras acerca dos limites da liberdade. Quais são os limites da minha liberdade sobre a do outro e os da do outro sobre a minha? Quais os limites morais e religiosos e até que ponto o homem é livre?

Essa reflexão no âmbito social permeia a questão da liberdade na situação conflitiva entre os homens na sociedade. A minha liberdade depende do seu acorrentamento? Até que ponto ser livre para agir não implica no fazer do outro um meio para a minha liberdade?

Observa-se, então, que há uma limitação para a liberdade. De que maneira essa limitação constitui-se num bem para mim? Como infere na minha forma de viver? E essa forma pode causar um dano ao outro? Será que esse dano é um bem para mim? Ele conduz minha felicidade, mesmo que seja um mal para o outro, causando-lhe dor? Esses questionamentos e reflexões nos fazem pensar em como desenvolver o espírito fraterno na sociedade.

Refletindo acerca de uma sociedade permeada por violência, egoísmo e falta de amor e com situações que extirpam a liberdade e acorrentam as almas, até que ponto o homem é livre?

Certamente, eu não poderia descrever uma liberdade que fosse comum ao outro e a mim; não poderia, pois, considerar uma essência de liberdade. Ao contrário, a liberdade é fundamento de todas as essências, posto que o homem desvela as essências intramundanas ao transcender o mundo rumo às suas possibilidades próprias (SARTRE, 1999, p. 542).

Para Sartre, o homem vive o exercício da liberdade através do livre arbítrio e nas ações de escolher o que fazer, como fazer, que são sempre intencionais, e é sempre movido por uma vontade consciente e relacionada aos fins e às consequências dessa ação.

É importante ressaltar que o conceito de liberdade, para Sartre, é a liberdade do sujeito. E, filosoficamente, essa liberdade só se constitui se for liberdade de consciência e com autonomia do sujeito. Desse modo, a felicidade do Eu implica na realização dos seus desejos e objetivos que, por sua vez, estão em desacordo com os desejos e objetivos do Outro. Assim, conviver em sociedade remete em sua essência à anulação da liberdade e dos desejos e, assim, talvez à infelicidade humana. Então, será que o mal-estar em nossa civilização está no ponto da negação da liberdade humana ou na afirmação da liberdade?

O ideal de liberdade pode ser um elemento motivador de certas posturas violentas em nossa sociedade, pois os desejos e objetivos diferem no contexto de felicidade. Na perspectiva sociológica, observa-se que o homem é incondicionalmente livre para agir e responder por suas escolhas e viver essa liberdade individual no contexto social. Então, sendo a liberdade a condição da existência humana, para se viver em sociedade o homem livre faz escolhas limitadas. Na verdade, essas limitações são definidas pelo medo, pelas repressões (moral, jurídica, religiosa) ou situações emocionais.

Com efeito, sou um existente que aprende sua liberdade através de seus atos; mas sou também um existente cuja existência individual e única temporaliza-se como liberdade […] Assim, minha liberdade está perpetuamente em questão em meu ser; não se trata de uma qualidade sobreposta ou uma propriedade de minha natureza; é bem precisamente a textura de meu ser… (SARTRE, 1999, p. 542/543).

Considerações finais

Refletir sobre fraternidade e tráfico humano nos conduz a pensar sobre a natureza do homem enquanto sujeito, contextualizado numa sociedade em que a cada dia busca-se desenvolver o espírito fraterno entre os homens e que ao mesmo tempo evidencia, denuncia, rejeita e clama por justiça quando percebe que esse mesmo homem aprisiona, escraviza, machuca e cerceia a liberdade quando pratica o tráfico humano.

O homem quer ser livre, deseja ser fraterno e busca a defesa dos Direitos Humanos, grita pela valorização da dignidade humana, clama pela liberdade, pelo direito à privacidade, à intimidade e à segurança pessoal. O homem deve se fortalecer enquanto homem-sujeito social e fraterno, isso é fundamental para mudar os paradigmas valorativos e éticos. O homem, esse sujeito social, deve implementar políticas sociais como meio, e não como fim, considerando o meio social e cultural e, assim, buscar combater e abominar ações que não favoreçam os direitos das pessoas.

Na questão do tráfico internacional de pessoas, as discussões sobre a dignidade humana ensejaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que constituiu um verdadeiro marco histórico em promoção dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais, em favor da dignidade. A pessoa humana passou a ser respeitada como sujeito de direitos internacionais, e, portanto, sua dignidade compreendida como inerente a ela, inalienável e indivisível. À vista disso, uma das violações mais degradantes à dignidade humana é o tráfico de pessoas.

Com o desenvolvimento biopsicossocial e o desenvolvimento econômico, surge também o crescimento das desigualdades sociais. Assim, o tráfico humano evidencia-se em grandes proporções, o que, certamente, faz eclodir a necessidade de unir forças para combatê-lo. Os tratados internacionais buscam estudar e oferecer instrumentos para o enfrentamento do problema, e a Convenção de Palermo se destaca no âmbito do crime de tráfico humano.

Do ponto de vista psicológico, busca-se também refletir acerca dos danos emocionais causados pelo tráfico humano. Os traumas e as dores da alma são grandes e muitas vezes irrecuperáveis, portanto, deve-se buscar amenizar os males das vítimas e reintegrá-las à sociedade.

É importante que esse crime seja denunciado e sejam assegurados os direitos das vítimas, mas, para isso, é preciso a implantação e o fortalecimento de projetos e ações governamentais, com políticas públicas para o enfrentamento à exploração, ao abuso, à escravidão e ao cerceamento da liberdade. É necessário que se rompam as correntes das almas dos que sofrem com o tráfico humano.

 

Referências

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BONJOVANI, Mariane Strake. Tráfico Internacional de Seres Humanos. São Paulo: Ed. Damásio de Jesus, 2004. 102 p. (Série Perspectivas Jurídicas) ISBN 85-88714-72-8.

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LIBÓRIO, Renata Maria Coimbra. Desvendando Vozes Silenciadas: Adolescentes em Situação de Exploração Sexual. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2003.

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MADEIRA, Felícia Reicher. Quem Mandou Nascer Mulher? Estudos sobre Crianças e Adolescentes Pobres no Brasil. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, p. 45-134

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MOUTINHO, Luiz D. Sartre: Existência e Liberdade. São Paulo: Moderna, 1995.

SARLET, W. I. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição da República de 1998. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada. Petrópolis: Vozes, 1999.

. O Existencialismo É um Humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1987.

Rosangela Nieto de Albuquerque é pós-doutoranda em Educação, doutoranda em Psicologia Social, Doutora em Educação, Mestre em Ciências da Linguagem, professora universitária, psicopedagoga clínica e institucional, gestora educacional e pedagoga.
Endereço eletrônico: rosangela.nieto@gmail.com

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